Dezembro. 27. 2018. Caminho no tabuleiro
superior da Ponte D. Luiz I. E a Sé ali tão perto. Chegado ao largo, vislumbro, lá
em baixo, a porta de entrada da Estação de São Bento, mas, seguindo o meu
itinerário, viro à esquerda. Uma condutora daqueles novos artefactos turísticos
que transportam gente curiosa, gente como nós, ciosa de coisas novas e de
descobertas, olha-me de relance. Interpela-me. Não a mim, vejamos, mas ao
turista, quer dizer, ao consumidor…
Vou absorto. Mas feliz. Diria mesmo:
felicíssimo! E, se me pedissem para definir esse raríssimo estado de espírito,
diria que, em substância, consiste num sentimento de profunda harmonia para
comigo próprio. Que a felicidade, no fundo, mais não é do que reencontro sincero
e honesto connosco.
Sim! Vêm-me, à memória, pedaços
longínquos da minha então Escola Primária. Encavalitam-se sobre o meu presente.
Sobrepõem-se ao fluxo e refluxo de pessoas que vão e de espanhóis que vêm. É
uma paisagem acústica verdadeiramente alucinante: oiço enunciados em
castelhano. Apercebo-me de gente que fala inglês. Há um casal de franceses que,
em três palavras – Que c’est beau! –
resume o contexto e o momento. Há gente de cabelos escandinavos. Gente de carapinha.
Gente de cabelos ruivos. Gente de cabelos brancos. Gente de cabeça rapada.
Continuo a subir em direção à Sé. E, na
minha mente, desfilam imagens de batas brancas. E, de repente, recordo a D.
Octávia – a minha professora primária [como então se dizia...]. Revejo o meu querido livro de leitura, e,
em particular, o poema “A Moleirinha”:
Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toc, toc, a velha vai para o
moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito
rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O
jerico ruço duma linda cor;
Nunca
foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
Com o
galho verde duma giesta em flor.
Casa-museu de Guerra Junqueira. Lamento! A visita não correspondera, de todo, às
minhas expectativas. Esperava poder observar alguns manuscritos, o
o seu estilo caligráfico, a sua produção
escrita – em suma, os seus livros. Esperava – por que não? – poder ouvir a
música de “A Moleirinha”, na sua versão original. Esperava poder rever, por
exemplo, um retrato a óleo do autor, um friso cronológico da sua atividade
literária, um retrato portentoso do poeta e escritor. Ora, tudo quanto fiquei a
saber, foi que Guerra Junqueiro havia tido não um, mas dois descendentes, sendo
que o segundo, creio que uma criatura do sexo feminino, nunca havia sido
vista em público, em razão direta da sua deficiência…
Saí tristemente a cogitar se aquela
criatura terá existido, um pouco à laia do pensamento fenomenológico:... Mas vejamos! Uma flor,
uma pedra, uma árvore que não foi, ainda, objeto de observação por parte do outro,
essa flor, essa pedra, essa árvore existe, em termos fenomenológicos?... Mas o
existencialismo, como já dizia Sartre, não é um humanismo?...
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