2019/06/08

A segunda aparição de Vergílio Ferreira - o epílogo


Quanto ao epílogo, importa precisar que o leitor, à data, terá interiorizado a ideia de que aquilo que o protagonista buscava fora alcançado, razão pela qual se pode afirmar que, após o todo processual, Alberto pode ser visto como o herói que terá alcançado a sua aparição. Mas não só. Além da própria revelação do seu ser, o protagonista também pôde provocar a mesma revelação noutras personagens, gente com a qual entrou em contacto, com a qual privou, com a qual riu e sofreu, como é o caso das filhas do Dr. Moura, como é o caso do Chico, como é o caso do seu aluno Carolino – entre outros. Aliás, a palavra aparição, presente inclusive no título e que, segundo o próprio narrador, consiste no primeiro contacto do homem consigo mesmo, isto é, na primeira indagação em torno do seu eu, é usada de modo recorrente ao longo da obra, com o intuito exclusivo de acentuar, claro, a importância desse constante processo de busca e de descoberta – um universal do ser humano.
Falei de herói. No entanto, é bem possível que o termo encerre um certo tom hiperbolizante, pois que, tendo em conta a matéria tratada no epílogo, teremos de concluir que a matéria é, por assim dizer, ambivalente, porquanto vai do prosaico à reflexão filosófica ou teorética. Com efeito, é aqui que ficamos a saber que o narrador e protagonista alugou uma casa em Faro, pois que houve um concurso para Faro [2009: 241]. É aqui que ficamos a saber que o eterno Manuel Pateta, se encarregou de toda a logística, mas que, apesar de tudo, voltará a Évora, “como da primeira vez” [2009: 242], mas, desta feita, para se despedir do “bom homem” [idem], isto é, do seu reitor. É aqui que ficamos a saber que Carolino, o Bexiguinha, assassinou a bela Sofia. É aqui que ficamos a saber que a sua mãe, lá longe na sua Beira, “morreu numa noite de Novembro, precisamente na véspera de Tomas ser pai pela décima vez” [2009: 245]. Enfim, é aqui que sabemos que casou. Que adoeceu. Que se retirou do ensino.
Falei de herói. Privamos com o comezinho. Deparamo-nos com um filho que não foi ao funeral da mãe. Que o pariu. Com amor. E ternura alguma. Mas?... Falemos claro: falei de um herói, o sartriano, que consiste num “homem que perdeu o seu lugar de encontro mútuo, de reconhecimento mútuo” [2009: 241]. Mas vejamos: “uma vida não chega para nos reconhecermos irmãos. Que fazer, porém, se eu sei que uma fraternidade só pode construir-se numa evidência de raízes e o dever só existe na inaceitão, quero dizer, na submissão ao que está fora de nós? Aquilo de que falo está dentro de mim, sou eu... Se algum crime houve em mim, foi só o de ter nascido” [2009: 241]. Sim. Falei de um herói existencialista, percebendo embora que “a noite avança, que a nossa cidade arde sempre. Que vai “fundar outra noutro lado “ [2009: 243]. Falei de um herói que, à força de se questionar, percebeu, finalmente, que “o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros […] Não me pergunteis como consegui-lo, não me pergunteis. O que é evidente aparece. Mas nestas noites de insónia em que me vou perscrutando, neste esforço natural como o da terra, em que me vou revelando, eu pude ver, em instantes de fulgor, o que me era, o que me cumpria, o destino que me gravara. E ver é conquistar, possuir. O terreno é bom, o terreno é este [2009: 243].
Sim! Falei de um herói para quem “o tempo não existe senão no instante em que está. Falei de Alberto Soares, o filho do Dr. Álvaro Soares, o professor de liceu, o inquilino do Sr. Machado, o amigo de Cristina, de Ana e de Chico, o amante de Sofia, o rival de Carolino – falei do exegeta, ou melhor, do monge [2009: 16], que se resolve neste termos: “Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora que me projecto? O meu futuro é este instante desértico e apaziguado. Lembro-me da infância, do que me ofendeu ou sorriu: alguma coisa veio daí e sou eu ainda agora, ofendido ou risonho: a vida do homem é cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece –, centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando.” [2009: 246]
Perceba-se o escopo filosófico do dito: o instante presente constitui a totalidade da realidade humana, quer dizer, toda a vida que pulsa e palpita, porquanto é aí – nesse presente – que todo o passado se reabsorve e se reinventa, graças a esta constante necessidade de manter sempre vivos os momentos de aparição, ao passo que o futuro, tal como o passado, não existe em si mesmo, mas apenas e tão-somente como mera projeção mais ou menos irreal e inverosímil, uma vez que o futuro representa, in limine, a morte inevitável e irreversível.
Falei de herói, sim! Que está só. Que se reconhece ufanamente só, a exemplo, dos filósofos de tendência existencialista, que, em geral, negam a existência de Deus, e, destarte, enjeitam a sua força criadora, assim como a ideia peregrina de uma eventual continuidade da vida no post mortemOra, na posse deste aparelho teorético, incumbe, por conseguinte, ao protagonista do romance existencialista a tarefa de encontrar uma resposta plausível para o absurdo da vida e para a inverosimilhança da morte, a qual surge, regra geral, pelo viés do tempo de natureza cíclica, iludindo, assim, o início e o fim absolutos. Significa isto que a morte, tão assustadora para Alberto, por exemplo, não constitua mais uma ameaça, nem represente o fim do que quer que seja. Daí, a constante evocação que o protagonista faz dos ecos de uma memória mais ou menos remota e longínqua, cujo objetivo consiste, muito justamente, em emprestar existência às ruínas, às construções materiais das casas, aos móveis, às ruas. Em suma, o mundo objetal surge, desse modo, povoado de indeléveis memórias, as quais, tal um complexo jogo de sombras, convocam um passado que, apesar de tudo, não deixou de existir, porquanto os seres humanos ainda as vivem e as guardam, ainda que de forma inconsciente…

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