2019/06/08

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - a intriga


Relativamente à intriga, o universo contado, esse é-nos retrospetivamente oferecido pelo olhar panó[p]tico de Aberto Soares, alguns – aliás, muitos – anos mais velho, numa analepse de natureza reflexiva e intermitente, cuja trama diegética relembra o passado e analisa as peripécias então ocorridas – espécie de introspeção mais ou menos profunda àquele ano da sua vida, acompanhada de recordações longínquas, mas sempre relacionada com a família e com a terra que o viu nascer – Gouveia.  
De resto, Aparição não é, de todo, um romance de ação. Longe disso. Trata-se, antes de mais, de um romance filosófico, iniciático e propedêutico, neste sentido que o romanesco, neste caso de figura, se funde com as cores próprias da reflexão, ou, para dizer o mesmo por outras palavras, digamos que se encontra, fundamentalmente, ao serviço das questões metafísicas – e que a trama romanesca mais não faz do que potenciar.
Não obstante o exposto, importa, contudo, ter presente que a ação de Aparição é bipartida, neste sentido que existe toda uma série de acontecimentos em torno da família Soares [numa aldeia da Beira] e uma outra bateria de factos que envolvem, sobretudo, a família do Dr. Moura [em Évora], sendo que o protagonista, Alberto Soares, participa de um e de outro ciclos. E, note-se, não é esta mera coincidência que, por certo, faz dele o protagonista da trama diegética. Isso seria uma falácia, quiçá uma incongruência. Não. O que, na realidade, lhe confere esse estatuto de primazia diegética é, isso sim, o peso que lhe cabe na problematização do conteúdo carreado para o universo contado. E, nesta matéria, Alberto Soares constitui, por assim dizer, o ponto de convergência de todos os aspetos dessa problematização, porquanto é ele que, constantemente, se confronta -  e se vê confrontado – com todas as outras personagens: as que de debatem com este tipo de dilemas existenciais [como é o caso de Ana, Sofia ou Carolino] e as que não se deixam afetar por estas questiúnculas de intelectuais [como é o ocaso de Alfredo Cerqueira ou de Chico].
Por outro lado – e sem prejuízo do que acaba de ser dito – importa ter presente que, pela sua complexidade e densidade psicológicas, e, acima de tudo, pelo papel que desempenha na economia da obra, Sofia, sim, Sofia “bela. Como um veneno” [2009: 185], constitui, pelo seu relevo, a segunda personagem do romance, sendo que a jovem erige, à laia dos romances burgueses, um triângulo amoroso perfeito com Alberto e Carolino, quer dizer, entre o professor e o aluno, respetivamente. Mas não é tudo. Com efeito, dos acontecimentos ocorridos em Évora e que implicam diretamente a família Moura, vislumbra-se, ainda que virtualmente, um outro fio condutor – e triangular – que desemboca e se centra em torno de Ana, a mulher do rústico Alfredo Cerqueira: é que, um repelão a mais ou a menos, um argumento filosófico a mais ou a menos e a insatisfeita esposa do bom Alfredo “com o seu sorriso oco à maneira de um velho desdentado” [2009: 93] cairia de boa vontade nos braços de Alberto.
      Posto isto, e tendo em conta esta duplicidade diegética, podemos classificar como ação principal toda a intriga que envolve, quer Sofia, quer Ana, sendo que, no que toca à primeira, citaremos, assim um pouco ao acaso, [i] o seu primeiro encontro a dois [em casa do Dr. Moura], [ii] as picantes lições de Latim, [iii] as conversas de Alberto com Carolino; [iv] um certo encontro metafísico e as relações físicas entre Alberto e Sofia, [v] o episódio da morte da galinha, [vi] as relações de Sofia com Carolino, [vii] as intermitentes relações de Sofia com Alberto, [viii] os ciúmes de Carolino e a louca fascinação de matar Alberto, [ix] o assassínio de Sofia por Carolino], ao passo que, no que concerne Ana, poderemos citar, por exemplo, [x] a sua mal dissimulada angústia metafísica, [xi] a sua frustração de mulher infértil, [xii] a sua humilhação relativamente ao marido [ainda que sublimada], [xiii] o seu espírito terra a terra, [xiv] as suas preocupações de exclusiva ordem prática, [xv] a sua natureza exibicionista, [xvi] a sua necessidade de afirmação enquanto “mulher”, [xvii] a morte de Bailote [que lhe permite recuperar a sua maternidade, pelo viés da figura da adoção], [xviii] a morte de Cristina [que lhe permite transferir o seu potencial amor materno), [xix] o regresso à crença, à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela dádiva do marido, a saber, os dois filhos mais novos de Bailote; já no que diz respeito à ação secundária, podemos considerar todo o conjunto de acontecimentos ocorridos no seio da família Soares, na Beira, a saber, [a] a reunião e a apresentação da família, na altura das vindimas, [b] a morte súbita do pai, [c] a decadência da mãe e seu desinteresse pela vida, [d] a morte do cão Mondego, [e] a questão das partilhas a pedido da mãe e [f] o desentendimento entre os três irmãos, sendo que, ao monge [2009: 16], lhe coube em sorte o velho casarão da família – e que, como se viu, terá servido de laboratório para o seu relato simultaneamente memorialista e filosófico…

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