2019/03/02

"A Moleirinha" da minha infância


     Dezembro. 27. 2018. Caminho no tabuleiro superior da Ponte D. Luiz I. E a Sé ali tão perto. Chegado ao largo, vislumbro, lá em baixo, a porta de entrada da Estação de São Bento, mas, seguindo o meu itinerário, viro à esquerda. Uma condutora daqueles novos artefactos turísticos que transportam gente curiosa, gente como nós, ciosa de coisas novas e de descobertas, olha-me de relance. Interpela-me. Não a mim, vejamos, mas ao turista, quer dizer, ao consumidor…

     Vou absorto. Mas feliz. Diria mesmo: felicíssimo! E, se me pedissem para definir esse raríssimo estado de espírito, diria que, em substância, consiste num sentimento de profunda harmonia para comigo próprio. Que a felicidade, no fundo, mais não é do que reencontro sincero e honesto connosco.
Sim! Vêm-me, à memória, pedaços longínquos da minha então Escola Primária. Encavalitam-se sobre o meu presente. Sobrepõem-se ao fluxo e refluxo de pessoas que vão e de espanhóis que vêm. É uma paisagem acústica verdadeiramente alucinante: oiço enunciados em castelhano. Apercebo-me de gente que fala inglês. Há um casal de franceses que, em três palavras – Que c’est beau! – resume o contexto e o momento. Há gente de cabelos escandinavos. Gente de carapinha. Gente de cabelos ruivos. Gente de cabelos brancos. Gente de cabeça rapada.

     Continuo a subir em direção à Sé. E, na minha mente, desfilam imagens de batas brancas. E, de repente, recordo a D. Octávia – a minha professora primária [como então se dizia...]. Revejo o meu querido livro de leitura, e, em particular, o poema “A Moleirinha”:

       Pela estrada plana, toc, toc, toc,      
       Guia o jumentinho uma velhinha errante.
       Como vão ligeiros, ambos a reboque,
       Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
       A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

       Toc, toc, a velha vai para o moinho,
       Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
       E contudo alegre como um passarinho,
       Toc, toc, e fresca como o branco linho,
       De manhã nas relvas a corar ao sol.

       Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
       O jerico ruço duma linda cor; 
       Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
       Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
       Com o galho verde duma giesta em flor.

     Casa-museu de Guerra Junqueira. Lamento! A visita não correspondera, de todo, às minhas expectativas. Esperava poder observar alguns manuscritos, o
o seu estilo caligráfico, a sua produção escrita – em suma, os seus livros. Esperava – por que não? – poder ouvir a música de “A Moleirinha”, na sua versão original. Esperava poder rever, por exemplo, um retrato a óleo do autor, um friso cronológico da sua atividade literária, um retrato portentoso do poeta e escritor. Ora, tudo quanto fiquei a saber, foi que Guerra Junqueiro havia tido não um, mas dois descendentes, sendo que o segundo, creio que uma criatura do sexo feminino, nunca havia sido vista em público, em razão direta da sua deficiência…

     Saí tristemente a cogitar se aquela criatura terá existido, um pouco à laia do pensamento fenomenológico:... Mas vejamos! Uma flor, uma pedra, uma árvore que não foi, ainda, objeto de observação por parte do outro, essa flor, essa pedra, essa árvore existe, em termos fenomenológicos?... Mas o existencialismo, como já dizia Sartre, não é um humanismo?...


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