Relativamente à intriga, o universo
contado, esse é-nos retrospetivamente oferecido pelo olhar panó[p]tico de Aberto
Soares, alguns – aliás, muitos – anos mais velho, numa analepse de natureza reflexiva
e intermitente, cuja trama diegética relembra o passado e analisa as peripécias
então ocorridas – espécie de introspeção mais ou menos profunda àquele ano da
sua vida, acompanhada de recordações longínquas, mas sempre relacionada com a
família e com a terra que o viu nascer – Gouveia.
De resto, Aparição não é, de
todo, um romance de ação. Longe disso. Trata-se, antes de mais, de um romance filosófico, iniciático e propedêutico,
neste sentido que o romanesco, neste caso de figura, se funde com as cores
próprias da reflexão, ou, para dizer o mesmo por outras palavras, digamos que
se encontra, fundamentalmente, ao serviço das questões metafísicas – e que a
trama romanesca mais não faz do que potenciar.
Não obstante o exposto, importa,
contudo, ter presente que a ação de Aparição
é bipartida, neste sentido que existe toda uma série de acontecimentos em
torno da família Soares [numa aldeia da Beira] e uma outra bateria de factos que
envolvem, sobretudo, a família do Dr. Moura [em Évora], sendo que o
protagonista, Alberto Soares, participa de um e de outro ciclos. E, note-se, não
é esta mera coincidência que, por certo, faz dele o protagonista da trama
diegética. Isso seria uma falácia, quiçá uma incongruência. Não. O que, na
realidade, lhe confere esse estatuto de primazia diegética é, isso sim, o peso
que lhe cabe na problematização do conteúdo carreado para o universo contado. E,
nesta matéria, Alberto Soares constitui, por assim dizer, o ponto de
convergência de todos os aspetos dessa problematização, porquanto é ele que,
constantemente, se confronta - e se vê
confrontado – com todas as outras personagens: as que de debatem com este tipo
de dilemas existenciais [como é o caso de Ana, Sofia ou Carolino] e as que não se
deixam afetar por estas questiúnculas
de intelectuais [como é o ocaso de Alfredo Cerqueira ou de Chico].
Por outro lado – e sem prejuízo do que
acaba de ser dito – importa ter presente que, pela sua complexidade e densidade
psicológicas, e, acima de tudo, pelo papel que desempenha na economia da obra,
Sofia, sim, Sofia “bela. Como um veneno”
[2009: 185], constitui, pelo seu relevo, a segunda personagem do romance, sendo
que a jovem erige, à laia dos romances burgueses, um triângulo amoroso perfeito
com Alberto e Carolino, quer dizer, entre o professor e o aluno, respetivamente.
Mas não é tudo. Com efeito, dos acontecimentos ocorridos em Évora e que implicam
diretamente a família Moura, vislumbra-se, ainda que virtualmente, um outro fio
condutor – e triangular – que desemboca e se centra em torno de Ana, a mulher do
rústico Alfredo Cerqueira: é que, um repelão a mais ou a menos, um argumento
filosófico a mais ou a menos e a insatisfeita esposa do bom Alfredo “com o seu sorriso oco à maneira de um velho
desdentado” [2009: 93] cairia de boa vontade nos braços de Alberto.
Posto isto, e tendo em conta esta duplicidade diegética, podemos
classificar como ação principal toda a intriga que envolve, quer Sofia, quer Ana,
sendo que, no que toca à primeira, citaremos, assim um pouco ao acaso, [i] o seu primeiro
encontro a dois [em casa do Dr. Moura], [ii] as picantes lições de Latim, [iii] as conversas de
Alberto com Carolino; [iv] um certo encontro
metafísico e as relações físicas entre Alberto e Sofia, [v] o episódio da morte da
galinha, [vi] as relações de Sofia com Carolino, [vii] as intermitentes relações de Sofia
com Alberto, [viii] os ciúmes de Carolino e a louca fascinação de matar Alberto, [ix] o assassínio
de Sofia por Carolino], ao passo que, no que concerne Ana, poderemos citar, por exemplo, [x] a sua
mal dissimulada angústia metafísica, [xi] a sua frustração de mulher infértil, [xii] a sua
humilhação relativamente ao marido [ainda que sublimada], [xiii] o seu espírito terra
a terra, [xiv] as suas preocupações de exclusiva ordem prática, [xv] a sua natureza exibicionista, [xvi] a sua necessidade de afirmação enquanto “mulher”, [xvii] a morte de Bailote [que lhe
permite recuperar a sua maternidade,
pelo viés da figura da adoção], [xviii] a morte de Cristina [que lhe permite transferir
o seu potencial amor materno), [xix] o regresso à crença,
à paz, à serenidade, ao equilíbrio interior, definitivamente assegurados pela dádiva do marido, a saber, os dois filhos
mais novos de Bailote; já no que diz respeito à ação secundária, podemos
considerar todo o conjunto de acontecimentos ocorridos no seio da família
Soares, na Beira, a saber, [a] a reunião e a apresentação da família, na altura das vindimas, [b] a morte súbita do pai, [c] a decadência da mãe e seu desinteresse pela vida, [d] a morte
do cão Mondego, [e] a questão das partilhas a pedido da mãe e [f] o desentendimento
entre os três irmãos, sendo que, ao monge [2009: 16], lhe coube em sorte o velho casarão
da família – e que, como se viu, terá servido de laboratório para o seu relato simultaneamente
memorialista e filosófico…
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