2010/02/27

PATRIMÓNIO_02_DESCRIÇÃO DO HOMEM HODIERNO

Desce da cruz – precisamos de madeira
Andy Hargreaves

É um dado adquirido que, nos nossos dias, tudo – ou quase tudo – é objecto de patrimonialização. Quer se trate da Laurissilva (mas poderiam muito bem ser as espécies endémicas dos Açores, o garajau ou o cagarro, para não falar já da Criptoméria dos Açores), quer se trate do canto polifónico georgiano (mas poderiam muito bem ser os Pauliteiros de Miranda), quer se trate da Língua dos Garifuna de Belize, (mas poderia muito bem ser a nossa segunda língua oficial, o Mirandês) quer, enfim, se trate do teatro das marionetas sicilianas (mas poderiam muito bem ser os Bonecos de Santo Aleixo), não há recanto, com efeito, que não escape, pelo menos em potência, ao etnocentrismo da UNESCO.

De resto, à primeira vista, a patrimonialização parece ser uma questão de oportunidade, neste sentido que o texto transaccional (por ex. a candidatura) obedece ao esquema do texto argumentativo, que, entre outras coisas, visa convencer – e converter – o destinatário sobre a legitimidade do seu dito, e, em resultado disso, favorece as desigualdades entre os homens, ou, para dizer o mesmo por outras palavras, perpetua o status quo vigente, o do homem burguês, na circunstância. E mesmo a Convenção para a Protecção do Património Cultural Intangível da Humanidade, de 17 de Outubro de 2003, deixa em aberto questões cruciais, como por exemplo, as formas de financiamento e a operacionalização dos programas de preservação. Mas não só. A Convenção mostra-se perfeitamente incapaz de resolver o problema de fundo, na ocorrência, a soberania dos Estados policiais e pode afirmar-se, sem qualquer tipo de exagero, que não há texto legal (?) que resista à força das armas, como se pôde observar no decurso do Século XX, que foi pródigo em exemplos de lesa-património e, mais do que isso, a referida Convenção ilude olimpicamente a questão da contingência geográfica. É que - note-se! - do ponto de vista estritamente antropológico, o conceito de delimitação geográfica (vulgo fronteiras físicas) é um princípio sujeito a caução: o passaporte do ser homem é uma forma de violência simbólica sobre a sua própria natureza. Ora, à mulher de César, não basta ser séria; também precisa de o parecer (inverto, aqui, o provérbio, porque a dialéctica entre o ser e o parecer assume-se como uma realidade dual: não se pode, com efeito, rasgar a frente de uma folha de papel sem fazer o mesmo ao seu verso…).

Claro! Objectar-me-ão que o documento em causa possui tão-somente um carácter indicativo, um pouco à laia da Declaração dos Direitos Humanos, mas acabe-se, definitivamente, com a cacofonia, que o ouvido relativo já memorizou a pauta do tuberculoso: toda a documentação produzida entra numa lógica discursiva suis-referencial (i.e. carece de uma hermenêutica iniciática) e inscreve-se na verborreia legislativa, tão característica do nosso mundo contemporâneo. Porque, doa a quem doer, a logorreia está ferida de validade e de poder executivo, que, o mesmo é dizer, revela-se incompetente em matéria política e financeira. Mas isso já se sabia. Todavia, acresce a este facto, estoutro, porventura mais grave, a saber, que a missão da UNESCO peca por um défice de legitimidade intelectual, pois que a noção de cultura subjacente ao seu modus operandi é, na sua essência, de natureza etnocêntrica (para não dizer eurocêntrica) e, nesse particular, admitamo-lo ou não, não promove a diferença, mas, bem pelo contrátio, nivela, segundo os seus próprios modelos, o todo cultural.
Aliás, a este propósito, o sociólogo Pierre Bourdieu, numa célebre comunicação de investigadores e de intelectuais reunidos em Strasbourg revelou (ainda que sob reserva do próprio dito) que desejaria que nós fôssemos uma espécie de Parlamento europeu da cultura (1992: p. 13). E explicava (quase malgré lui), europeu no sentido em que é para mim uma etapa, um grau de universalização superior (idem), o que inscreve o insigne autor de Les Héritiers na senda de Julien Benda que, noutro lugar, exortou, aqui sem qualquer reserva intelectual, a que cada um de nós construa a Europa, mesmo soberana, e o deus da Imaterialidade há-de sorrir-[nos]vos (1992: 127).

Pois! Os autores do triunfo da vontade (a expressão refere-se aos filósofos que, involuntariamente, acabariam por servir de pretexto, i. e. de background às teorias do nacional-socialismo alemão) também assim falavam e todos sabemos no que deu: num genocídio. E sejamos claros, neste ponto, a saber, que o nacional-socialismo, tal como ele foi desenhado na obra Mein Kampf, é, ainda, uma forma de humanismo, na medida em que pretendia, de facto, libertar o homem – superior – do seu inimigo, no caso concreto, do homem patologicamente enfermo. De resto, não foi o único exemplo concreto, pois que o regime estalinista também se reivindicava das teorias ditas humanistas…. Passemos! Os existencialistas e os humanistas também assim falavam e todos nós sabemos no que desembocou, pelo menos, no que toca ao humanismo estalinista: numa carnificina. Em suma, o homem percebeu que o século XX o brindou, numa salva de prata (a exemplo do episódio de São João Baptista, certo, mas metaforicamente, a rajada das Kalashnikov….), com um universo concentracionário, panóptico, claustrofobo e, por isso, decidiu abandonar a polis – regressou ao seu lar. Unilateralmente.

Não o condenemos, por isso, pelo menos, de forma mais ou mais sumária: é que ele, o Homem, tinha acabado de sair do sofrimento inútil do século passado, e, destarte, havia perdido irremediavelmente as afinidades com o hic et nunc. E o resultado está, doravante, à vista de todos: já não se interessa mais pelo lugar onde vive. Já não se deixa encantar pelo canto das sereias, i. e., pelo poder instituído. Em suma, fez tabula rasa da sua fidelidade ao solo. Ao quarteirão. À comuna. Ao país. E, ao longe, já ouve o dobrar dos sinos. É pelas vetustas organizações do homem velho que eles soam…

Perceba-se o escopo da questão: o homem deixou de ser geográfico e histórico – passou a ser cibernético (o origo). Ele deixou de ser vernáculo – passou a ser pária (como foi sempre o seu apanágio). Ele deixou de ser autóctone – passou a ser planetário (como sempre foi a sua vocação). Assim é. Doravante, ele não pisa a terra onde nasceu – elevou-se acima da matéria. Ele não se revê no território físico que o rodeia – faz-se convocar para uma realidade virtual e segundo um ritual que é função última da sua sensibilidade estética. Ele não frequenta o seu meio circundante, como por exemplo, as assembleias, os teatros, os museus, as bibliotecas, etc. – assiste, antes, ao espectáculo simulado e em diferido. Ele não frequenta os tanques públicos, os fornos comunitários, as ceifas colectivas, os serões públicos, as desfolhadas, as paróquias – ele exilou-se, refugiou-se nos paraísos artificiais (mais ou menos baudelairianos), concretizando profeticamente as palavras de Bertold Brecht, segundo as quais, seria necessário entregar o destino do homem ao próprio homem.

Com efeito, vivemos numa nova era – a tecnológica. E não falo, aqui, de regression, como o fez Claude Lévi-Strauss. Mais não faço do que evocar, tão-somente, a consciência histórica da contemporaneidade, que deixou de ser, como no passado, um amplo teatro de múltiplas e inextricáveis aventuras, para passar a consistir, antes, num único e irredutível processo de fabricação, neste sentido, que a acção é, doravante, pensada como um todo arquitectural. Quer dizer, é concebida sob o ângulo da sua inteira responsabilidade. Quer se trate da sua obra. Quer se trate do seu património. Quer se trate do seu devir.
© Manuel Fontão

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