2011/11/19

A construção do ETHOS dos participantes

1. A construção do ethos dos participantes

Parece óbvio que quando falamos, agimos ou mantemos o silêncio [1], estamos a construir, voluntária ou involuntariamente, uma imagem do outro, e, reciprocamente, a fornecer um conjunto de dados preciosos ao nosso interlocutor para que ele construa, por seu turno, a nossa própria imagem, seja através do material verbal, seja através do material paraverbal (movimentos cinestésicos, mimogestuais, vocais, acústicos, etc.). Claro que tal construção (imagética) é função de vários fatores, como por exemplo, a emoção, o sentimento, em suma, a situação em que, momentaneamente, nos encontramos.

Contudo, trata-se de um conjunto de indícios, sem os quais não saberíamos comunicar, pois que nos faltaria uma identificação correta do contexto e dos participantes. Chama-se a isto os indícios de contextualização e que constituem, grosso modo, os elementos apreensíveis aquando da interação – o que significa que, quando em contexto de interação dialogal, vamos construindo um conjunto de representações do(s) interactante(s), seja com base em informações prévias, seja com base naqueles que vão sendo fornecidas ao longo da própria interação.

Com efeito, segundo Goffman (1973: 29/30) [2], resume-se a uma espécie de fachada, em cujo termo poderemos incluir, entre outros elementos, os signos distintivos da função, o vestuário, o sexo, a idade, as características raciais, a altura, a fisionomia, a atitude, a maneira de falar, o mimo, os comportamentos gestuais, as particularidades fonéticas, prosódicas (como a pronúncia, a dicção, os desvios discursivos, etc.), cujos traços situam o locutor num certo universo de representação cultural, ideológica, política, religiosa, ou, para parafrasear Bourdieu (1977: 30) [3], fornecem indícios mais ou menos seguros relativamente à identificação social dos participantes. Em suma, poder-se-á dizer que o corpo está, na sua totalidade, ao serviço da fala… e da construção do nosso ethos.

Poder-se-ia pensar que esta imagem de si, que se constrói na e pela enunciação, se prende, na larga maioria dos casos, com as características mais ou menos singulares e específicas do locutor. Também. Mas não só. Na realidade, as coisas, nesta matéria, são bastante mais complexas, porque o ethos está intimamente ligado à noção de enunciação que Emile Benveniste define como o ato através do qual o locutor mobiliza a língua por sua própria conta (1984: 82). Assim, a imagem que cada locutor elabora, apoia-se, em grande parte, em elementos preexistentes, como por exemplo, o quadro institucional em que o locutor supostamente se inscreve, a ideia prévia que o auditório tem de L, a autoridade de que se reveste, os dados sociais e mesmo a sua história individual. Mas não é tudo. Parece evidente que o locutor também é tributário de um conjunto de doxas (a opinião pública) que estão a montante da sua produção discursiva, como por exemplo, os topoi [4], os lugares comuns [5], as ideias preconcebidas [6], os estereótipos [7], as expressões cristalizadas (clichés) [8], os provérbios, as sentenças [9], etc. Daí que Oswald Ducrot coloque em causa a unicidade do sujeito falante, que, segundo o autor de Le Dire et le Dit, se subdividiria em (i) sujeito empírico, (ii) o locutor e (iii) o enunciador, pois que o ethos está associado a L, o locutor enquanto tal e é na sua qualidade de emissor que a sua produção vai ser aceite ou rejeitada (1984: 201). Significa isto que o ethos é, por conseguinte, função do exercício da fala, do papel que L desempenha no discurso (e menos o resultado do indivíduo real), muito embora se possa entrar aqui em linha de conta com um ethos social e imaginário prévio, que está longe de ser negligenciável [10].

Em guisa de resumo, eis aqui um excerto de um artigo jornalístico (dirigido a um leitor médio e esclarecido), sobre o caso Clinton, que, então (1998), elogiava os americanos na sua decisão de apoiar o então Presidente ameaçado de destituição no seguimento das acusações de ter tido uma relação extraconjugal, na circunstância, com Mónica Lewinsky.

(1) Não devemos, em caso algum, desesperar dos povos, e, no caso em apreço, do povo americano. Certo, foi ele que inventou, para nossa grande infelicidade, os fast-food, os queijos sem o sabor dos nossos verdes pastos, os filmes prontos a consumir de Silvester Stallone e o puritanismo simplório, embrulhado em histórias de alcova mal resolvidas. Todavia, parece ter guardado toda a sua clareza de pensamento e as suas responsabilidades coletivas, como acaba agora de o provar […].

Ora, como facilmente se observa, o texto não é imune à corrente de opinião de um determinado público, um tanto ou quanto avesso à americanização do país. Com efeito, o jornalista foi capaz de elaborar uma imagem prévia dos seus leitores, e, mais do que isso, foi capaz de antecipar a representação que os portugueses têm dos Estados Unidos e do seu Presidente. Para tal, o jornalista teve de (i) reproduzir os conhecimentos do alocutário (neste caso, o seus saberes prévios), (ii) o seu nível de linguagem e (iii) o seu código de valores. Por outras palavras, o artigo parte do postulado de que o leitor do diário está ao corrente do caso Mónica Lewinsky, o que não configura, aliás, uma estratégia muito arrojada, pois que, na altura, fazia as manchetes de todos os jornais e dos media, tanto nacionais como internacionais. De resto, o artigo também conta com o facto de que o leitor português saberá, supostamente, decifrar, de forma perspicaz, as referências a uma cultura popular largamente divulgada: os filmes musculados e (pré)formatados de Stallone, o fenómeno da comida de plástico, os comportamentos axiologicamente duvidosos de certos ícones americanos. Trata-se, por conseguinte, de um público representado como devidamente informado acerca dos acontecimentos e da cultura de massa da contemporaneidade recente, isto é, trata-se de um leitor crítico, e, por conseguinte, capaz de se manter equidistante relativamente à realpolitik, não obstante considerar uma infelicidade a degradação do estilo português antigo, quiçá, uma certa corrupção dos seus velhos costumes, causada pela galopante americanização. Mas, muito justamente, se ele, o leitor (virtual) condena toda uma cultura assente na vulgaridade e na massificação, também será, por certo, capaz de sentenciar uma moral sexual rígida e hipócrita, traduzida, provavelmente no estigma do politically correct. Assim, e do ponto de vista dos valores carreados, o jornalista dirige-se ao seu público num nível de linguagem cuidado, sem, todavia, prescindir da defesa da cultura portuguesa, tal como ela é comummente percebida.

Note-se, por outro lado, que todas as indicações sobre o leitor, tal como o jornalista o representa, são exclusivamente extraídas do texto e não, como se poderia aparentemente crer, de hipóteses mais ou menos engendradas pelo pensamento e pelas intenções do sujeito enunciador. É que não basta coligir dados estatísticos ou mobilizar um conjunto aleatório de dados exteriores, saídos, por exemplo, de um qualquer inquérito sociológico, para se construir uma imagem prévia do público, e, no caso em apreço, para se delinear uma estratégia de persuasão (discursiva, porque é no texto/discurso que tudo isso se realiza). Na realidade, a representação que o locutor constrói do seu público não pode ser percebida fora do discurso onde esse referente necessariamente se inscreve e, em definitivo, é apenas no momento em que essa imagem se materializa (na troca verbal) que ela se torna, de facto, consistente – e, aí sim, ela pode extravasar para os dados exteriores preexistentes.

Face ao exposto, parece doravante evidente que uma tal esquematização designa, por conseguinte, os mecanismos através dos quais o locutor ativa uma parte das propriedades que, supostamente, definem o seu alocutário para, desse modo, produzir uma imagem coerente, capaz de responder às necessidades da troca verbal. E, se se reparar bem, o objetivo deste parágrafo de introdução é, justamente, o de lavrar um elogio aos Americanos contra a opinião pública (a doxa), estratégia, em tese, bastante delicada. Mas percebe-se nitidamente que o jornalista tem ampla consciência de que se dirige a um alocutário algo reticente em aceitar os méritos do povo americano, razão pela qual o autor não felicita propriamente os Americanos, mas, antes pelo contrário, adota uma atitude de distanciamento em relação aos valores e comportamentos ordinários. Com efeito, e após ter recorrido a um argumento ad misericordiam [11], que funciona como uma atenuante, ele, o jornalista, adopta uma argumentação ambivalente, dividida em dois eixos, que, na superfície textual, correspondem aos dois conectores /certo/ e /todavia/. Assim, enquanto a concessão abre as hostilidades e tem como escopo a enumeração dos defeitos atribuídos ao povo americano, os pecados que supostamente disseminaram aos quatro ventos e que, por isso mesmo, devem expiar, já o conector adversativo, por seu turno, dá início a uma isotopia que se poderia resumir ao elogio do povo americano (sem, todavia, retirar o agravo, que faz questão de endossar ao povo americano: o texto é lavrado sob reservas, e, em última análise, sujeito a caução…).

Assim, as propriedades do público que devem ser ativadas e postas em evidência são as de uma portugalidade que se incarna nos bons costumes alimentares, na boa gastronomia, quiçá, num bom queijo da serra e numa produção cinematográfica assente no conceito de cinema de autor (de raiz nacional). Certo, o texto designa esta portugalidade em negativo, numa espécie de eixo paradigmático, pois que, na linearidade textual, o leitor se vê confrontado com um conjunto de comportamentos degradantes: os fast-food, os queijos sem sabor característico, as produções comerciais de Hollywood e o puritanismo de alcova, mas a seleção feita pelo enunciador não é, de todo, inocente: evoca o seu contrário e pretende, por um mecanismo de compensação das faces, lisonjear o que é nosso, o vernáculo, o genuíno.

Destarte, o auditório está inteiramente presente no discurso produzido, mesmo se, ao nível do conteúdo, ele parece de forma mais ou menos implícito, apenas interpelado sumariamente pelo possessivo (para nossa grande infelicidade, os nossos verdes prados) e pela primeira pessoa do plural, um nós inclusivo (devemos). Amantes de boa cozinha, de bons petiscos, de cinema de autor e sempre prontos para desculpar uma falta de fidelidade conjugal (traço cultural assimétrico e disfórico das sociedades…), os portugueses continuam a resistir à invasão americana: eis, pois, o ethos nacional que o texto constrói.

Percebe-se, pois, como é que a representação do público construída pelo jornalista se inscreve na materialidade da linguagem e como é que essa construção é tributária de um conhecimento do mundo, das competência enciclopédicas e das vivências que vêm de fora para dentro. O mesmo é dizer que toda a construção do ethos se efetua dentro e pela linguagem – mas que, do ponto de vista descritivo, surge como um pré-construído. Por preterição [12]. Que o texto é, por excelência, o lugar do não-dito.
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[1] O silêncio, em rigor, ainda é comunicação (não verbal, na circunstância).
[2] La Mise en Scène de la Vie quotidienne (1973). Paris: Editions Minuit.
[3] L’Economie des échanges linguistiques, Langue Française.

[4] Princípios gerais que servem de ponto de apoio ao pensamento discursivo, mas que nunca são objeto de asserção, quer dizer, que o locutor não se apresenta, em caso algum, como instância autoral. (1995: 39).
[5] Expressão que se resumia, para Aristóteles, ao lugar particular, mas que, ao longo do tempo, se foi transformando num termo pejorativo, para designar os temas consagrados pelo uso, as ideias cristalizadas e banais que se foram confinando a determinado repertório. (Cf. o amor burguês é um lugar comum da literatura contemporânea).
[6] Cortejo de julgamentos, crenças, maneiras de dizer e de fazer, cuja enunciação se apresenta como uma afirmação aparentemente irrefutável (2009: 24). (Cf. os melhores relógios são os da Suíça; pastéis, pastéis, só os de Belém, etc.).
[7] Termo oriundo da tipografia (no sentido de cópia, estereotipia…), que sofreu uma expansão semântica. Na realidade, hoje, a noção encontra-se muito próxima do preconceito e releva sempre um construído. Refira-se, de resto, que os estereótipos, inclusive os étnicos, não possuem uma base objetiva, mas são, simplesmente, o fruto de uma aprendizagem social. Cf. extraídos de Amossy (2009: 29): os judeus são avarentos, a jovem rapariga é pura e bela; o cientista é distraído.
[8] Expressões consagradas pelo uso, que se repetem de forma mais ou menos mecânica para produzir, por vezes, um efeito de estilo, como por exemplo, uma metáfora (um formigueiro humano), uma antítese (morte jurídica) ou uma hipérbole (inquietações mortais). (2009: 57). Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética do cliché, como será o caso das produções cristalizadas de um Quim Barreiros, de um Emanuel, de uma Ágata, de uma Cláudia Isabel, etc.
[9] Enunciados da doxa que reúnem generalizações, como por exemplo, nem tudo o que reluz é oiro, os pequenos regatos fazem os grandes rios, os grandes comem os pequenos, (cf. Padre António Vieira) etc. Contrariamente, ao provérbio, que se inspira num saber coletivo e fossilizado, i. e., numa voz comum, assente num saber experiencial, a sentença permanece na esfera da criação individual (não confundir, todavia, com o provérbio modificado, tal como ele surge, em abundância, na obra saramaguiana…).
[10] Com efeito, um locutor que se prepara, por exemplo, para dar uma conferência, não poderá fazer tabula rasa das tendências epocais, dos estereótipos em voga, dos gostos e preferências do auditório, em suma, não poderá ir de encontro às doxas do seu alocutário, mas, bem pelo contrário, ir ao encontro das expectativas do público…
[11] E por que deveríamos, nós, seres contingentes e falíveis, desesperar dos povos, se a esperança é a última a morrer…? Não seria, de resto, darmos provas de intolerância e de descrença? Não seria colocar-nos em bicos de pé?...
[12] Figura de retórica em que se afirma algo, fingindo-se, todavia, que não foi dito. Exemplo: Se não fosses tão simpático e benevolente, dir-te-ia que não contaria mais contigo na empresa. Outro: Não te vou dizer que és idiota, porque te estimo!
© Manuel Fontão

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