2019/06/08

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - o prólogo



A Aparição de Vergílio Ferreira inaugura a fase existencialista do autor, e, neste sentido, pode legitimamente falar-se de um livro situado a meia distância entre o romance e o ensaio, o que significa, entre outras coisas, que, para lá da trama eminentemente romanesca, entrelaçada de sequências narrativas encaixadas, a Aparição vale, sobretudo, pelo punhado de questões filosóficas, metafísicas e existenciais que coloca ao leitor universal. Aliás, pode mesmo afirmar-se que o livro obedece a uma subdivisão tripartida da sua matéria, porquanto o narrador, em guisa de prólogo, começa por escrever:

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. […] E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso, pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte […] Súbito, neste silêncio mineral, a porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os pés ao luar sem dizer nada: ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra. Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre se, angustiada, a flor da comunhão… [2009: 9-11]
Está dado o mote. Está lançado o seu programa de ação. E, doravante, caberá a Alberto, o protagonista, partir à descoberta da sua condição, tal como havia feito André Malraux, na sua Condition Humaine. Caberá a Alberto, na esteira da teorização de Jean-Paul Sartre, restaurar a plenitude do seu ser, quer dizer, [re]encontrar a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura de cada gesto [ibidem].
Assim, pois, Alberto Soares, o professor de liceu, para lá do tom memorialista da intriga, está incumbido de explicar, ao longo de toda a obra, o sentido derradeiro da vida, e, correlativamente, a dimensão mais ou menos inverosímil e irreal da morte [“Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em função da inverosimilhança da morte” (2009: 43] e que segundo o mesmo “nunca mais até hoje eu soube inventar outro” [ibidem].
Ora, tendo em conta a importância diegética da personagem, à volta da qual tudo gira e gravita e volteia e rodopia, importa perceber de quem se trata: é o filho do meio de um casal, cujo pai é médico e a quem os seus dois irmãos, Tomás e Evaristo, lhe deram a alcunha de monge [2009: 16]. Dito por outras palavras, é um rapaz um tanto ou quanto solitário, um jovem que parece querer espalhar as suas teses junto dos outros, que procura apoquentá-los-los com os dilemas basilares do Homem face à vida. Em suma, é este Serrano, absorto nos seus pensamentos e divagações, que assumirá a voz de toda a narrativa e que se afirmará como a personagem catalisadora de toda a ação.
E, note-se, tudo começa com um desaparecimento [quase me apetecia falar de desaparição!] mais ou menos trágico: o do seu pai, Álvaro de seu nome, que tomba no momento em que se encontra, à mesa, reunido com a sua família. Depois, vemos Alberto Soares em plena cidade de Évora, depois, ali na Praça do Giraldo, local em que se lhe abre um “obscuro labirinto onde julgo repercutirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do tempo e da morte” [2009: 14], e, finalmente, no liceu da cidade, desta cidade de Évora que o protagonista apostrofa nestes termos: “Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis! [2009: 22]. Será, por conseguinte, neste palco cantado de forma elegíaca e sorumbática, que o Doutor Alberto vai encetar a busca mais ou menos incessante da verdadeira aparição das coisas, daquelas evidências que quanto mais expostas menos se veem. É aqui, nesta Évora “enredada de ruas como de velhas ciladas, semeada de ruínas, de arcos partidos, nichos de santos das orações de outras eras, janelas góticas, como olhares embocadas“ [2009: 21/2 ] que o protagonista se vai tentar descobrir a si mesmo, que vai tentar alcançar o seu “eu”, compreender a sua existência e refletir sobre a maneira de “ajustar a vida à morte” [2009: 61], buscando a sua própria aparição, isto é, a revelação instantânea de si a si próprio, como Carolino, o Bexiguinha, no-la mostra [a propósito da linguagem]:
Também fiz outra experiência, senhor doutor.
Que experiência?
Bem… Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
Mastigar as palavras?
Bem… É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra, já não quer dizer nada.
 Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
Quantos anos tens tu?
Dezassete.
Gostas de fazer versos, de escrever?
Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
Tu percebeste o que eu queria dizer?
Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso. Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.” [2009: 67].
Como se depreende pelo exposto, a temática omnipresente no livro prende-se, na sua essência, com um punhado de questões de teor eminentemente filosófico e reflexivo, cuja problematização advém, em linha reta, das teorias existencialistas de Jean-Paul Sartre, e, posteriormente, discutidas [ou deformadas?] por Merleau-Ponty, não obstante Vergílio Ferreira se reivindicar e se assumir como uma espécie de alter-ego do autor de L’Etre et le Néant
Com efeito, a obra é, no fundo, uma tentativa de apaziguamento, por parte de Alberto, que, na impossibilidade de encontrar uma fórmula de acesso às questões inerentes à vida e à existência, entre as quais se podem destacar, por exemplo, a morte do seu pai e a do seu Mondego, logra, todavia, obter um sentimento da comunhão do ser consigo mesmo – entendimento fulcral da condição humana – alcançado pelo viés da fusão do passado [enquanto memória do eu], do presente [enquanto indagação do eu] e do futuro [enquanto centro de expectativas do eu] que, em conjunto, e sem prejuízo da sua brevidade, contribuem para a aparição. De resto, a presença de um narrador autodiegético corrobora a ideia do ser entendida como centro de si, e, a partir do qual, são estabelecidas as múltiplas relações com o mundo exterior, o que significa que os problemas de ordem existencial estão umbilicalmente ligados ao desenvolvimento de um tempo interior e relativizado, isto é, sem qualquer implicação crono-lógica. Que, admitamos, Vergílio Ferreira parte do pressuposto filosófico de que Deus não existe, e, por conseguinte, não existe uma força criadora externa ao homem, nem uma vida após a morte, pelo que cada ser acaba sendo entendido como um todo em si e como um centro do qual as forças se irradiam, inclusive, a do próprio tempo. Assim, o homem é o ser da ação e do poder, o que implica considerar que o ser humano se constrói e se reestrutura no presente.


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