2022/04/16

A Cabra

"Uma cabra vinda de muito longe;
o focinho orvalhado, nos galhos a primavera suspensa.
Uma cabra vem vindo devagar
do crepúsculo matinal dos dias
tecidos de amor:
amor de mulheres fechadas no quente
da sua respiração,
amor de homens que se torcem
e retorcem ao sol a prumo do desejo.
Uma cabra. Pisando a relva
ou a neve.
Como quem não quer separar-se
de tão amarga substância do tempo. "
Eugénio de Andrade




2022/03/13

a besta

a besta desfez a porta de saída à força de coices
e galgou à toa para a pradaria mais próxima
as têmperas em calda os olhos em pranto

havia no seu bico aquilino a ideia de vingança
e de acerto de um passado deixado a céu aberto

parece ainda cavalgar a passos de gazela
da corte de onde havia fugido anos antes
e consigo leva as crias em sinal de desconforto

avança devagar riscando de preto a neve
do trilho que ficou no lugar da porta
e a passarada espantada da ousadia
alerta os amigos da rapina para o repasto

sobrou a liquidez da água
o bafo quente das aves
e a bestialidade do gelo

faltou na soma dos dias a bela
que ficou só
com tudo o que não era seu por inteiro
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o fardo largo e excedente
defraudou a besta em fuga
quando demente procurou a pradaria
a carroça dela e o seu recheio
incluindo as suas imberbes crias
 
fez apear o trânsito e o trem
e o garanhão de ocasião
 
o dono esse desconfiado e escaldado
lançou o alerta ao séquito da cavalaria
e furioso com o fardo e com a besta
e sobretudo com a generosa carroça
bradou aos céus o quinhão que era inteiramente seu
a parte que havia cumprido, inclusive a diligência
e tudo aquilo que também era seu pela metade
 
e ficou ali quedo cabisbaixo no parapeito da janela
até ao cair da noite do ano que lhe faltava viver
sem rosnar
 
até que a outra a besta viria lamber a golpes de gamela
aliás sem pudor e sem dó e sem merecer
os restos da última ceia em guisa de mesureiro jantar
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2021/10/29

Mal ou mau?

Em boa verdade, estas duas palavras fazem parte integrante do léxico da língua portuguesa, que a variante PE [Português Europeu], quer a variante PB [Português do Brasil]. Todavia, os seus significados são diferentes, pelo que os contextos onde ocorrem também, são, obviamente, distintos.

De resto, o teste mais fácil e imediato para se operar a melhor escolha contextual consiste, simplesmente, em recorrer à antonímia, sendo que [mau] contrasta com [bom], ao passo que [mal] estabelece uma relação de oposição com [bem].

Claro que quem possui alguns conhecimentos de latim, perceberá que [mau] tem a sua origem no étimo latino [malu-], ao passo que [mal] provem do étimo latino [male-] e é um adjetivo. Assim, enquanto a primeira ocorrência [mau] é, frequentemente, utilizada como um adjetivo e significa alguém ou alguma coisa de pouca qualidade, alguém ou alguma coisa que acarreta o infortúnio, alguém que não se comporta de acordo com os bons costumes, alguém ou alguma coisa de impróprio, alguém ou alguma coisa que contraria as normas estabelecidas, etc., já a segunda ocorrência [mal] pode ser usada como um nome comum, como um advérbio ou como uma conjunção subordinativa temporal, conforme demonstra o quadro holístico infra:

 

[mau]

 

[mal]

adjetivo

 

nome comum

advérbio

conjunção subordinativa

 

 

 

 

 

cruel

desagradável

desumano

imperfeito

imoral

impróprio

inadequado

incompetente

indisciplinado

malfeito

maligno

ordinário

prejudicial

etc.

 

o que prejudica ou fere o que é nocivo

infelicidade

atitude má

o que acarreta dano; o que provoca estrago

o que lesa

calamidade

desgraça

infortúnio

doença

enfermidade

etc.

de modo irregular

de modo ruim

de maneira não satisfatória

 de modo incorreto erradamente

e modo pouco adequado defeituosamente

a custo

dificilmente

apenas

pouco

incompletamente

de modo negativo severamente

etc.

assim que

 logo que

mal que


Por fim, importa referir que as duas ocorrências configuram um caso de homofonia no PB [Português do Brasil], porquanto a palatalização do [l] evoluiu para a velarização, o que não ocorre em PE [Português Europeu], pois que as duas ocorrências mantêm os seus traços distintivos., conforme se pode verificar pelo quadro abaixo:


PB [Português do Brasil]

 

PE [Português Europeu]

Mau [maw]

Mal [maw]

 

Mau [maw]


 

 Exemplificação:

a) Entendeu bem ou ________ o quadro teórico?

b)  Fez ________ em telefonar-lhe!

c) Não interessa: o ________ está feito, logo não há nada a fazer…

d) O rapaz não ajuda ninguém na sala de aulas: é um ________ companheiro.

e) ________ chegue a casa prometo ligar-te!

f) O ________ da humanidade é o engodo pelo poder.

g) A mentira provoca sempre um certo ________-estar interpessoal, não lhe parece?

h) O bem e o ________ à face vêm.

i) Os incêndios fazem ________ aos solos.

j) É um incendiário, logo é um ________ tipo!

k) É um calvário viver com alguém que possui um ________ humor.

l) fala tão baixinho: ________ o oiço!

m) Quantas questões errou? Duas? Não está nada ________.

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Chave:

a) Entendeu bem ou mal o quadro teórico?

b)  Fez bem em telefonar-lhe!

c) Não interessa: o mal está , logo não há nada a fazer…

d) O rapaz não ajuda ninguém na sala de aulas: é um mau companheiro.

e) Mal chegue a casa prometo ligar-te!

f) O mal da humanidade é o engodo pelo poder.

g) A mentira provoca sempre um certo mal-estar interpessoal, não lhe parece?

h) O bem e o mal à face vêm.

i) Os incêndios fazem mal aos solos.

j) É um incendiário, logo é um mau tipo!

k) É um calvário viver com alguém que possui um mau humor.

l) Fala tão baixinho: mal o oiço!

m) Quantas questões errou? Duas? Não está nada mal.

Nota: redigido ao abrigo no Novo Acordo Ortográfico. [Alguma dúvida ou incorreção contactar. p. f. mffonsec@gmail.com]

2019/06/08

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - o epílogo


Quanto ao epílogo, importa precisar que o leitor, à data, terá interiorizado a ideia de que aquilo que o protagonista buscava fora alcançado, razão pela qual se pode afirmar que, após o todo processual, Alberto pode ser visto como o herói que terá alcançado a sua aparição. Mas não só. Além da própria revelação do seu ser, o protagonista também pôde provocar a mesma revelação noutras personagens, gente com a qual entrou em contacto, com a qual privou, com a qual riu e sofreu, como é o caso das filhas do Dr. Moura, como é o caso do Chico, como é o caso do seu aluno Carolino – entre outros. Aliás, a palavra aparição, presente inclusive no título e que, segundo o próprio narrador, consiste no primeiro contacto do homem consigo mesmo, isto é, na primeira indagação em torno do seu eu, é usada de modo recorrente ao longo da obra, com o intuito exclusivo de acentuar, claro, a importância desse constante processo de busca e de descoberta – um universal do ser humano.
Falei de herói. No entanto, é bem possível que o termo encerre um certo tom hiperbolizante, pois que, tendo em conta a matéria tratada no epílogo, teremos de concluir que a matéria é, por assim dizer, ambivalente, porquanto vai do prosaico à reflexão filosófica ou teorética. Com efeito, é aqui que ficamos a saber que o narrador e protagonista alugou uma casa em Faro, pois que houve um concurso para Faro [2009: 241]. É aqui que ficamos a saber que o eterno Manuel Pateta, se encarregou de toda a logística, mas que, apesar de tudo, voltará a Évora, “como da primeira vez” [2009: 242], mas, desta feita, para se despedir do “bom homem” [idem], isto é, do seu reitor. É aqui que ficamos a saber que Carolino, o Bexiguinha, assassinou a bela Sofia. É aqui que ficamos a saber que a sua mãe, lá longe na sua Beira, “morreu numa noite de Novembro, precisamente na véspera de Tomas ser pai pela décima vez” [2009: 245]. Enfim, é aqui que sabemos que casou. Que adoeceu. Que se retirou do ensino.
Falei de herói. Privamos com o comezinho. Deparamo-nos com um filho que não foi ao funeral da mãe. Que o pariu. Com amor. E ternura alguma. Mas?... Falemos claro: falei de um herói, o sartriano, que consiste num “homem que perdeu o seu lugar de encontro mútuo, de reconhecimento mútuo” [2009: 241]. Mas vejamos: “uma vida não chega para nos reconhecermos irmãos. Que fazer, porém, se eu sei que uma fraternidade só pode construir-se numa evidência de raízes e o dever só existe na inaceitão, quero dizer, na submissão ao que está fora de nós? Aquilo de que falo está dentro de mim, sou eu... Se algum crime houve em mim, foi só o de ter nascido” [2009: 241]. Sim. Falei de um herói existencialista, percebendo embora que “a noite avança, que a nossa cidade arde sempre. Que vai “fundar outra noutro lado “ [2009: 243]. Falei de um herói que, à força de se questionar, percebeu, finalmente, que “o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros […] Não me pergunteis como consegui-lo, não me pergunteis. O que é evidente aparece. Mas nestas noites de insónia em que me vou perscrutando, neste esforço natural como o da terra, em que me vou revelando, eu pude ver, em instantes de fulgor, o que me era, o que me cumpria, o destino que me gravara. E ver é conquistar, possuir. O terreno é bom, o terreno é este [2009: 243].
Sim! Falei de um herói para quem “o tempo não existe senão no instante em que está. Falei de Alberto Soares, o filho do Dr. Álvaro Soares, o professor de liceu, o inquilino do Sr. Machado, o amigo de Cristina, de Ana e de Chico, o amante de Sofia, o rival de Carolino – falei do exegeta, ou melhor, do monge [2009: 16], que se resolve neste termos: “Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora que me projecto? O meu futuro é este instante desértico e apaziguado. Lembro-me da infância, do que me ofendeu ou sorriu: alguma coisa veio daí e sou eu ainda agora, ofendido ou risonho: a vida do homem é cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece –, centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando.” [2009: 246]
Perceba-se o escopo filosófico do dito: o instante presente constitui a totalidade da realidade humana, quer dizer, toda a vida que pulsa e palpita, porquanto é aí – nesse presente – que todo o passado se reabsorve e se reinventa, graças a esta constante necessidade de manter sempre vivos os momentos de aparição, ao passo que o futuro, tal como o passado, não existe em si mesmo, mas apenas e tão-somente como mera projeção mais ou menos irreal e inverosímil, uma vez que o futuro representa, in limine, a morte inevitável e irreversível.
Falei de herói, sim! Que está só. Que se reconhece ufanamente só, a exemplo, dos filósofos de tendência existencialista, que, em geral, negam a existência de Deus, e, destarte, enjeitam a sua força criadora, assim como a ideia peregrina de uma eventual continuidade da vida no post mortemOra, na posse deste aparelho teorético, incumbe, por conseguinte, ao protagonista do romance existencialista a tarefa de encontrar uma resposta plausível para o absurdo da vida e para a inverosimilhança da morte, a qual surge, regra geral, pelo viés do tempo de natureza cíclica, iludindo, assim, o início e o fim absolutos. Significa isto que a morte, tão assustadora para Alberto, por exemplo, não constitua mais uma ameaça, nem represente o fim do que quer que seja. Daí, a constante evocação que o protagonista faz dos ecos de uma memória mais ou menos remota e longínqua, cujo objetivo consiste, muito justamente, em emprestar existência às ruínas, às construções materiais das casas, aos móveis, às ruas. Em suma, o mundo objetal surge, desse modo, povoado de indeléveis memórias, as quais, tal um complexo jogo de sombras, convocam um passado que, apesar de tudo, não deixou de existir, porquanto os seres humanos ainda as vivem e as guardam, ainda que de forma inconsciente…

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - a intriga


Relativamente à intriga, o universo contado, esse é-nos retrospetivamente oferecido pelo olhar panó[p]tico de Aberto Soares, alguns – aliás, muitos – anos mais velho, numa analepse de natureza reflexiva e intermitente, cuja trama diegética relembra o passado e analisa as peripécias então ocorridas – espécie de introspeção mais ou menos profunda àquele ano da sua vida, acompanhada de recordações longínquas, mas sempre relacionada com a família e com a terra que o viu nascer – Gouveia.  
De resto, Aparição não é, de todo, um romance de ação. Longe disso. Trata-se, antes de mais, de um romance filosófico, iniciático e propedêutico, neste sentido que o romanesco, neste caso de figura, se funde com as cores próprias da reflexão, ou, para dizer o mesmo por outras palavras, digamos que se encontra, fundamentalmente, ao serviço das questões metafísicas – e que a trama romanesca mais não faz do que potenciar.
Não obstante o exposto, importa, contudo, ter presente que a ação de Aparição é bipartida, neste sentido que existe toda uma série de acontecimentos em torno da família Soares [numa aldeia da Beira] e uma outra bateria de factos que envolvem, sobretudo, a família do Dr. Moura [em Évora], sendo que o protagonista, Alberto Soares, participa de um e de outro ciclos. E, note-se, não é esta mera coincidência que, por certo, faz dele o protagonista da trama diegética. Isso seria uma falácia, quiçá uma incongruência. Não. O que, na realidade, lhe confere esse estatuto de primazia diegética é, isso sim, o peso que lhe cabe na problematização do conteúdo carreado para o universo contado. E, nesta matéria, Alberto Soares constitui, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os aspetos dessa problematização, porquanto é ele que, constantemente, se confronta -  e se vê confrontado – com todas as outras personagens: as que de debatem com este tipo de dilemas existenciais [como é o caso de Ana, Sofia ou Carolino] e as que não se deixam afetar por estas questiúnculas de intelectuais [como é o ocaso de Alfredo Cerqueira ou de Chico].
Por outro lado – e sem prejuízo do que acaba de ser dito – importa ter presente que, pela sua complexidade e densidade psicológicas, e, acima de tudo, pelo papel que desempenha na economia da obra, Sofia, sim, Sofia “bela. Como um veneno” [2009: 185], constitui, pelo seu relevo, a segunda personagem do romance, sendo que a jovem erige, à laia dos romances burgueses, um triângulo amoroso perfeito com Alberto e Carolino, quer dizer, entre o professor e o aluno, respetivamente. Mas não é tudo. Com efeito, dos acontecimentos ocorridos em Évora e que implicam diretamente a família Moura, vislumbra-se, ainda que virtualmente, um outro fio condutor – e triangular – que desemboca e se centra em torno de Ana, a mulher do rústico Alfredo Cerqueira: é que, um repelão a mais ou a menos, um argumento filosófico a mais ou a menos e a insatisfeita esposa do bom Alfredo “com o seu sorriso oco à maneira de um velho desdentado” [2009: 93] cairia de boa vontade nos braços de Alberto.
      Posto isto, e tendo em conta esta duplicidade diegética, podemos classificar como ação principal toda a intriga que envolve, quer Sofia, quer Ana, sendo que, no que toca à primeira, citaremos, assim um pouco ao acaso, [i] o seu primeiro encontro a dois [em casa do Dr. Moura], [ii] as picantes lições de Latim, [iii] as conversas de Alberto com Carolino; [iv] um certo encontro metafísico e as relações físicas entre Alberto e Sofia, [v] o episódio da morte da galinha, [vi] as relações de Sofia com Carolino, [vii] as intermitentes relações de Sofia com Alberto, [viii] os ciúmes de Carolino e a louca fascinação de matar Alberto, [ix] o assassínio de Sofia por Carolino], ao passo que, no que concerne Ana, poderemos citar, por exemplo, [x] a sua mal dissimulada angústia metafísica, [xi] a sua frustração de mulher infértil, [xii] a sua humilhação relativamente ao marido [ainda que sublimada], [xiii] o seu espírito terra a terra, [xiv] as suas preocupações de exclusiva ordem prática, [xv] a sua natureza exibicionista, [xvi] a sua necessidade de afirmação enquanto “mulher”, [xvii] a morte de Bailote [que lhe permite recuperar a sua maternidade, pelo viés da figura da adoção], [xviii] a morte de Cristina [que lhe permite transferir o seu potencial amor materno), [xix] o regresso à crença, à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela dádiva do marido, a saber, os dois filhos mais novos de Bailote; já no que diz respeito à ação secundária, podemos considerar todo o conjunto de acontecimentos ocorridos no seio da família Soares, na Beira, a saber, [a] a reunião e a apresentação da família, na altura das vindimas, [b] a morte súbita do pai, [c] a decadência da mãe e seu desinteresse pela vida, [d] a morte do cão Mondego, [e] a questão das partilhas a pedido da mãe e [f] o desentendimento entre os três irmãos, sendo que, ao monge [2009: 16], lhe coube em sorte o velho casarão da família – e que, como se viu, terá servido de laboratório para o seu relato simultaneamente memorialista e filosófico…

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - o prólogo



A Aparição de Vergílio Ferreira inaugura a fase existencialista do autor, e, neste sentido, pode legitimamente falar-se de um livro situado a meia distância entre o romance e o ensaio, o que significa, entre outras coisas, que, para lá da trama eminentemente romanesca, entrelaçada de sequências narrativas encaixadas, a Aparição vale, sobretudo, pelo punhado de questões filosóficas, metafísicas e existenciais que coloca ao leitor universal. Aliás, pode mesmo afirmar-se que o livro obedece a uma subdivisão tripartida da sua matéria, porquanto o narrador, em guisa de prólogo, começa por escrever:

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. […] E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso, pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte […] Súbito, neste silêncio mineral, a porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os pés ao luar sem dizer nada: ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra. Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre se, angustiada, a flor da comunhão… [2009: 9-11]
Está dado o mote. Está lançado o seu programa de ação. E, doravante, caberá a Alberto, o protagonista, partir à descoberta da sua condição, tal como havia feito André Malraux, na sua Condition Humaine. Caberá a Alberto, na esteira da teorização de Jean-Paul Sartre, restaurar a plenitude do seu ser, quer dizer, [re]encontrar a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura de cada gesto [ibidem].
Assim, pois, Alberto Soares, o professor de liceu, para lá do tom memorialista da intriga, está incumbido de explicar, ao longo de toda a obra, o sentido derradeiro da vida, e, correlativamente, a dimensão mais ou menos inverosímil e irreal da morte [“Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em função da inverosimilhança da morte” (2009: 43] e que segundo o mesmo “nunca mais até hoje eu soube inventar outro” [ibidem].
Ora, tendo em conta a importância diegética da personagem, à volta da qual tudo gira e gravita e volteia e rodopia, importa perceber de quem se trata: é o filho do meio de um casal, cujo pai é médico e a quem os seus dois irmãos, Tomás e Evaristo, lhe deram a alcunha de monge [2009: 16]. Dito por outras palavras, é um rapaz um tanto ou quanto solitário, um jovem que parece querer espalhar as suas teses junto dos outros, que procura apoquentá-los-los com os dilemas basilares do Homem face à vida. Em suma, é este Serrano, absorto nos seus pensamentos e divagações, que assumirá a voz de toda a narrativa e que se afirmará como a personagem catalisadora de toda a ação.
E, note-se, tudo começa com um desaparecimento [quase me apetecia falar de desaparição!] mais ou menos trágico: o do seu pai, Álvaro de seu nome, que tomba no momento em que se encontra, à mesa, reunido com a sua família. Depois, vemos Alberto Soares em plena cidade de Évora, depois, ali na Praça do Giraldo, local em que se lhe abre um “obscuro labirinto onde julgo repercutirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do tempo e da morte” [2009: 14], e, finalmente, no liceu da cidade, desta cidade de Évora que o protagonista apostrofa nestes termos: “Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis! [2009: 22]. Será, por conseguinte, neste palco cantado de forma elegíaca e sorumbática, que o Doutor Alberto vai encetar a busca mais ou menos incessante da verdadeira aparição das coisas, daquelas evidências que quanto mais expostas menos se veem. É aqui, nesta Évora “enredada de ruas como de velhas ciladas, semeada de ruínas, de arcos partidos, nichos de santos das orações de outras eras, janelas góticas, como olhares embocadas“ [2009: 21/2 ] que o protagonista se vai tentar descobrir a si mesmo, que vai tentar alcançar o seu “eu”, compreender a sua existência e refletir sobre a maneira de “ajustar a vida à morte” [2009: 61], buscando a sua própria aparição, isto é, a revelação instantânea de si a si próprio, como Carolino, o Bexiguinha, no-la mostra [a propósito da linguagem]:
Também fiz outra experiência, senhor doutor.
Que experiência?
Bem… Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
Mastigar as palavras?
Bem… É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra, já não quer dizer nada.
 Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
Quantos anos tens tu?
Dezassete.
Gostas de fazer versos, de escrever?
Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
Tu percebeste o que eu queria dizer?
Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso. Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.” [2009: 67].
Como se depreende pelo exposto, a temática omnipresente no livro prende-se, na sua essência, com um punhado de questões de teor eminentemente filosófico e reflexivo, cuja problematização advém, em linha reta, das teorias existencialistas de Jean-Paul Sartre, e, posteriormente, discutidas [ou deformadas?] por Merleau-Ponty, não obstante Vergílio Ferreira se reivindicar e se assumir como uma espécie de alter-ego do autor de L’Etre et le Néant
Com efeito, a obra é, no fundo, uma tentativa de apaziguamento, por parte de Alberto, que, na impossibilidade de encontrar uma fórmula de acesso às questões inerentes à vida e à existência, entre as quais se podem destacar, por exemplo, a morte do seu pai e a do seu Mondego, logra, todavia, obter um sentimento da comunhão do ser consigo mesmo – entendimento fulcral da condição humana – alcançado pelo viés da fusão do passado [enquanto memória do eu], do presente [enquanto indagação do eu] e do futuro [enquanto centro de expectativas do eu] que, em conjunto, e sem prejuízo da sua brevidade, contribuem para a aparição. De resto, a presença de um narrador autodiegético corrobora a ideia do ser entendida como centro de si, e, a partir do qual, são estabelecidas as múltiplas relações com o mundo exterior, o que significa que os problemas de ordem existencial estão umbilicalmente ligados ao desenvolvimento de um tempo interior e relativizado, isto é, sem qualquer implicação crono-lógica. Que, admitamos, Vergílio Ferreira parte do pressuposto filosófico de que Deus não existe, e, por conseguinte, não existe uma força criadora externa ao homem, nem uma vida após a morte, pelo que cada ser acaba sendo entendido como um todo em si e como um centro do qual as forças se irradiam, inclusive, a do próprio tempo. Assim, o homem é o ser da ação e do poder, o que implica considerar que o ser humano se constrói e se reestrutura no presente.


2019/05/18

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - o introito


Revisitei o romance Aparição de Vergílio Ferreira. É que ele há livros que, tal como algumas mulheres, merecem uma segunda oportunidade. E a Aparição pareceu-me um deles. Sim. Foi uma leitura segunda, mas com um olhar sempre novo, ou, pelo menos, renovado. Que é sempre um enorme prazer privar com o narrador, ou, se preferirmos, com a personagem Alberto Soares, um anónimo professor de liceu, que, num setembro qualquer e igual a tantos outros, chega a Évora – a cidade branca [p. 14], ou melhor, a cidade-ermida [p. 14], aparentemente tão propícia ao recolhimento...

Sim, Alberto! Só tu sabes. Só nos sabemos. Vens de luto, homem! Acabas de perder o teu pai de forma repentista e cruel, como são cruéis e inesperadas todas as mortes. Triste episódio, esse, caro amigo! Na verdade, e como bem dizes, mas de que nadas a vida se sustenta [p. 25], com efeito! Teu pai, ali, reunido em família, a esboçar projetos íntimos, e, de repente, não é?... De súbito, aquele arranco [p. 20], aquele gesto de quem aperta o coração [p. 20] – o coração e o mundo inteiro! – na concha da mão. E, por fim, a queda de um corpo que tomba, inanimado, no chão… 

Eu sei, Alberto! Eu sei que isso dói pelo lado de dentro da nossa própria alma. É uma marca invisível que, doravante, transportarás pela vida fora – e pelo sonho adentro. Fala-te alguém de scarmentado! Eis, pois, a razão por que sentes – e me fazes sentir – esta incrível necessidade de contar tudo isto de forma aparentemente distante, aparentemente distante e fria, como quem come uma dobrada à moda do Porto, mas sem o melhor que ela contém: o ser servida quente.

Sabes, Alberto, houve um momento – breve – que temi por ti. Sei lá! Aquele olhar a planície do alto da rampa [p. 25], ó monge, aquele sentimento de te perceberes invadido dessa plenitude de quem olha o mar do alto de uma falésia [p. 25] assustou-me. A sério! Afigurou-se-me que se tramava uma tragédia de segundo grau. Afigurou-se-me que se quebrava, assim, de repente, o fio de Ariadne. Mas claro que foi falso alarme, pois ninguém consegue contar a sua própria história, caso seja, algures, intercetado no voo essencial. Que o diga o Malhadinhas – que deixou, como sói dizer-se, o seu relato a meia distância entre a sua proeza e o seu falhanço… fatal.

Não. Em vez do lance súbito, Alberto, preferiste o lume brando, previamente alimentado pela herança paterna. Enfim, apareceste no horizonte eborense! E, com a tua aparição em casa do Dr. Moura, foram outras tantas aparições que surgiram à luz crua do dia: foi o caso da Cristina. Foi o caso da Ana. Foi o caso da Sofia. Sim, Aberto! Houve problemas de convivência e conflitos ideológicos em todas estas aproximações mais ou menos filosóficas e sentimentais. Houve questões mais ou menos irresolúveis com a etérea Cristina. E com a sofisticada Ana. E com a desconcertante Sofia. Sem falar do Chico. Nem do Carolino.

Sabes, Alberto, não vou, neste introito, alongar-me muito. Prefiro deixar todas estas questões – quer as metafísicas, quer as prosaicas – para outra oportunidade. Mas abramos, desde já, as devidas hostilidades: porquê, amigo, abdicar de um rol de amizades em torno das Mouras, sobretudo quando, como o teu amigo Chico refere, criar relações em Évora era um milagre [p. 37], pois tudo ali tinha muralhas [p. 37]? Porquê mudar-se, ao final de um ano, para a longínqua cidade de Faro, onde virias a lecionar até te afastares definitivamente do ensino? Porquê, enfim, regressares, velho aldeão, à casa serrana onde viveste a tua infância? Em suma, porquê, caro amigo, teres escolhido esse velho casarão da aldeia, de onde me escreves sobre o teu passado mais ou menos remoto e fossilizado? 

Mas que me importa, a mim, que já não te identifiques com a estética neorrealista, que, como sabes, tinha conhecido o seu apogeu no decurso da década de 40, com os trabalhos de Alves Redol e Fernando Namora – entre tantos outros? Mas que me importa, a mim, se terá sido a preocupação mais ou menos premente de abolires, na tua Aparição, essa ideia tão recorrente de denúncia e de problematização de uma certa ordem social e política em Portugal – que não levava em linha de conta as legítimas aspirações do Homem? Mas que me importa, a mim, se terá sido a tua crescente preocupação com as questões metafísicas e filosóficas, a exemplo dos textos impregnados dos existencialistas, com particular enfoque para as teses de Jean-Paul Sartre e de André Malraux? Mas que me importa, a mim, se terá sido, em suma, a tua necessidade de delineares um redimensionamento teorético em torno de um eu que busca, de modo mais ou menos incessante, a sua totalidade?

Sim, Alberto! Que me importa, a mim, tudo isso, se continuamos à procura das respostas para questões tão básicas e prototípicas do tipo: Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Ah! Que alívio, este, de sabermos que o Homem está só. Só e entregue a si próprio. Sem Deus  que está morto. Porque sim [p. 40]. E sabemos que está morto porque não cabe na harmonia do que somos. Não cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que aborrecemos [p. 40] ou que abandonamos. Ah, Alberto! Como tudo isso nos pesa como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos [p. 41].