2014/11/08

Funcionamento sintático e pragmático de [MAS]

1. O que dizem as gramáticas… 

Silva (1824: 127) engloba no mesmo capítulo todas as conjunções (coordenativas e subordinativas) e avança que: 

 (1) As conjunções indicão os modos de ver da nossa alma entre diversas sentenças. e, no caso que nos interessa aqui diretamente, refere apenas que a adversativa modifica a sentença por oposição.

 Já Barboza (1930: 381) refere que:

 

Em suma, tanto um como outro não se alargam muito em comentários, dado que as suas gramáticas não obedecem, propriamente, a critérios de ordem pragmática. Assim, mergulhemos na Estilística da Língua Portuguesa, cujo autor vislumbra vários empregos, como por exemplo, o que abaixo se descreve (1959: 232): 

(2) Sempre que vemos o homem revoltar-se contra o seu destino, encontramos a conjunção mas, que então já não o é, mas uma espécie de advérbio, como o foi na sua origem (MAGIS=MAIS). Exemplo típico desta atitude é a frase corrente: “Mas eu é que já não posso com isto!” Basta tirar a partícula adversativa para ver o que a frase perde em energia positiva, em revolta declarada.

Noutro passo, Lapa (1959: 232) recenseia outro emprego: 

 (3) E como na esfera do sentimento se vai facilmente de pólo a pólo, não é talvez de estranhar que encontremos a adversativa numa significação de supresa agradável, como nesta frase exclamativa: “Mas que belo quadro!” Talvez que estas expressões nascessem por analogia daquelas em que o mas está na sua verdadeira função adversativa: “Mas que tipo insuportável!” Ou então poderemos admitir que todo o movimento de surpresa pressupõe um mas: um indivíduo espera encontrar uma coisa, mas sai-lhe outra, ou agradável ou desagradável

e mais à frente (1959: 233) descreve um outro emprego da adversativa, na circunstância, um sentido causal. 

 Por seu turno, Matos (2003: 566) refere que 

(4) As conjunções adversativas ou contrajunctivas exprimem prototipicamente um contraste entre os membros coordenados. 


2. Distribuição do valor de contraste no PE

 Há autores que se inclinam para a hipótese de não se verificar, no Português Europeu, uma espécie de continuum, a exemplo daquele que se verifica em Espanhol e em Alemão, ou seja, reconhecem um valor prototípico que se opõe por exemplo à matização do espanhol:

  

Os factos, todavia, parecem ditar o contrário: 
 
(5a) Pedro é pobre, mas alegre.
(5b) Pedro es pobre, pero feliz.
(5c) Pedro é pobre mas ao menos feliz.
(5d) *Pedro é pobre, mas apenas feliz.
(6a) Vítor é não rico, mas remediado.
(6b) Vítor no es rico, sinon subsanado.
(6c) Vítor é não rico, mas apenas remediado.
(6d) *Vítor é não rico, mas ao menos remediado.
(7a) Carlos não é rico, mas remediado.
(7b) Carlos no es rico, sinon subsanado.
(7c) Carlos não é rico, mas apenas remediado.
(7d) *Carlos não é rico, mas ao menos remediado.
(8a) Rui é engenheiro, mas não médico.
(8b) Rui es un ingeniero, pero no médico.
(8c) *Rui é engenheiro, mas apenas médico.
(8d) Rui é engenheiro, mas ao menos médico.

Daqui se infere que o esquema conceptual do valor de contraste pode ser representado como segue: 

(5) p, mas q 
(7) não p, mas q 
(8) ? p, mas não q 

De resto, (8) encerra, antes de mais, um valor aditivo, a exemplo da conjunção coordenativa copulativa [1] e prova disso é a frase abaixo: 

(8e) Rui é engenheiro e não médico.

do mesmo modo que contém um valor de precisão, ou melhor, uma marca de reformulação do alocutário face à imprecisão do seu locutor. 
 
Aliás, este valor de contraste encontra-se muito próximo da concessão, como se pode verificar pelas frases que se seguem: 

(9) p ainda que q [É alegre, ainda que pobre].
(10) Se bem que A, b [Se bem que pobre, é alegre].


3. Valor informativo da adversativa

Poder-se-ia, à primeira vista, pensar que a partícula adversativa não implicaria, em caso algum, uma informação para lá do valor argumentativo das proposições implicadas. Tal não é o caso, como se poderá confirmar mais abaixo. 

 3.1. p, mas q

 Em (5), por exemplo, afirma-se, não apenas que Pedro pertence a determinado conjunto, na ocorrência ao conjunto dos pobres [2], mas também que o indivíduo de que se fala (Pedro) constitui um valor de exceção relativamente ao grupo considerado. Dito por outras palavras, este valor excecional inscreve-se na base do pressuposto, segundo o qual os pobres são tristes. Quer isto dizer que este tipo de ocorrências obedece à estrutura do silogismo, pois que (5), aqui atualizado em (11) possui uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão

(11) Pedro é pobre, mas alegre.
(11a) Os pobres são tristes [premissa maior].
(11b) Pedro é pobre [premissa menor].
(11c) Pedro é triste [conclusão].

Como se pode observar, existe uma pressuposição de existência de um nexo de implicação entre os predicados /ser pobre/ e /ser triste/, o que significa que o pressuposto envolve uma tendência geral de expectativas que, na asserção total /Pedro não é triste/, seria denegada. Por outras palavras, /Pedro é triste/ é a conclusão r, mas que a presença da adversativa retifica, assumindo o valor [~r], e, correlativamente, representando um acréscimo de informação, pois que obriga a uma redefinição do cálculo interpretativo [3]. Daí que a frase adversativa seja conhecida como enunciados do inesperado...


 3.2. p, mas p 

 Uma estrutura curiosa é aquela que, de forma esquemática, se pode representar por p, mas p e que se pode exemplificar como se segue: 

(12) O Gervásio é burro, mas burro.
(13) É branco, mas branco.
(14) ? É pedra, mas pedra.

A repetição de p, acompanhada da partícula adversativa, funciona como um intensificador, isto é, à categoria da /burrice/ e da /brancura/ acrescenta-se um valor superlativizante situada no topo da escala [+ burro] e [+ branco]. 

Em contrapartida, o exemplo (14) não admite facilmente uma leitura escalar, muito embora se possa admitir uma leitura indireta, a saber, que /a porta/ de (14) cumpre integralmente todas as características necessárias e suficientes para ser considerada um protótipo do objeto: [+ robusto]; [+ compacto]; [+ seguro], etc. Significa isto que a estrutura em causa pressupõe, uma escala de valores aberta, implicando. na circunstância, uma reavaliação das propriedades prototípicas do objeto. 


3.3. ~p, mas q 

Um processo de intensificação muito próximo do anterior é aquele que se exemplifica a seguir: 

(15) O Antunes não é pobre, mas paupérrimo.
(16) A Sara não é bonita, mas muito bonita.
(17) O Carlos não foi ao concerto, mas ao teatro.

Na verdade, o esquema invalida o valor atribuído num determinado conjunto [I], negando a informação, para a corrigir em seguida, ou melhor, para a situar, de novo, na escala de valores de [I]: destarte, Antunes e Sara ocupam uma posição diferente na escala da /pobreza/ e da /beleza/, respetivamente. Por seu turno, (17) nega uma informação de um conjunto [I], tida como imprecisa e acrescenta um dado novo, diferente do anterior, isto é, pertencente a um conjunto [J]. 


3.4. mas é 

Uma estrutura que parece peculiar do português contemporâneo é a clivagem de /mas é/, conforme os exemplos abaixo: 

(18) Arranjem mas é esta estrada.
(19) O Carlos foi mas é ao teatro.
(20) A Joana ficou mas é surpreendida.

Os enunciados (18-20) têm em comum dois factos correlativos, a saber: 
(i) a corroboração de um traço informativo [em (18), assume-se que alguém de perfeitamente inútil se propõe, finalmente, fazer algo; em (19), apresenta-se como certo o movimento de Carlos, ou seja, a sua saída de casa e, em (20), assume-se que a Joana foi alvo de uma mudança de estado de espírito]; 
(ii) a negação da informação aduzida em (i), isto é, aquela que foi dada em exemplo [em (18) nega-se todo o arranjo que não se circunscreva à /estrada/, em (19) nega-se toda e qualquer saída que não se circunscreva ao /teatro/ e em (20), nega-se toda a alteração do estado de espírito de Joana que não se circunscreva à /surpresa/ de que terá sido alvo].

 De tudo quanto ficou dito se pode concluir que a estrutura clivada /mas é/ nega apenas um constituinte da frase (e não a totalidade frásica), acrescentando, por contraste, uma informação que tem valor de retificação. 


4. Bibliografia

Barboza, J (1830). Grammatica Filosófica da Língua Portugueza. Lisboa: Academia Real 
Cunha, C et al (1984). Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: João Sá da Costa 
Mateus, M et al (2003). Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa : Editorial Caminho 
Solano (1985). Gramática Analítica da Língua Portugueza. Pariz: Aillaud 
Souza, M (1804). Grammatica Portugueza. Coimbra: Real Imprensa da Universidade

________________ 
[1] Ducrot (1980: 72) não reconhece um valor informativo acrescido à copulativa /e/, mas, numa perspetiva pragmática, as duas ocorrências que se seguem não se situam, em rigor, no mesmo plano informativo:
(i) O vencedor é…
(ii) E o vencedor é… (forma, aliás, consagrada pelas cerimónias de entrega de prémios).

[2] É aquilo que em linguística se designa por dito (posto).
[3] Note-se que a informatividade é inversamente proporcional à probabilidade.


© Manuel Fontão

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