2011/08/26

TERRA DO PECADO de José Saramago

A história, essa, obedece a um esquema singelo e linear: Maria Leonor, uma mulher, na casa dos trinta anos, fica viúva de Manuel Ribeiro, e, logo a seguir ao falecimento do marido, atravessa uma longa e profunda depressão. Na realidade, a pobre mulher não se vê a liderar e a fazer prosperar uma quinta situada algures no Ribatejo, assim como lhe custa, no imediato, ter de assumir, sozinha, a educação dos filhos, Dionísio e Júlia. Assim, é graças à astuta estratégia de Benedita, uma criada de 42 anos, aliás aconselhada por um amigo de família, o doutor Viegas, que Maria Leonor consegue positivamente reagir à vida, e, com esforço, consegue recuperar as rédeas da casa. Mas a rutura, profunda, indelével, dolorosa permanece no seu âmago. Com efeito, a patroa irrita-se por tudo e por nada com os criados, as suas ordens saem-lhe num tom de voz deslocado e agreste, as admoestações surgem invariavelmente deslocadas e timbradas de uma angústia crescente, em suma, a casa fica gradualmente sem uma voz de comando consistente e coerente. Do mesmo modo, a mãe exaspera-se com os seus próprios filhos, responde-lhes com maus modos, e, por conseguinte, Dionísio e Júlia sentem na própria pele a irritabilidade de Maria Leonor. É, aliás, num momento de violência epidérmica da sua patroa que Benedita, a criada mais antiga da casa, se vem interpor e defender os meninos. O caldo parece ter entornado e Maria Leonor sente-se, doravante, estranha na sua própria casa.
De resto, a inimizade entre as duas mulheres – a patroa e a governanta – cresce a cada dia que passa e vem, finalmente, à superfície na altura em que António Ribeiro, o cunhado, decide vir do Porto (onde exercia, malgré lui, medicina) e se instala na Quinta Seca, a pretexto de umas férias. Todavia, cedo se percebe que o jovem médico, pouco fadado para a profissão, está decidido a fazer a corte à cunhada, que, mergulhada na sua solidão, não lhe sabe resistir. E, numa tarde em que António lhe rouba, finalmente, um beijo, ambos acabam por cair, ávidos de desejo, no tapete da sala, mas, alertados pelo som de passos vindos da escada de acesso, logo se recompõem. Por um triz. É que, momentos depois, Benedita, qual guardiã dos valores puritanos da Quinta Seca, entra no aposento, e, fixando-se no tapete remexido, adivinha tudo, ou melhor, na sua imaginação de velha solteirona, desenha um cenário amoroso, que, contudo, não chegara a ocorrer. Não importa. Se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido. Daí, novo enxovalho, nova agressão verbal, desta feita violenta, que Maria Leonor engole em seco. E a conta gotas…
Doravante, na imaginação fértil de Maria Leonor, a criada sobrepor-se-á à sua própria patroa e, mais do que isso, mantê-la-á moralmente refém deste episódio fortuito. E, sob o peso do eventual escândalo, sob a ameaça de um possível rumor público, a pobre viúva crê não ter saída. E, por isso, começa a sentir-se um animal encurralado dentro da sua própria casa, uma mulher agrilhoada à sua própria propriedade, às paredes silenciosas do velho casarão e, mais do que isso, perseguida por um fantasma que tem um nome e um rosto: Benedita, a mulher que decidiu rejeitar o Joaquim Tendeiro para se consagrar à Quinta Seca.
Neste turbilhão de pensamentos algo desregulados, incapaz de se impor de per se, sem força anímica para contrariar Benedita, Maria Leonor aproxima-se do doutor Viegas, um homem mais velho do que ela vinte anos, mas muito expansivo e bonacheirão. É, no fundo, a figura do bom conselheiro, do bom amigo, do homem experiente. De resto, o médico do Parreiral, dotado de um discurso fácil e sedutor, tornar-se-á, em breve, o confidente exclusivo da jovem viúva. É assim que, aos discursos algo tresloucados de Maria Leonor, que, por momentos, pensa em se desfazer da criada impertinente, preparando-lhe uma morte aparentemente acidental (como por exemplo a queda de um vaso…), o prestigiado médico opõe, antes, a necessidade imperiosa de Maria Leonor se voltar a casar. O lance parece, à primeira vista, gratuito e absolutamente lógico: um segundo casamento, com efeito, afastá-la-ia de vez do perigo da desonra, permitir-lhe-ia reconstituir a sua vida íntima, em suma, vir-lhe-ia saciar a falta de homem (1947: 128), como dizia Joaquina, a cozinheira. Contudo, o inevitável acaba por acontecer: no meio de ridículas promessas de casamento feitas por Pedro Viegas, de palavras de enamoramento mais ou menos patéticas, ambos se envolvem, enfim, numa perigosa cena de amor. Trágica, de resto. Primeiro, porque Maria Leonor terá sentido, durante o próprio ato amoroso, uma repugnância física que nada, na sua constituição, poderia vencer. Conditio sine qua non para a marcha nupcial. Depois, porque Benedita a descobre completamente nua no leito desfeito. E literalmente banhada em lágrimas. No entanto, a mulher-fantasma adota, desta vez, uma postura bem mais humana, envolvendo-a fraternalmente nos seus braços e afirmando estar disposta a aceitar o segundo casamento da patroa e a esquecer tudo… desde que fosse para o seu bem (1947: 397). Mas tal não é preciso, feliz ou infelizmente: em breve, e como corolário do desastre absoluto, surge a notícia de que o doutor Viegas, de cinquenta e cinco anos, havia morrido num acidente com a charrette, uma morte a fazer lembrar, de resto, o desenlace de Bonjour Tristesse, quer dizer, a deixar no ar a tese algo filantrópica de um suicídio.


Terra de Pecado é, de acordo com o Aviso autoral, um título imposto de cima para baixo. Em causa terá estado, segundo o relato confessional, a pouca atracção comercial (1947: 09) do título primevo. Pena que o autor, não obstante a sua propalada irreverência, tivesse cedido a pressões prosaicas, i. e., comerciais, pois que o título inicial – A Viúva – retrataria mais fielmente, a meu ver, o conteúdo de um livro que descreve o quotidiano de uma mulher que, na idade da razão, veria morrer o seu marido, Manuel Ribeiro.
Aliás, o título do livro poderia muito bem circunscrever-se ao nome da protagonista – Maria Leonor – e, destarte, aproximar-se de Madame Bovary, até pelas similitudes psicológicas, pelos devaneios espirituais, pelos contornos sinuosos da alma feminina, pelo sofrimento de uma alma que não espera compreensão no meio que a rodeia. Com efeito, Maria Leonor, tal como Emma, pressente, no seu íntimo, ainda que de forma vaga e confusa, uma diferença abissal entre os sentimentos que a animam e o convencionalismo que emana do tecido social circundante. E, neste particular, ambas se sentem incomensuravelmente sós, ambas se sentem presas fáceis de um destino implacável, ambas se consideram, de uma forma ou de outra, vítimas de um estádio cultural em que a emancipação feminina era sentida como descrédito, quer dizer, como um escarro social, como uma reprovação, como uma enorme mancha na reputação moral, em suma, ambas as personagens sabem que aquilo que sentem, aquilo que as angustia, aquilo que encerram não pode ser, definitivamente, partilhado pelo comum dos mortais. Sob pena de derrogação. Sob pena de discriminação social. Sob pena de serem escandalosamente apontadas a dedo…
Claro que o romance saramaguiano não encara, como em Madame Bovary, a hipótese do adultério, até porque o livro começa com a morte prematura de Manuel (como se todos nós não morrêssemos todos antes do tempo!...). Também não vemos um narrador que vasculha ostensiva e provocatoriamente o lado erótico da sua personagem, como acontece com o narrador de Madame Bovary. Nem tampouco nos é dado observar um narrador egocentricamente cioso do espaço íntimo, uma espécie de voyeur da vida sexual da figura feminina, como parece ser, por vezes, o caso do livro de Gustave Flaubert. Mas, por outro lado, não deixa de ser verdade que o narrador de Terra do Pecado nos conta a história de Maria Leonor, uma mulher (tal como Emma…) sonhadora e burguesa, criada no campo (mas não para o campo…), uma figura feminina que terá aprendido a ver a vida através da literatura de natureza filosófica, imbuída, aqui e ali, de laivos de um sentimentalismo romântico. Com efeito, esbeltas, frágeis e requintadas para os padrões provincianos da época, tanto Maria Leonor como Emma se veem, de repente, privadas do seu elemento natural: da sua liberdade individual, da sua vontade de viver, da sua incapacidade para sufragar o código de valores vigente. Dir-se-ia que estão para lá do seu tempo. Para lá da consciência colectiva da época. E definitivamente abandonadas a si próprias.
No entanto, a analogia acaba aqui, pois que, enquanto Emma rejeita uma vida conjugal em que desempenharia um papel secundário, uma vida social que consubstanciaria a vontade superior do seu marido Charles, já Maria Leonor parece não ter forças suficientes para se substituir às tarefas rotineiras de Manuel Ribeiro, um homem que mantinha a sua Quinta Seca à sua imagem: ordenada, próspera, funcional.
Na realidade, e contrariamente a Emma, Maria Leonor é vítima de uma tragédia familiar: a viuvez. Esposa fiel, mulher dedicada à sua singela função de progenitora, ela, a patroa, sente-se, doravante, sozinha, com dois filhos nos braços (Dionísio e Júlia). Que fazer, pois? Como (sobre)viver, isto é, como (re)alinhar o seu dia a dia? Que fontes de interesse agregar ao seu novo projeto de vida – se é que o desenhou alguma vez no seu âmago?
Assim, sem qualquer estratégia defensiva, sem consciência da sua importância local, Maria Leonor está condenada ao fracasso. Aliás, sintomático de tudo isto é o facto de, logo a seguir ao falecimento do seu marido, Maria Leonor se debater com uma profunda depressão. Que, note-se, mais não é do que um terrível mal de existir. Que mais não é do que a recusa em se assumir como mãe e como mulher. Na realidade, Maria Leonor não nasceu para liderar a Quinta Seca, uma terra árida de afetos, uma casa sem rumo definido, uma vida rural sem nexo. E, neste particular, nem os dois filhos, Dionísio e Júlia, funcionam como antídoto para o seu profundo mal-estar. A mulher perdera o seu equilíbrio emocional. Perdera a sua razão de ser. Perdera o seu fio de Ariadne…
Neste contexto de culpabilidade religiosa extrema, nesta desregulação dos sentidos, Maria Leonor não é capaz sequer de odiar, e, mesmo quando solta um violentíssimo eu odeio-te (1947: 261), dirigido à criada que, num excesso de zelo, lhe vasculha a alma, tal não chega, porém, a ser a expressão de um verdadeiro ódio, mas antes, um jogo de palavras que as crianças têm por hábito de lançar umas às outras para logo depois retomarem a brincadeira... como nada se tivesse passado. Ou, como diz o próprio narrador, trata-se de uma frase gasta e incolor, batida pelo uso constante das inimizades humanas (1947: 262). E, prova disso mesmo, está no facto de ter recusado a proposta do doutor Viegas, que era de opinião que Maria Leonor deveria despedir Benedita. Poder-se-á pensar que se trata de inconsequência, de falta de caráter, de indecisão suprema. Não contesto. Muito embora creia que a razão primeira desta recusa se deva procurar na extrema religiosidade da protagonista, ou melhor, num vago sentimento de culpa: o corpo de Maria Leonor, de trinta e cinco anos, não se poderia conformar com a viuvez, tal como o espírito, pela calada da noite, lhe repetiria incansavelmente: eis, pois, o fantasma que a apoquentava, o mal de que sofria. E Maria Leonor sofria, de facto, por não ser suficientemente louca. Por não ser capaz de cortar as amarras. Por não ousar libertar-se das peias que a atormentavam e que a sua formação religiosa resumia numa linguagem, no mínimo, estranha: E então, diante da sua imaginação exaltada, ergueu-se, inteiro e acusador, o fantasma do marido. Era o remorso. (1947: 271)
Mas não era o defunto. Não. Era apenas a imagem distorcida da sua consciência pesada, vergada e fustigada pelas leis do desejo…

© Manuel Fontão

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