2010/02/27

PATRIMÓNIO_03_O PAPEL DA UNESCO

Toda a mudança é um processo micropolítico
Andy Hargreaves

A UNESCO deve, antes de mais, repensar o homem à luz do que ele se foi tornando. Até porque não havendo homem superior ou de ordem sobrenatural a quem pudesse reportar as suas disparidades, até porque não conhecendo o paradeiro do Grande Arquiecto (pelo menos não terá deixado endereço fixo...), o homem virou-se, finalmente, para a sua interioridade, quiçá, para a sua intimidade. E, neste novo contexto filogenético, sobra instituição, sobretudo quando os seus modelos comportamentais se inscrevem, ainda, nas teorias do homem velho. Mas não só. Também sobra matéria legislativa, na qual, aliás, ele não participou, nem o seu nome consta, curiosamente, do livro de actas em uso. Ora, todos nós sabemos, quanto mais não seja de forma mais ou menos intuitiva, que o grau de adesão ao projecto (cf. Pedagogia do Projecto) depende, em última análise, da motivação bottom-up (que vai das base ao topo da pirâmide), o que significa que cabe, em primeira instância, aos indivíduos, tomados isoladamente, a reformulação (em caso de necessidade) do pacto social existente – porque o cultivo do (seu) jardim (conceito, todavia, ateu e burguês, nascido do luteranismo… mas ao qual Voltaire no seu Candide ou l’Optimisme já faz referência concreta) depende do seu cronograma de acção. Enfim, sobram cadernos de encargos, sem que ele, o homem hodierno, tenha outorgado ao burocrata plenos poderes sobre o seu devir de homem livre. Quer dizer, escreveram - e continuam a escrever - nas suas costas. O que não é bonito. O que não é elegante. O que não é ético. E, como tal, o edifício institucional fica sujeito a caução ulterior...

Insinuei, um pouco mais acima, que o tempo das organizações tentaculares e centralizadas têm os dias contados. Assim parece. Mas urge compreender a razão das coisas. E, para tal, importa ter presente, primeiro, o pretexto (pré-texto) da mudança, que, no plano ideológico, corresponde ao mal-estar da modernidade. E que se caracteriza, acima de tudo, por uma grande ambivalência de signos, pois que a produtividade, a eficiência e a prosperidade só são conseguidas à custa de uma certa desqualificação profissional – e humana. É, aliás, num contexto da especialização das tarefas, da racionalização dos meios, da optimização do produto (refiro-me, em concreto, a Charles Taylor...), em suma, é num contexto da certeza científica que se dá o advento do Estado-Nação, do Estado-planificado que, entre outras coisas, promoveu a educação de massas e institucionalizou a cultura como um subproduto social. Isto é, colonizou o homem. Invadiu o seu espaço. E ele, o Homem, refugiu-se mais ainda... para dentro de si próprio! E é lá que ele fixou residência. Exilado ou forcluso...
Assim, e face a este novo estado de coisas, em que a natureza anacrónica das organizações (UNESCO inclusive) se torna cada vez mais evidente, coexistem, num contexto gradual de conflitualidade, duas respostas sociais imbricadas uma na outra: uma, moderna (a do homem velho) e, outra, pós-moderna (a do homem livre).

Importa, por outro lado, perceber o contexto da mudança (que terá escapado às organizações do homem velho), cuja trama conceptual se prende, no essencial, com a crescente flexibilização da(s) nova(s) economia(s), as quais, por seu turno, se caracterizam por tecnologias e processos de trabalho mais dóceis e sustentados, por um novo tipo de relações entre o produto e o consumo, por uma nova utilização do espaço geográfico e por uma rotação constante nas atribuições das tarefas. Mas não só. O edifício institucional, na sua grande parte, não terá igualmente entendido o fenómeno da globalização, cujo processo, paradoxal, pretende subjugar o homem livre ao capricho dos grandes grupos económicos – o que faz aumentar exponencialmente o sentimento de injustiça (a nível planetário) e a xenofobia. Aliás, acrescente-se, em guisa de parênteses, que um dos grandes opositores ao fenómeno da globalização e que, a meu ver, tem colocado o problema na sua verdadeira dimensão, é o Presidente do Brasil, Lula da Silva, que, preocupado com as assimetrias entre o Norte e o Sul refere que o poder está concentrado num homem branco de olhos claros
Se é tudo nesta espécie de resquiat in pace do todo institucional? Mas claro que não! É que os modelos organizacionais herdados do passado recente - e a UNESCO data de Novembro de 1945 - também não terão, ainda, compreendido que o homem pós-moderno vive num clima de certezas mortas, em que o discurso (filosófico)político, os regimes legalmente instituídos, a coisa pública – tudo isso perdeu toda e qualquer credibilidade e não está (como, decerto, nunca esteve) ao serviço da cidadania e do bem do maior número. Longe disso!
Não obstante o dito, o que é que se espera, no entanto, de um modelo organizacional do nosso tempo? Que se comporte como uma espécie de mosaico fluido, quer dizer, que consubstancie uma práxis assente na flexibilidade de processos, na capacidade de adaptação (adaptabilidade), na criatividade, no sentido de oportunidade, no espírito de colaboração (interdisciplinaridade), no aperfeiçoamento contínuo (performance), na orientação positiva para a resolução de problemas (competência) e na maximização das suas capacidade de (auto)aprendizagem (ductilidade). Com efeito, todos nós sabemos, hoje, que os modelos organizacionais devem responder às expectativas do(s) seu(s) público(s), através, por exemplo, de inquéritos de satisfação - entre outros meios de diagnose - e a UNESCO, pelo menos tanto quanto julgo saber, nunca procurou obter a devida retroalimentação junto da sociedade civil! Tant pis!
Que se espera mais do todo institucional hodierno? Que adeqúe os seus programas de acção aos novos fenómenos da individualidade emergente (sem limites, aparentemente, consignados), como por exemplo, a blogosfera e as redes sociais. Ah sim! Objectar-me-ão, neste passo, que tais modelos comunicacionais, decorrentes das sociedades da imagem instantânea, implicariam uma perda substantiva da consciência do eu institucional(izado), e, consequentemente, resultariam numa volatilização da sua própria identidade. Pura ilusão de óptica! Porque, vejamos!... Os pontos de referência concretos, auto-referenciais (!) sairiam, por certos, reforçados pela adopção de modelos de comunicação horizontais e abertos a novos públicos (proceder-se-ia, assim, a uma recolha de consciências bem mais eficaz do que o método de Blimunda...) e a instituição ganharia – como conviria – a nova batalha da simulação segura, superveniente da crescente sofisticação tecnológica, assim como optimizaria, por certo, a compressão do tempo e do espaço, cujo processo se traduz, em substância, na redução de despesas de produção, na flexibilização das tarefas e na comunicação instantânea… e espontânea. Genuína. Autêntica. Humana. Como convém, ou melhor, como conviria...

Na verdade, só uma mudança radical da atitude das organizações para com o indivíduo conseguirá vencer a desconfiança que pende sobre os seus pesados e herméticos muros de silêncio. Porque só assim é que é possível estabelecer laços mais significativos e contínuos entre os múltiplos actores da sociedade civil, a saber, os indivíduos em carne e osso – os verdadeiros actores e destinatários últimos da mudança. Ora, em vez disto, o que é que se vislumbra? Que as organizações, que designo de homem velho, por anteverem, apenas, uma trajectória programática clara e previsível, quiçá única e inflexível, por adoptarem uma visão monocromática do real e uma orientação unidireccional da tarefa, para além, claro, de se nortearem por princípios exclusivamente corporativos, como por exemplo, a acumulação gradual dos benefícios, a focalização nas perspectivas de carreira, nas comissões de serviço, etc., essas organizações, dizia eu, confinam-se tão-somente ao(s) seu(s) espaço(s) físico(s), continuam reféns de interesses paroquiais, refugiam-se na sua torre de marfim, de onde prescrevem urbe et orbi um punhado de receituários para uma humanidade supostamente enferma, cleptomaníaca, piromaníaca, iconoclasta, e, em última análise, incapaz de tomar em mãos o seu porvir. Mas, por paradoxal que possa parecer, a própria UNESCO, todavia, revelar-se-ia impotente para evitar os crimes de lesa-património em terras talibãs (cf. os Budas de Bamiyan no Afeganistão), assim como o homem vulgar, no passado, terá ficado atónito e incrédulo perante a castração dos ícones religiosos por ordem de Roma...

Parece, doravante, óbvio que as vestustas organizações, herdeiras do sofrimento do século (englobando, neste sintagma, as 1.ª e 2.ª Mundiais, entre outros desentendimentos tribais...) não estão ao serviço do Homem coetâneo, deixaram de responder às suas necessidades, abandonaram-no à sua sorte. Que ele agradece malgré-lui. Porque estava em causa a sua liberdade de acção. E de pensamento. Porque estava em causa a sua integridade moral. E o seu património. E o seu futuro. Porque esava em causa o seu próprio destino. Se é, desde então, um Homem balcanizado? É, em todo o caso, um Homem que escapou, por mérito próprio, ao monólito das instituições. E que sorri ao dobrar do sino. Já que a oração fúnebre, essa, foi entoada em huis clos.
© Manuel Fontão

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