2011/10/08

A república: vícios tentaculares

Caro Afonsinho,

Hoje é sábado, nas estranhas terras de Viriato, e, no decurso desta semana, houve um feriado que, no fundo, não abona muito a favor da tua causa. Aliás, nem sei como é que te hei de explicar este imbróglio. Mas, enfim, vou tentar, pois, como sabes, não é meu timbre desistir, assim, facilmente, dos escolhos que se me colocam pela frente…

Ora, como já deves ter percebido, nós, portugueses do século XXI, vivemos numa democracia. E, pior do que isso, vivemos numa república. Quando é que isso aconteceu? Pois era justamente o que te ia dizer, meu querido Afonso: o trágico evento ocorreu nos idos 5 de outubro de 1910, a fação (até há pouco tempo escrevia-se facção, sabes, mas isso é outra história que, um dia destes, te hei de contar, juro que vou, pois tu és inteiramente merecedor, ajudaste o país a libertar-se da moirama, e, se ainda cá estivesses, haverias decerto de combater, aposto, o eurocentrismo nas novas eras…), pois bem, como te dizia, meu caro Afonsinho, a fação, i. e., o partido republicano derrotou a exangue monarquia, que era do tipo constitucional, no caso em apreço, um sistema de governação que teve origem em 1821 e que perdurou durante algumas décadas…

Oh! Meu caro Afonso, mas que curiosidade mórbida, a tua. Queres saber em que consistia, no fundo, esse regime? Pronto! Eu explico, um pouco contrariado, certo, mas lá vai: no dia 1 de outubro de 1821, o teu anacrónico descendente, o João, o VI da tabela real, teve a infeliz ideia de jurar a constituição liberal, nascida da revolução de 1820 e que fora aprovada a 22 de setembro do mesmo ano. Ficavam assim restabelecidos, para o bem e para o mal, meu Afonsinho bonito, os inalienáveis direitos que a natureza havia concedido ao povo. Só que uma desgraça, como soe dizer-se, nunca vem só, aliás, as tragédias são como as cerejas, meu querido: nós apanhamos uma e vêm-nos logo à mão um raminho farfalhudo, que, um pouco a contragosto, lá vamos degustando. Pois bem, não vale a pena estar aqui a dourar a pílula (com perdão da anacrónica imagem!...), pelo que o melhor é dar-te, de forma canora e tonitruante, a má boa nova: o Joãozinho (como era tratado no seu círculo de amigos mais privado) teve a infeliz ideia de nos deixar órfãos, em 1826, e, para colmatar a vaga real, o combativo Pedro, que, à época, era imperador do Brasil, foi proclamado rei de Portugal pelo Conselho de Regência. Mas, sem que nada fizesse prever, o nosso Pedrinho, o homem de Ipiranga, acabou por roer a corda, e, num gesto incompreensível e medonho, preferiu imperar sobre a rebelde adolescente, porventura devido à sua força uterina e, quiçá, à largura das suas ancas desnudadas pelas correntes escaldantes do oceano largo. Passemos. A verdade é que o homem, de sangue azul (tal como tu…), abdicou em favor de uma certa D. Maria da Glória, depois de, a 29 de abril, ter outorgado uma Carta Constitucional a Portugal. Ora, como há pouco te dizia, e, repara, não há duas sem três (e de fatalidades falo, muito ao gosto luso…), o teu congénere Miguel, o homem forte do miguelismo então emergente, fez com que Portugal regressasse à tripartição tradicional dos estados no governo do país, tendo sido a Carta de 1826 posta de parte em 1828.

Tudo isto para te dizer, meu lindo Afonsinho, que o reino, o quinhão de território que tanto te custou a juntar, um pouco à laia das peças de um puzzle em tamanho real, andou literalmente à deriva, até ao ano da (des)graça de 1910, altura em que o Partido Republicano havia já conquistado importantes posições no seio da sociedade civil, e porventura, militar, que isto de sociedades nunca se sabe onde acaba a primeira e começa a segunda. Ah! Sim! O tempo passa, com efeito. A quem o dizes, meu caro! Mas ele há etapas, meu rico Afonso, que o melhor é queimá-las antes do tempo, não é? No fundo, digamos, para abreviar - e de forma eufemística -, que este intervalo de tempo fora preenchido por cisões e crises mais ou menos intestinas…

O que pretendo significar com o sinal mais e com o sinal menos? Oh! Afonso! Por quem sois, homem divino! Não. Não é nenhuma contradição nos termos. Meu Afonsinho querido, vais desculpar-me este breve acrescento, mas sabes, por certo, que vivemos, hoje, centrados numa mentalidade eminentemente bipolar, traduzida, em linguagem corrente, pela expressão adverbial mais ou menos, o que significa, como calculas, uma atitude j'm'enfoutiste, isto é, uma posição olimpicamente neutra face ao essencial da substância. Aliás, nós engendrámos, nesta matéria, toda uma panóplia de locuções equivalentes, como por exemplo, assim assim, nem muito nem pouco, nem sim nem não, e, imagina, inventámos mesmo algumas construções proverbiais para consolidar confortavelmente a nossa forma de ser, tais como, nem muito ao mar nem muito à terra, nem oito nem oitenta, nem carne nem peixe, nem alfa nem ómega, etc. Como vês, Afonsinho meu, nós não desonrámos os nossos egrégios avós, como alguns creem e apregoam, principalmente, aqueles que padecem da coita. Bem pelo contrário, demos mostras do nosso génio criador, da nossa raça (como um dia disse – e muito bem! – o nosso representante máximo…), e, a prová-lo, eis que arranjámos várias formas e modos de mascarar o nosso sentimento mais profundo, a nossa alegre consciência, a nossa verdadeira identidade.

Pois bem, meu grande e valeroso Afonso, todo este longo introito para te dizer que Portugal já não existe. Quer dizer, existe e não existe. Não. A sério. O nome oficial de Portugal é, com efeito, República portuguesa, o meu bilhete de identidade, ou melhor, o meu cartão de cidadão, porque, na ausência de cidadania, os políticos da minha geração, movidos, provavelmente, por um sentimento de culpa ou por qualquer outro sistema de compensação, criaram um cartão feito de uma substância acrílica ou alguma matéria similar, e, imagina, apuseram lá a minha fotografia deslavada e informe (diz-se, modernamente, digitalizada…), tipo marca de água, se quiseres, e, não lembraria nem aos próprios deuses (que tão má reputação têm entre nós…), puseram lá dentro, gravados numa linguagem estranha, vários números que, segundo dizem, me pertencem por inteiro – e tudo isto, como já deves ter adivinhado, só para me obrigarem a dar periodicamente uma quantia do meu soldo à fazenda pública, mas, voltando à vaca fria, que é uma forma de fazer entender a retoma do assunto, o meu cartão de cidadão (e/ou de contribuinte…) tem escrito, também ele, República portuguesa, o que significa que Portugal, esse retângulo ameaçado pela erosão costeira, passou a um mero adjetivo, isto é, não tem, de todo, realidade substantiva. Não. Não estou a reinar, meu Afonsinho lindo: aliás, eu não tenho reino algum sequer e em verdade e em verdade te digo: Portugal passou, em outubro de 1910, a constituir uma espécie de adjetivo que, repara, nem sequer chega a ser qualificativo, pois, a meu ver, Afonsinho meu, o derivado refere-se menos a uma qualidade do que impõe uma restrição. Então não vês, meu querido, que o que lhes importa, afinal de contas, é que eu não vá agora pagar os meus impostos à mafiosa Espanha, mas que os largue aqui na espraiada praia lusitana? Como vês, meu bom cristão velho, o adjetivo possui, antes de mais, um valor restritivo, não te parece?

Deves estar a interrogar-te, Afonsinho meu, aonde é que eu quero chegar com toda esta algaraviada. Sossega, pois, que eu vou direto ao assunto: como te disse acima, no pretérito dia 5 de outubro, uma quarta-feira, (que os dias, esses, continuam a ser alinhados pelas antigas feiras da ladra, lembras-te?), pois bem, os republicanos, esses absolutistas inveterados, não me deixaram ir trabalhar. É verdade: tive de ficar em casa, refém das suas perversas ideias republicanas. Estás a ver, não estás? As pessoas querem, aqui e ali, aumentar a produtividade (diz-se por aí que nós trabalhamos pouco e mal…) e o país não permite qualquer esforço filantrópico. As pessoas querem, por vezes, contribuir para a redução do défice (sim, porque desde a tua auspiciosa era que o país está em crise…) e as republicanas leis que regem o país republicano, definitivamente, não autorizam. As pessoas querem, esporadicamente, produzir riqueza – e o país não está à altura do sacrifício heroico dos seus vassalos. Tudo isto é feio, não te parece? É muito feio, na realidade. De resto, nenhum regime político deveria ter o direito de obrigar o seu concidadão a gozar um feriado com o qual não se identifica, e repara, meu bom Afonso, que eu nem sequer sou monárquico. Mas caramba! É de uma violência extrema, Afonsinho meu, aceitar um sistema governativo que, ostensivamente, submete os seus compatriotas, pela ausência compulsiva ao trabalho, a uma ideologia e a uma causa – em benefício próprio. Chama-se a isso, nos tempos que correm, coartar a liberdade de pensamento do indivíduo. Chama-se a isso, neste mundo pós-moderno, chantagem emocional. E, nesta matéria, o estado português, meu querido Afonsinho, barrica os seus concidadãos em suas casas na hora das comemorações das suas próprias causas.

Não sei se percebes o logro, caro Afonsinho, mas, no pretérito dia 5 de outubro, houve republicanos que ficaram em casa de mote próprio: problema deles, já que a festa era deles. Não tenho nada contra, embora não encontre argumentos a favor. Todavia, e o ponto é este, também houve pessoas, monárquicas como tu, que não puderam manifestar a sua cor política, porque a república não deixou. Que não puderam fazer a diferença, porque a república não deixou. Que não puderam contribuir para o pecúlio comum, porque a república não deixou. E, por fim, meu caro Afonsinho, há casos singulares como o meu, que não sou nem monárquico nem republicano, pois que a mim me bastava amor somente, quer dizer, uma junta administrativa à laia dos condomínios king size – mas que a república, abusivamente, me trata como um dos seus. Diz-me, Afonso mui nobre e mui leal, é tudo isto justo e lógico e humano?

Não te maço mais. Que a confiança tem limites. E eu não pretendo abusar da tua imensa bondade.

Um beijo na nuca do teu servidor sempre fiel e reais recomendações a toda a parentela,

O Manezinho da Urzelina

Cronista lusodescendente, ex-combatente das pequenas causas, ex-republicano, ex-sem-abrigo, com residência provisória em local incerto, para fugir à máquina trituradora do senhor Gaspar.


© Manuel Fontão

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