Revisitei o romance Aparição de Vergílio Ferreira. É que ele há livros que, tal como algumas
mulheres, merecem uma segunda oportunidade. E a Aparição pareceu-me um deles. Sim. Foi uma leitura segunda,
mas com um olhar sempre novo, ou, pelo menos, renovado. Que é sempre um enorme
prazer privar com o narrador, ou, se preferirmos, com a personagem Alberto
Soares, um anónimo professor de liceu, que, num setembro qualquer e igual a
tantos outros, chega a Évora – a cidade
branca [p. 14], ou melhor, a cidade-ermida
[p. 14], aparentemente tão propícia ao recolhimento...
Sim, Alberto! Só tu sabes. Só nos
sabemos. Vens de luto, homem! Acabas de perder o teu pai de forma repentista e cruel, como são cruéis e inesperadas todas as mortes.
Triste episódio, esse, caro amigo! Na verdade, e como bem dizes, mas de que nadas a vida se sustenta [p.
25], com efeito! Teu pai, ali, reunido em família, a esboçar projetos íntimos,
e, de repente, não é?... De súbito, aquele arranco
[p. 20], aquele gesto de quem aperta o
coração [p. 20] – o coração e o mundo inteiro! – na concha da mão. E, por fim,
a queda de um corpo que tomba, inanimado, no chão…
Eu sei, Alberto! Eu sei que isso dói
pelo lado de dentro da nossa própria alma. É uma marca invisível que,
doravante, transportarás pela vida fora – e pelo sonho adentro. Fala-te alguém de scarmentado! Eis, pois, a
razão por que sentes – e me fazes sentir – esta incrível necessidade de contar
tudo isto de forma aparentemente distante, aparentemente distante e fria, como
quem come uma dobrada à moda do Porto, mas sem o melhor que ela contém: o ser servida quente.
Sabes, Alberto, houve um momento – breve
– que temi por ti. Sei lá! Aquele olhar a
planície do alto da rampa [p. 25], ó monge, aquele sentimento de te
perceberes invadido dessa plenitude de
quem olha o mar do alto de uma falésia [p. 25] assustou-me. A sério! Afigurou-se-me
que se tramava uma tragédia de segundo grau. Afigurou-se-me que se quebrava,
assim, de repente, o fio de Ariadne. Mas claro que foi falso alarme, pois ninguém
consegue contar a sua própria história, caso seja, algures, intercetado no voo
essencial. Que o diga o Malhadinhas – que deixou, como sói dizer-se, o seu relato a
meia distância entre a sua proeza e o seu falhanço… fatal.
Não. Em vez do lance súbito, Alberto, preferiste
o lume brando, previamente alimentado pela herança paterna. Enfim, apareceste
no horizonte eborense! E, com a tua aparição em casa do Dr. Moura, foram outras
tantas aparições que surgiram à luz crua do dia: foi o caso da Cristina. Foi o
caso da Ana. Foi o caso da Sofia. Sim, Aberto! Houve problemas de convivência e
conflitos ideológicos em todas estas aproximações mais ou menos filosóficas e
sentimentais. Houve questões mais ou menos irresolúveis com a etérea Cristina. E com
a sofisticada Ana. E com a desconcertante Sofia. Sem falar do Chico. Nem do Carolino.
Sabes, Alberto, não vou, neste introito,
alongar-me muito. Prefiro deixar todas estas questões – quer as metafísicas,
quer as prosaicas – para outra oportunidade. Mas abramos, desde já, as devidas
hostilidades: porquê, amigo, abdicar de um rol de amizades em torno das Mouras, sobretudo quando, como o teu amigo Chico refere, criar relações em Évora
era um milagre [p. 37], pois tudo ali
tinha muralhas [p. 37]? Porquê mudar-se, ao final de um ano, para a
longínqua cidade de Faro, onde virias a lecionar até te afastares definitivamente do
ensino? Porquê, enfim, regressares, velho aldeão, à casa serrana onde viveste a
tua infância? Em suma, porquê, caro amigo, teres escolhido esse velho casarão
da aldeia, de onde me escreves sobre o teu passado mais ou menos remoto e fossilizado?
Mas que me importa, a mim, que já não te identifiques com a estética neorrealista,
que, como sabes, tinha conhecido o seu apogeu no decurso da década de 40, com
os trabalhos de Alves Redol e Fernando Namora – entre tantos outros? Mas que me
importa, a mim, se terá sido a preocupação mais ou menos premente de abolires,
na tua Aparição, essa ideia
tão recorrente de denúncia e de problematização de uma certa ordem social e
política em Portugal – que não levava em linha de conta as legítimas
aspirações do Homem? Mas que me importa, a mim, se terá sido a tua crescente preocupação
com as questões metafísicas e filosóficas, a exemplo dos textos impregnados dos
existencialistas, com particular enfoque para as teses de Jean-Paul Sartre e de
André Malraux? Mas que me importa, a mim, se terá sido, em suma, a tua necessidade de delineares um redimensionamento teorético em torno de um eu que busca, de modo mais ou menos incessante, a sua totalidade?
Sim, Alberto! Que me
importa, a mim, tudo isso, se continuamos à procura das respostas para questões
tão básicas e prototípicas do tipo: Quem
sou? De onde vim? Para onde vou? Ah! Que alívio, este, de sabermos que o Homem está só. Só e entregue a si próprio. Sem Deus – que está morto. Porque sim [p. 40]. E sabemos que está morto porque não cabe na harmonia do que somos. Não cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que aborrecemos [p. 40] ou que abandonamos. Ah, Alberto! Como tudo isso nos pesa como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos [p. 41].
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