2011/10/09

O Ketchup: a história de um cozinhado por apurar...

A luta contra o ketchup

Ainda temos muito a aprender com os franceses

[Os franceses acabaram de ter mais uma daquelas ideias tão ingénuas como giras que lhe são habituais quando é preciso defender a sua língua e a sua nacionalidade, ou algo que tenha qualquer coisa que ver com esses valores. Fizeram o minitel e chamaram ordinateur ao computador e logiciel ao software. Agora, vão proibir o ketchup nas cantinas das escolas primárias. O objetivo é que os pequenos franceses e francesas conheçam o verdadeiro sabor da comida. O que até se compreende, porque nada tem sabor afogado numa camada de tomate ácido. Mas não é só uma questão de gosto, nem tão-pouco de prevenção da obesidade. Segundo as autoridades francesas, afastar o ketchup das ementas vai mostrar aos estudantes o valor que a cozinha tradicional tem para a cultura e a sociedade francesas. Segundo o departamento que gere as cantinas públicas, o uso do ketchup é contra o que a comida francesa representa. Que é convívio, partilha e gozo de bons momentos à mesa, segundo Christophe Hébert, o presidente daquele departamento (NM, 09.10.2011).]

Como se pode observar, o título parece anunciar, de forma algo dramática, um tema marginal, na circunstância, uma hipotética luta contra um molho aparentemente inofensivo – o ketchup. Já o subtítulo, esse, parece interpelar diretamente o destinatário, perspetivado, neste contexto, como uma pluralidade inclusiva que já terá aprendido muito com a cultura e civilização francesas, mas não o suficiente. Destarte, o artigo de opinião parece pressupor a influência que a França teve, no passado, na estruturação dos costumes lusos, e, mais do que isso, parece reconhecer, ainda que de forma implícita, que os portugueses não completaram, ainda, o seu processo de formação e de aprendizagem (isto é, deveriam continuar a aprender…). Todavia, e como o desenvolvimento do texto comprova, tanto o título (autêntica metonímia da multiculturalidade) como o subtítulo se inscrevem num registo irónico, pelo que os valores da cultura portuguesa, designadamente, a sua propensão para a aceitação e tolerância socioculturais, nada têm que aprender de uma França cada vez mais reativa e egocêntrica…

De resto, a jornalista, na posse da imagem prévia que os seus leitores possuem da França, cuja característica se prende com o tão propalado chauvinismo, não enjeita a oportunidade argumentativa de corroborar o estereótipo. Com efeito, enquanto os franceses conseguiram, afinal, vingar a sua deriva tecnológica (fizeram o minitel), e, mais do que isso, impuseram uma ordem interna aos subprodutos técnicos vindos do exterior, criando, para o efeito, uma terminologia própria, os portugueses, esses, continuam a assistir, impávidos e serenos, ao empréstimo linguístico, sem que isso implique, porém, qualquer receio de perda de identidade nacional e nacionalista – de que o sistema linguístico faz parte integrante.

Reconstruído, assim, o ethos do exemplo francês, uma civilização demasiado centrada nas suas próprias especificidades, pois que, habitualmente, defende, de forma excessiva, nevrótica, acérrima e ingénua, os seus valores fundamentais (como a sua língua e a sua nacionalidade), a jornalista inicia, sem mais, o seu assunto de fundo, ao recorrer a um advérbio (agora), que marca, certo, uma rutura com o dito, mas que, ao mesmo tempo, designa, não apenas o caráter pontual, mas também a singularidade do que vai ser dito: a proibição do uso do ketchup nas cantinas da escola primária, uma medida que vai ao arrepio da vocação humanista da França de outrora e das recentes teorias do multiculturalismo...

Claro que, na reconstrução dessa dupla imagem (a do leitor, em primeira instância, assim como as representações que ele, o leitor médio e esclarecido, possui de uma França simultaneamente conservadora e vanguardista), a autora do artigo de opinião convoca outras tantas vozes vindas do exterior, que eu englobaria numa espécie de rumor geral, que, informemente, se dilui num ruído de fundo (a vox populi), como por exemplo, o fenómeno da comida de plástico, a crescente americanização do Ocidente, as causas perversas que o fast-food provoca nos consumidores (obesidade, riscos cardiovasculares acrescidos, etc.), a secundarização das comidas tradicionais, a alteração do sabor natural do conteúdo (o ketcup é contra o que a comida francesa representa), o esvaziamento da natureza social das refeições (convívio, partilha e gozo), em suma, um cortejo de vozes que englobarão, não apenas os especialistas na matéria (segundo o departamento que gere as cantinas públicas; segundo Christophe Hébert), mas também a voz corrente (a doxa).

Todavia, e na impossibilidade de tudo abarcar nesta análise, apenas chamaria a atenção para o facto de os argumentos que justificam a adesão da pessoa escrevente não são – como não poderiam – da sua responsabilidade exclusiva, mas são, antes, convocados de fora para dentro, isto é, são selecionados a partir de um cortejo de saberes enciclopédicos partilhados, quer pelo emissor, quer pelo destinatário, e, deste modo, postos ao serviço da orientação argumentativa do texto, na circunstância, traduzidos na benigna compreensão da tomada de posição das autoridades francesas (O que até se compreende), de resto, algo modalizada pelo conector argumentativo até

Significa isto que o locutor ativa uma parte das propriedades que, supostamente, definem o seu alocutário para, desse modo, produzir uma imagem coerente, capaz de responder às necessidades da troca verbal. E, se se reparar bem, o objetivo deste parágrafo de introdução é, justamente, o de lavrar um elogio à cultura e civilização francesas configurado no texto – e pela textualização – de modo a resolver algumas resiliências por parte da opinião pública (a doxa), estratégia, em tese, delicada.

[Não sei se os franceses associam essa falta de convivialidade ao brutal facto de o ketchup ter de sair do frasco aos solavancos, com pancadas secas no fundo da garrafa. Mas, e para usar mais uma expressão culinária, isto é como tentar tapar o sol com uma peneira (e, já agora, esta é uma expressão tão tonta como tentar preservar a comida francesa proibindo ketchup nas escolas). Nem o ketchup será certamente o molho de todos os males, nem a globalização gastronómica poderá ser de alguma forma travada com medidas destas, como muito bem sabem, por exemplo, os milhares (arrisco: milhões) de portugueses que comem croissants ao pequeno-almoço, baguettes recheadas ao almoço, éclairs e mil-folhas ao lanche e foie gras ao jantar. E nunca se queixaram da invasão gastronómica francesa, que, aliás, tantas vezes vem por bem (NM, 09.10.2011).]

Este segundo parágrafo, parte integrante do artigo em estudo, coloca em evidência, de forma intrasubjetiva (não sei se…), a natureza irónica do assunto, primeiro, pelo encadeamento de causa e efeito entre o manuseio do continente (frasco) e o esvaziamento social do ato de comer, e, depois, pelo recurso intencional à expressão metalinguística (tentar tapar o sol com uma peneira), cujo caráter absurdo (o sol e a peneira não pertencem, como é óbvio, à área semântica da culinária, muito embora a peneira sirva para crivar cereais…) faz contraponto ao despropósito da medida, pois que a proibição do ketchup não promoverá, por certo, o convívio à mesa.

Num segundo momento, Catarina Carvalho, prevalecendo-se, como se impõe, de uma voz coletiva (como muito bem sabem…), no caso vertente, o conjunto de portugueses consumidores de produtos franceses, inverte, de forma magistral, os dados do problema – de que a cultura portuguesa sai claramente beneficiada. Dir-se-ia, por conseguinte, que se vira o feitiço contra o feiticeiro, pois que, se por um lado, temos uma França etnocêntrica, isto é, avessa à globalização gastronómica, às modas importadas, às realidades sociopragmáticas, no lado oposto, temos um país – Portugal – pluricultural, diverso, tolerante e aberto ao mundo dos sabores. E, ironia suprema, revelamos uma cultura gastronómica, cujos traços identitários assentam na interculturalidade, quer dizer, na plena integração de outras cozinhas, designadamente, a francesa. Com efeito, o croissant, a baguette, o éclair, o foie gras, o camembert, etc. entraram, definitivamente, nos hábitos alimentares portugueses, sem que isso implicasse, em momento algum, qualquer receio, de resto, infundado, sobre a linha divisória entre o que é nacional e o que não o é, nem foi necessário, até à data, impor um travão legislativo à invasão de produtos franceses, e exemplo da estratégia gaulesa face ao famigerado ketchup

Face ao exposto, importaria, por conseguinte, atualizar o subtítulo, que, neste contexto, sugere um eventual embargo, até porque a lei da reciprocidade a isso obrigaria. Mas talvez o tiro nos saísse pela culatra, porque ficaríamos sensorialmente mais pobres e, sobretudo, culturalmente mais pequenos, porque, como bem dizia Charolles, ter cultura é perceber diferenças – lá onde o leigo perceberá, como é óbvio, uma massa informe e indistinta…

[A popularidade ou impopularidade de uma cozinha não se define por decreto. E a história da nossa gastronomia conta-se em tantas viagens quanto estradas, mares e rios tem o mundo. O próprio ketchup é prova disso – levou muitos mais anos a chegar aos Estados Unidos do que os croissants de Paris a Lisboa. Segundo a mais básica das fontes, a Wikipedia (confesso), o ketchup nasceu na China como uma junção de peixe em vinagre e especiarias. Este molho foi, depois, adaptado pelos malaios e filipinos – que já conheciam o tomate que lhes tinha sido trazido da América do Sul, Peru e México pelos descobridores espanhóis. A junção do vinagre com o tomate ainda é a imagem de marca do ketchup, que foi, depois, adotado pelos ingleses, através de contactos comercias na Malásia. Em finais do século XIX, o molho de tomate foi difundido nos Estados Unidos – muitos dos americanos recentes viam o tomate cru como venenoso. Tão venenoso quanto os franceses veem agora o ketchup (NM, 09.10.2011).]

O caminho, até aqui, trilhado pela autora do artigo antecipava – como se confirma neste parágrafo – o triunfo da universalidade lusa, em contraponto, muito justamente, com o crescente fechamento da sociedade francesa, que, ao arrepio de uma tendência universal e universalista, teima em tergiversar do essencial. E, se dúvidas houvesse na matéria, aí estão os argumentos carreados para a prova, na circunstância, factos brutos e irrefutáveis, supostamente, científicos, como mandam as boas regras do texto argumentativo. Com efeito, o locutor (Catarina Carvalho) recorre à voz da história, cita fontes diversas (mesmo as mais prosaicas, como a Wikipedia, pois que a luta parece, definitivamente, ganha…), prevalece-se, aqui e ali, da voz do bom senso (a popularidade ou a impopularidade de uma cozinha não se define por decreto), do saber experiencial (a nossa gastronomia conta-se em tantas viagens quanto estradas, mares e rios tem o mundo) e, por fim, da competência enciclopédia.

Destarte, não são os outros povos que semeiam a discórdia no mundo hodierno, pois que eles absorveram, espontaneamente e por vontade própria, os valores franceses, mas é, justamente, a França, que, alienada da sua verdadeira vocação, dissemina, no mundo de hoje, o veneno que ela própria, num esforço humanista, promoveu…

[Tudo isto parece, portanto, mais uma forma de remar contra a maré. Que, como em todas as formas de remar contra a maré, tem o seu quinhão de valentia e nobreza. Neste caso, a de tentar defender o que é nacional. Com melhor gosto e mais eficiência do que encher a Avenida da Liberdade de hortas (NM, 09.10.2011).]

A conclusão da autora recupera, no essencial, as premissas do texto de abertura. Em aberto, ficará, sem dúvida, a melhor forma de defender o que é nacional. Em todo o caso, nem sempre aquilo que é nacional é bom… Principalmente, quando a defesa do que é nacional passa por iniciativas tão prosaicas e simplistas como aquela que acorreu na Avenida da Liberdade…

© Manuel Fontão

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