A Aparição de
Vergílio Ferreira inaugura a fase existencialista do autor, e, neste sentido,
pode legitimamente falar-se de um livro situado a meia distância entre o
romance e o ensaio, o que significa, entre outras coisas, que, para lá da trama
eminentemente romanesca, entrelaçada de sequências narrativas encaixadas, a Aparição vale, sobretudo, pelo
punhado de questões filosóficas, metafísicas e existenciais que coloca ao
leitor universal. Aliás, pode mesmo afirmar-se que o livro obedece a uma
subdivisão tripartida da sua matéria, porquanto o narrador, em guisa de
prólogo, começa por escrever:
“Sento-me
aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores
sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de
vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos
anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos,
que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última
das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta,
nesta noite ofegante, neste silêncio de
estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a
noite. […] E outra vez agora me
deslumbra, em alarme, a presença iluminada de
mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso,
pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela
preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza
fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me
implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio
que me não deixa ver os
meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus
olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo
da morte […] Súbito, neste silêncio mineral, a porta da sala range e o vulto de
minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-se na sombra. Senta-se ao meu lado,
estende os pés ao luar sem
dizer nada: ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar de
presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a
primeira palavra. Tomo as suas mãos nas minhas e
no deslumbramento da noite abre se, angustiada, a flor da comunhão… [2009: 9-11]
Está dado o mote. Está lançado o seu
programa de ação. E, doravante, caberá a Alberto, o protagonista, partir à
descoberta da sua condição, tal como havia feito André Malraux, na sua Condition Humaine. Caberá a Alberto, na
esteira da teorização de Jean-Paul Sartre, restaurar a plenitude do seu ser,
quer dizer, [re]encontrar a plenitude e a
autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura de cada gesto [ibidem].
Assim, pois, Alberto Soares, o professor
de liceu, para lá do tom memorialista da intriga, está incumbido de explicar,
ao longo de toda a obra, o sentido derradeiro da vida, e, correlativamente, a
dimensão mais ou menos inverosímil e irreal da morte [“Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em função da
inverosimilhança da morte” (2009: 43] e que segundo o mesmo “nunca mais até
hoje eu soube inventar outro” [ibidem].
Ora, tendo em conta a importância
diegética da personagem, à volta da qual tudo gira e gravita e volteia e
rodopia, importa perceber de quem se trata: é o filho do meio de um casal, cujo
pai é médico e a quem os seus dois irmãos, Tomás e Evaristo, lhe deram a alcunha de
monge [2009: 16]. Dito por outras palavras, é um rapaz um tanto ou quanto
solitário, um jovem que parece querer espalhar as suas teses junto dos outros, que
procura apoquentá-los-los com os dilemas basilares do Homem face à vida. Em suma, é este Serrano, absorto nos seus pensamentos e divagações, que assumirá a voz de
toda a narrativa e que se afirmará como a personagem catalisadora de toda a
ação.
E, note-se, tudo começa com um
desaparecimento [quase me apetecia falar de desaparição!] mais ou menos trágico: o do seu pai, Álvaro de seu
nome, que tomba no momento em que se encontra, à mesa, reunido com a sua
família. Depois, vemos Alberto Soares em plena cidade de Évora, depois, ali na
Praça do Giraldo, local em que se lhe abre um “obscuro
labirinto onde julgo repercutirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do tempo
e da morte” [2009: 14], e, finalmente, no liceu da cidade, desta cidade de
Évora que o protagonista apostrofa nestes termos: “Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos
sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis! [2009: 22]. Será, por
conseguinte, neste palco cantado de forma elegíaca e sorumbática, que o Doutor
Alberto vai encetar a busca mais ou menos incessante da verdadeira aparição das
coisas, daquelas evidências que quanto mais expostas menos se veem. É aqui,
nesta Évora “enredada de ruas como de
velhas ciladas, semeada de ruínas, de arcos partidos, nichos de santos das
orações de outras eras, janelas góticas, como olhares embocadas“ [2009:
21/2 ] que o protagonista se vai tentar descobrir a si mesmo, que vai tentar
alcançar o seu “eu”, compreender a
sua existência e refletir sobre a maneira de “ajustar a vida à morte” [2009:
61], buscando a sua própria aparição, isto é, a revelação instantânea de si a si
próprio, como Carolino, o Bexiguinha,
no-la mostra [a propósito da linguagem]:
“Também fiz outra experiência, senhor
doutor.
– Que
experiência?
– Bem…
Não sei como explicar. É assim: mastigar
as palavras.
– Mastigar
as palavras?
– Bem…
É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou
qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra, já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de
um encontro através delas connosco
e com os outros? E saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras
ignoram?
– Quantos
anos tens tu?
– Dezassete.
– Gostas
de fazer versos, de escrever?
– Nunca
fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
– Tu
percebeste o que eu queria dizer?
– Percebi
tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso. Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de
dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.” [2009: 67].
Como se depreende pelo exposto, a
temática omnipresente no livro prende-se, na sua essência, com um punhado de
questões de teor eminentemente filosófico e reflexivo, cuja problematização
advém, em linha reta, das teorias existencialistas de Jean-Paul Sartre, e,
posteriormente, discutidas [ou deformadas?] por Merleau-Ponty, não obstante
Vergílio Ferreira se reivindicar e se assumir como uma espécie de alter-ego do
autor de L’Etre et le Néant
Com efeito, a obra é, no fundo, uma tentativa
de apaziguamento, por parte de Alberto, que, na impossibilidade de encontrar
uma fórmula de acesso às questões inerentes à vida e à existência, entre as
quais se podem destacar, por exemplo, a morte do seu pai e a do seu Mondego, logra,
todavia, obter um sentimento da comunhão do ser consigo mesmo – entendimento fulcral
da condição humana – alcançado pelo viés da fusão do passado [enquanto memória
do eu], do presente [enquanto
indagação do eu] e do futuro
[enquanto centro de expectativas do eu]
que, em conjunto, e sem prejuízo da sua brevidade, contribuem para a aparição. De
resto, a presença de um narrador autodiegético corrobora a ideia do ser entendida como centro de si, e, a
partir do qual, são estabelecidas as múltiplas relações com o mundo exterior, o
que significa que os problemas de ordem existencial estão umbilicalmente ligados
ao desenvolvimento de um tempo interior e relativizado, isto é, sem qualquer
implicação crono-lógica. Que, admitamos, Vergílio Ferreira parte do pressuposto
filosófico de que Deus não existe, e, por conseguinte, não existe uma força
criadora externa ao homem, nem uma vida após a morte, pelo que cada ser acaba
sendo entendido como um todo em si e como um centro do qual as forças se irradiam,
inclusive, a do próprio tempo. Assim, o homem é o ser da ação e do poder, o que implica
considerar que o ser humano se constrói e se reestrutura no presente.
Sem comentários:
Enviar um comentário