2011/11/13

O [des]acordo do nosso [des]contentamento

Como sabemos, a ortografia da língua portuguesa é regida por um conjunto de normas oficiais sob a forma de acordos ortográficos. Com efeito, já no início do século XX surgia em Portugal (e no Brasil...) a intenção de se estabelecer um modelo de ortografia que pudesse ser usado como referência nas publicações oficiais e no ensino em ambos os países, iniciando-se assim um longo processo de tentativas de convergência das ortografias usadas em cada país. 

Posteriormente (1943), realizava-se em Lisboa um encontro entre os dois países, com o objetivo de uniformizar os vocabulários já publicados, a saber, o da Academia das Ciências de Lisboa (1940) e o da Academia Brasileira de Letras (1943). Aliás, deste encontro resultaria o Acordo Ortográfico de 1945, que, no entanto, apenas entrou em vigor em Portugal, pois que o Brasil continuaria a reger-se pelas regras expostas no Vocabulário Ortográfico de 1943. 

Não obstante as dificuldades, em 1986, foi levada a cabo, no Brasil, uma nova uniformização da ortografia, sem que, mais uma vez, se tivesse chegado a uma plataforma de entendimento. Assim, só nos anos seguintes, fruto de um longo trabalho desenvolvido pela Academia Brasileira de Letras e pela Academia das Ciências de Lisboa, os representantes oficiais de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe assinariam o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, ao qual viria a aderir, também, depois da sua independência em 2004, Timor-Leste. Finalmente, o Acordo Ortográfico de 1990 entraria em vigor, no início de 2009 no Brasil e em 13 de maio de 2009 em Portugal...

Claro que muito se escreveu – e se continuará, por certo, escrever – sobre o novo acordo da língua portuguesa. Uns, apregoaram que não haveria um qualquer pressuposto científico que justificasse a proposta. E não sem razão, pelo menos, aparentemente. O acordo subverteria o plano diacrónico da língua, isto é, interviria diretamente na evolução e/ou na involução natural de uma língua, imprimindo-lhe, externamente, uma norma que teria nascido por decreto. Assim, e nessa matéria, o (des)acordo operaria um corte epistémico com o passado recente, ou, dito por outros termos, resultaria do primado político sobre a realidade sensível – que, como todos calcularão, pertence ao coletivo e, como tal, deveria estar acima de qualquer veleidade partidária, que é, no fundo, interina, precária, provisória. Ainda bem! 

Parece-me, todavia, que os argumentos utilizados pelos adversários do acordo, ainda que justos, ignoraram olimpicamente vários aspetos históricos e não levaram, em última análise, em linha de conta, o facto, simples em aparência, de as línguas terem, desde sempre, vivido numa autêntica guerra civil. E sem piedade, acrescente-se. Com efeito, basta pensar no Francês atual, aquele que era originariamente falado na Ile-de France e que terá, num determinado corte sincrónico (e diacrónico…), pulverizado a langue d’oc, apenas e tão-somente porque o dialecto falado em le bassin parisien (la langue d’oïl) era o adotado pela corte. Basta pensar nos antigos dialectos falados nas vetustas cidades italianas, para nos apercebermos das razões que terão feito vingar a língua de Dante. Basta, enfim, pensar na formação da língua de Cervantes, para nos percebermos de que as línguas tendencialmente universais do mundo hodierno não passaram, na sua génese, de meros dialectos locais, invariavelmente potenciados pelo elemento político. Quer isto dizer que todas as línguas, pelo menos aquelas que são faladas no velho continente, beneficiaram da tentacular intervenção da força política e o exemplo paradigmático desta perpétua guerra aberta entre a língua e a política está na teoria dos substratos* e dos superestratos*. De resto, o exemplo acabado desta intervenção política no corpo da língua está na ação hercúlea de Atatürk, que conseguiu, em 1935, uma das mais espectaculares reunificações linguísticas, na ocorrência, na Turquia...

Por outro lado, importa referir que o acervo lexical do português deriva de duas vias, a saber, a via erudita, de pendor literário (latim clássico) e a via popular, que chegou pelo latim vulgar. Ora, muito justamente, a primeira deriva foi obra, não raras vezes, de académicos, de eruditos, de homens intelectualmente influentes, que, por esta ou aquela razão (a bem dizer, devido à estrita observância da norma etimológica…), introduziram, muitas vezes ao arrepio das normas fonotáticas do momento, um sem-número de vocábulos que as gramáticas reúnem sob a designação de palavras divergentes (na medida em que derivam do mesmo étimo, embora se tenham distanciado, quer quanto ao sentido, quer quanto à grafia, quer, enfim, quanto à fonética). É o caso, por exemplo, dos nomes /mácula/ e /mancha/, que derivam do étimo latino /macula/, sendo que o primeiro termo (/mácula/) chegou pela via erudita, ao passo que /mancha/, chegou pela via popular. É o caso ainda de /óculo/ e /olho/ de oculu(m), de /clave/ e /chave/ de clave(m) e de /rival/e /rio/ de rivu(m). Aliás, os exemplos abundam e cito um pouco ao acaso outros exemplos paradigmáticos, tais como /plano/ e /chão/ de planu(m), /ato/ e /auto/ de actu(m), /direto/ e /direito/ de directu(m), /delicado/ e /delgado/ de delicatu(m), /sigilo/ e /selo/ de sigillu(m), /rotundo/ e /redondo/ de rotundu(m), etc. 

Tudo isto significa, por conseguinte, que a língua não é apenas vulnerável ao elemento político, mas também a outros fatores (externos) relacionados com a História da Língua (Cf. a ação das Academias, dos modismos, dos sociolectos e dos idiolectos…).
[...]

Chegados aqui, urge clarificar o meu pensamento. Claro que não defendo a intromissão da ação política no elemento linguístico. Mas constato, tão-somente, que a língua e a linguagem têm sido, vezes amiúde, um importante instrumento nas mãos da política. E dos vencedores. Foi assim que o Latim se espalhou por todo o império. Foi assim que o espanhol, o francês, o inglês, o português, etc. se espalharam pelo Novo Continente, razão pela qual se pode afirmar, com toda a propriedade, que a História da Língua se confunde invariavelmente com a ação técnico-militar. 

De resto, a maioria dos adversários do acordo cai no erro, a meu ver abusivo, de querer disfarçar o afeto com argumentos aparentemente racionais e quase sempre alarmistas. Ora, na verdade, o acordo não vai fazer desaparecer, como muitos apregoam, a língua de Camões ou de Eça, cujos autores, aliás, usaram ortografias bastantes diferentes um do outro e ambos recorreram a regras morfológicas e sintáticas muito divergentes da atual – a nossa. Além disso, todos sabemos que as regras fonotáticas do nosso autor épico seriam, com certeza, muito diferentes das nossas. Também não me parece sustentável afirmar que o desaparecimento das consoantes surdas ditará a morte de uma qualquer consciência etimológica, porque, em boa verdade, esse estádio intelectual está apenas ao alcance de alguns iluminados, aqueles, justamente, que tiveram a oportunidade de aprender a língua materna num tempo em que o sistema de ensino era bem mais exigente, pois que tinham o ensejo de juntarem, à sua grelha curricular, o estudo do Latim. Ora, como se tudo isso não bastasse, surge ainda, aqui e ali, o arremesso patriótico de que não nos devemos curvar perante os brasileiros, como se a unificação ortográfica nos obrigasse a dançar ao ritmo do samba ou como se o português comezinho não vivesse, desde há já algumas décadas, deslumbrado com tudo o que é brasileiro, facto tristemente verificável na antroponímia telenoveleira ou nas pálidas tentativas de desnudação carnavalesca de Ovar ou de Torres Vedras (em pleno Inverno…), ou, ainda, na substituição forçada da palavra /bicha/ por /fila/...

A debilidade argumentativa daqueles que atacam o Acordo, todavia, não beneficia quem o defende. Longe disso. As declarações feitas por responsáveis da Lusa, do Sol ou do Record no programa Páginas de Português da Antena 2, no dia 3 de Janeiro (clicar aqui para ouvir…), abordam, todas elas, a suma importância do mercado, essa espécie de argumento maior que a tudo se sobrepõe, mesmo quando o que está em causa é a Cultura e a(s) Humanidade(s). De resto – e voltando, ainda, à imponente lógica de mercado –, não quero acreditar que um qualquer autor português, por exemplo, passe a vender mais no Brasil por causa da nova ortografia ou vice-versa. Para além disso, entre os vários pontos de pista em confronto, importa constatar que as modificações serão mínimas – tão magras que me questiono seriamente se terá valido a pena tanta polémica, tanta discussão (a maior parte dela estéril…), tanta maledicência, quando sabemos que num e noutro país será a fonética que imporá as regras do jogo, será o modo como cada sujeito falante atualizará o código, em suma, quando sabemos que serão os povos que continuaram a enformar o todo linguístico. E, nesta matéria, pouco importa se o português de Portugal tenderá para uma grafia /receção/, ao passo que no Brasil, se continuará a escrever /recepção/...

Nem de propósito! Para que nos habituemos, aqui fica um guia rápido do famigerado (des)acordo. Bom proveito!


Glossário

Substrato: nome que se dá à língua de um povo que é abandonada em proveito de outra que a ela se impõe, geralmente como consequência de uma conquista política Cf. Mattoso, J. (1985) História e Estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão Livraria Editora); 

Superstrato: nome que se dá à língua de um povo conquistador, que a abandona para adotar a língua do povo vencido (ibidem)

Adstrato: toda língua que vigora ao lado de outra (bilinguismo), num território dado, e que nela interfere como manancial permanente de empréstimos (ibidem)

Nota: caso não consiga a abria a hiperligação citada supra, tente o endereço http://ww1.rtp.pt/multimedia/progAudio.php?prog=1833

© Manuel Fontão

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