2011/11/27

História do Cerco de Lisboa - análise crítica

Todos sabemos que Saramago não depositava grande confiança no relato histórico. Basta pensar n’O Memorial do Convento para nos apercebermos de que a alegada objetividade do historiador, segundo o narrador, não passa, definitivamente, de um logro. Com efeito, para a História, o rei D. João V construi, ou melhor, mandou construir o convento de Mafra, mas, curiosamente (ou talvez não!), nada é dito acerca dos verdadeiros contornos da obra (desde os caboucos, até as famigeradas figuras vindas de Itália...), assim como nada é avançado sobre as peripécias e a miséria dos operários atolados na degradante ilha da madeira. Convenhamos! O discurso histórico rege-se por um estilo truncado, quer dizer, invariavelmente imbuído de omissões e escandalosamente censurado por uma voz arbitrária e ilegítima – a de poder instituído, seja ele disciplinar ou qualquer outro. Significa isto que o discurso histórico não é, como muitos apregoam, uma narrativa objetiva e imparcial dos factos, mas, antes pelo contrário, a descrição de um conjunto de acontecimentos levado a cabo por um determinado sujeito escrevente – o historiador, no caso em apreço –, que, como tal, não escapa à subjetividade da linguagem, aos seus próprios condicionalismos, e, em último recurso, à ideologia dominante e institucionalizada pelo uso.

Vem tudo isto a propósito do romance de José Saramago, a História do Cerco de Lisboa, cuja temática retoma o romance histórico e cuja intriga, no essencial, mescla o quotidiano de um discreto revisor, um homem de cinquenta anos abandonado à sua sorte e a história do cerco de Lisboa, tomada pelos mouros e que D. Afonso Henriques se prepara para conquistar. Claro que não se trata de negar historicamente um facto, a saber, o da conquista de Lisboa aos mouros, em 1147. Mas para isso também não precisaríamos do relato histórico, pois que a realidade está, deítica e fenomenologicamente, à nossa frente: a capital é portuguesa e não mourisca, as fronteiras portuguesas foram fixadas desde há cerca de oito séculos e o seu todo civilizacional faz parte integrante da portugalidade. Mas para lá do facto bruto, histórico ou tangível, tudo pode ser reescrito, isto é, tudo pode ser ficcionado, mesmo que se trate de uma questão estruturante, como é o caso da ajuda – ou não – dos cruzados.

Note-se, em guisa de parênteses, que o procedimento do narrador não é novo, mas, bem pelo contrário, bastante recorrente no seu universo romanesco. Com efeito, já assim procedera com o Evangelho segundo Jesus Cristo, que mais não é do que um evangelho segundo José Saramago. Assim será com Caim, que, inocente ou culpado – ou mais inocente do que culpado, segundo o narrador – cavalga através dos séculos numa eixo espácio-temporal pluridimensional ou com A Viagem do Elefante, cujo percurso (de Lisboa a Viena de Áustria) configura o seu calvário, o seu pathos – a sua morte. Ora, a História do Cerco de Lisboa, que prefigura, antes de mais, a resiliência do ser humano ao ensimesmamento, obedece à mesma técnica descritiva, que, no fundamental, se prende com a reescrita intrasubjetiva de um segmento da nossa história coletiva. E, nesta matéria, o ponto de partida é, de certa forma, anódino: a polaridade de uma frase. Não importa. Doravante, toda a história será necessariamente diferente, quando não diametralmente oposta àquela que foi ditada pela enciclopédia. Quer dizer, por conseguinte, que a questão se colocará menos em termos de relato, isto é, de narrativa pura, do que em termos de plano descritivo. Dito por outras palavras, a diegese (o conjunto de acontecimentos narrados numa determinada dimensão espácio-temporal) encontra-se hierarquicamente subordinada ao comentário

Na realidade, a História do Cerco de Lisboa vale pelo comentário, isto é, pelo conjunto de vozes discursivas que se justapõem, se entrecruzam e se sobrepõem. Até porque a parte do cerco – o hapax – poder-se-á resumir a um título, como por exemplo, aquele que ilustra o saber enciclopédico. Mas tal não é, como é óbvio, o entendimento do narrador. Até porque a ficção começa lá onde acaba a factualidade. E, nesta matéria, para lá da conquista de Lisboa aos mouros, em 1147, a História do Cerco de Lisboa antecipa o cerco a que todos nós somos sujeitos e de que todos somos obreiros Dito isto, melhor se compreenderá que o cerco de Raimundo Benvindo Silva (mais um homem gerundivo, duplamente gerundivo, neste caso, como eram redondamente gerundivas as suas personagens de Blimunda e de Marcenda…) começa, em termos absolutos, não num deleatur, quer dizer, numa indicação técnica para supressão de texto, como era, de resto, da sua competência, mas, bem pelo contrário, num acréscimo textual, no caso em apreço, lá onde deveria corroborar o facto de os cruzados terem ajudado os cristão na conquista de Lisboa aos mouros, o pacato revisor, decidiu acrescentar um não. Doravante, é toda a história do cerco que terá de ser reescrita, e, correlativamente, será a vida do plácido revisor que sairá do anonimato. Assim, o leitor vê-se, de repente, com duas histórias do cerco de Lisboa: aquela que foi relatada pelo obscuro Osberno (em que os soldados portugueses, ajudados pelos cruzados, tomaram aos mouros, em 1147, a cidade de Lisboa) e aquela que, mercê da falsificação das variáveis contextuais (que não do facto primordial…), sairá, aos poucos, da imaginação de Raimundo. Mas não só. Na verdade, estas duas versões surgem duplicadas de outras duas histórias, de cerco, também elas: o próprio protagonista transformar-se-á, também ele, pois que, de homem solitário, anónimo, abandonado, narcísico (ele que pinta os cabelos para fintar a idade que tem), rotineiro e aparentemente fora do mercado dos desejos (apesar do olhar atento da senhora Maria, a sua mulher-a-dias…), o próprio Raimundo, dizia eu, ver-se-á envolvido numa espiral de pequenos acontecimentos, que desembocarão, inevitavelmente, num turbilhão de sentimentos, na circunstância, a sua relação passional com Maria Sara. Aliás, a transformação do protagonista vale menos, do ponto de vista intradiegético, pela sua dimensão sentimental, banal afinal de contas, como são, de resto, banais todas as histórias de amor, do que pela sua amplitude ontológica: Raimundo passará de revisor, isto é, de simples copista a um autor, ou seja, a uma persona capaz de (re)criar, de (re)interpretar, de (re)inventar o real - em vez de o decalcar... acriticamente.

Com efeito, poder-se-ia resumir a intriga da História do Cerco de Lisboa como uma história urdida no condicional, um pouco à laia da Grande Revolução Francesa. Assim, se o homem não tivesse adulterado a história primeira, se ele tivesse resistido à tentação de inserir um não lá onde a trama historicamente comprovada dos cronistas da época (cf. Osbernus [1], Martim Moniz, etc.) atestam a ajuda dos cruzados, então a editora não o teria chamado à razão (após ter detetado a lamentável fraude ao cabo de treze dias), o Costa, bonacheirão e complacente, continuaria a ser o responsável pela equipa de revisores e segundo os métodos artesanais, a direção não sentiria a necessidade de reordenar o seu organograma, contratando, para o efeito, uma especialista para a área – a Dra. Maria Sara. Mas, paralelamente, se Raimundo não tirasse partido sobre o devir das coisas conformes, se o revisor não ousasse recriar os contornos do sagrado, o homem – este ou qualquer outro – não teria oportunidade de conhecer a sua diretora (a mulher arquétipa), não teria ocasião de entrar na intimidade de Maria Sara (a voragem do desejo), e, nesse caso, Raimundo – ou um nome outro – correria grandes riscos de chegar morto antes do final da sua existência terrena…

Contudo, abandonemos a análise, não apenas pela linearidade simplista que ela implica, mas, sobretudo, porque reveladora de uma certa lógica mecânica, aliás, muito próxima daquele filósofo francês que terá desperdiçado a sua vida, tentando perceber se seria o cão que estaria amarrado à sua cauda ou se seria a cauda que estaria presa ao resto do corpo. Dito por outras palavras, não nos mergulhemos no pântano do determinismo primário [está visto que ninguém foge ao seu destino (1989: 280)], porque o destino é aquele que acabamos por traçar – voluntária ou involuntariamente e... abençoados os que dizem não, porque deles deveria ser o reino da terra – (1989: 330). Quer isto significar que o destino somos nós, ou melhor, a soma de escolhas que aí nos conduzem. Porque o homem, na circunstância, Raimundo, esse (como de resto todos nós…), escolheu muito mais do que um não: contrariou o curso da História, sem todavia o negar (Lisboa não é mourisca), enjeitou a evidência dos factos descritos, isto é, a matéria bruta que condiciona e esmaga a humanidade, recriou o seu próprio cerco, o seu próprio ideário, e, cela faisant, o revisor anulou o seu estatuto subalterno, tornou-se autor, ganhou protagonismo, fez-se homem.

De resto, e como se calculará, é esta capacidade de constante (re)definição que está na génese do homem novo, aquele que paulatinamente se procura, ou, para melhor dizer, aquele que constrói o seu próprio cerco. E, neste sentido, a História do Cerco de Lisboa pode ser definido, muito justamente, pela busca do amor, ou melhor, pelo desejo de intercomunicação das almas, tanto mais que todos nós somos narrativas para ser lidas: Raimundo procurou desesperadamente a sua Maria Sara, ainda ela não tinha rosto. Ainda ela não tinha nome - mas que importa tudo isso se genótipo se sobrepõe ao fenótipo, se a antroponímia não passa de uma mera etiqueta? Por seu turno, Maria Sara buscava-o nas entrelinhas de um cerco outro que não este – o da sua Lisboa coetânea. Como o terá, por certo, buscado na sua relação anterior e inominável. Como, decerto, continuará a buscar, no seu Raimundo, um Raimundo outro que não o revisor, um Raimundo capaz de sonhar, capaz de se reencontrar consigo próprio, em suma, um Raimundo autêntico que não precisa de fintar a linearidade cronológica condensada na idade - que é tudo menos um valor absoluto...

Assim é. O quadruplo cerco está consumado. O de Lisboa de 1147, aquele que ficou para a História. O que saiu da capacidade criadora de Raimundo autor e que acaba com a morte violenta e relampejante do almuadem Allahu akbar. O cerco de Mogueime e Ouroana, duplos de Raimundo Benvindo e Maria Sara. Cercos que, tal como a sombra, ficam, na penumbra, envoltas em mistério, em contornos indefiníveis, em silêncio. Ou em suspenso... à espera, por certo, de ser reinterpreados. Qual deles seguir, entretanto? Ambos são tangíveis, a seu modo, pois o sonho e a realidade andam de mãos dadas, e, em boa verdade, nunca se sabe se aquilo que nos acontece, na realidade, foi alguma vez sonhado ou se foi a factualidade que deu lugar ao sonho. E, nesta matéria, tudo quanto podemos dizer é que a realidade parece potenciar o sonho. Mas o contrário também parece ser verdade. Paradoxal? Ainda mal. Mas note-se que, enquanto não alcançarmos a verdade, isto é, enquanto não encontramos o melhor intérprete para a nossa obra, não a poderemos corrigir. Porém, se não a corrigirmos, não a poderemos alcançar. Entretanto... Ora, entretanto não nos resignemos. Escolhamos...

De resto, creio ser consensual afirmar que o romance histórico sobrevive, muito justamente, pela capacidade recreativa e recriadora do narrador. Caso contrário, teríamos, por certo, uma enumeração de factos mais ou menos aleatórios, isto é, alegadamente históricos. Mas, no caso vertente, trata-se, tão-só, de um pré-texto. E de um pretexto. Que a verdadeira história, essa, não é aquela que se conta (É como tudo – a história da mula – pode ser dita em dez palavras ou em cem, ou em mil, ou não acabar nunca – (1989: 267), mas uma outra, na circunstância, aquela que emerge, paradigmaticamente, do dito, quer dizer, aquela que envolve os seus protagonistas no seu próprio contexto, porque as pessoas são tramas individuais para ser interpretados, são narrativas que buscam avidamente o outro para ser decifradas. Caso contrário, corremos o risco, tal como escreveu Florbela Espanca, de sermos apenas /a visão que Alguém sonhou,/ Alguém que veio ao mundo pra [nos] ver/ E que nunca na vida [nos] encontrou!

Para parafrasear Voltaire, ousemos, pois, atirar o sonho pela janela do nosso quarto – ele aparecer-nos-á, triunfante e medonho, pela porta de entrada. Recorramos ao pleonasmo para melhor vincar a natureza humana: ele há universais que regem a vida de todos nós. Em tese, pelo menos. Porque, em guisa de comentário, o narrador adverte-nos de que há dois tipos de homens, os que dizem sim e os que dizem não. E não vejamos, aqui, quaisquer laivos de maniqueísmo, mas lamentemos, tão-somente, aqueles que prescindem, por este ou por aquele motivo, da sua faculdade de recriar, de inovar, de inventar, de contestar, de dizer, um pouco à laia de José Régio, no seu Cântico Negro: não vou por aí. Mesmo que não saibamos por aonde ir... pois que o importante, na vida, é interpretar-se. Saber interpretar-se. Ser capaz de se reintrepretar...

Raimundo, esse, foi salvo por um não. Raimundo, esse, terá escapado à morte pela sua capacidade recriadora. Raimundo terá, muito provavelmente, chegado vivo... ao fim da sua vida. Porque foi capaz de dizer não, por amor de si próprio. Porque foi capaz de renegar a arregimentação do homem face às doutrinas, às crenças, aos erros coletivos, às religiões – que tanto Deus (como Alá) têm muitos nomes, mas, curiosamente, só conseguirem ter um – o de deus (ou de alá). Muito pouco, sobretudo, quando se é deus (ou alá). Mais terá, provavelmente, feito Raimundo. Que terá todos os nomes. E, por isso mesmo, dele será o reino, não dos céus, mas da terra - porque à terra pertence. Mensagem urbi et orbi. Foi o Raimundo (rei do mundo), um homem gerundivo que o disse. Dicitur.
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[1] Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) Osberno, trad. de José Augusto de Oliveira, pref. de Augusto Vieira da Silva, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1935 (2.ª ed., 1936).
© Manuel Fontão

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