2010/08/23

A MÚSICA_ELEMENTOS DE POSSIBILIDADE_3. FACTORES DE EVOLUÇÃO

Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete.
Queiroz, E. (1988 : 90)

É um lugar-comum afirmar que Portugal ficou refém da política do espírito. E não sem razão. Com efeito, o SPN não contribuiu, infelizmente, para o florescimento da arte, em geral, e da música, em particular. Parece-me, todavia, que a música erudita foi a que menos terá sofrido com a asfixia imposta pelo organismo de propaganda salazarista presidido por António Ferro. Na realidade, o pensamento estético assume-se, na sua essência, pela tradição e pelo conservantismo, isto é, procura garantir a práxis humana dentro de uma certa linha de continuidade e sempre numa solução de compromisso com o passado. Por outras palavras, a procura incessante do belo, do virtuosismo, da perfeição aproxima o homem e o artista de Deus e pouco importa, aqui, se o modelo (o arquétipo) tem uma existência real ou não: faz parte do imaginário, possui valor de símbolo, preenche uma necessidade teleológica e a obra (tal como o génio que a terá engendrado...) fica, assim, mais próximo da fonte, da verdade e do absoluto.
Com efeito, não há meio-termo e a história não filtra a mediania do voo. Ora, em razão, justamente desta ambição sobre-humana (segundo a qual o homem artístico está acima da do homo vulgaris), a tradição suporta mal toda e qualquer inovação, toda e qualquer tentativa de ruptura com um passado (pre)estabelecido, (re)conhecido e geralmente aceite como moralizante, coerente e benéfico.

Face ao exposto, não me parece que, pelo menos directamente, a música erudita tenha sentido na pele as garras apertadas do Secretariado de Propaganda Nacional. Mas diga-se, em abono da verdade, que o isolacionismo a que o país esteve sujeito, não será, por certo, um elemento negligenciável no atraso que verificou no panorama musical português, na justa medida em que o contacto com o que de melhor se fazia, então, no continente europeu mal encontrava eco no país cinzento e repressivo do regime salazarista. Aliás, neste capítulo, assistia-se tão-somente a uma cultura do pastiche. Em suma, Portugal carecia de modelos de referência, de estímulos externos, de uma certa miscigenação cultural (porque é pela partilha que vamos…) e, em vez de se promover a educação musical, acentuou-se, isso sim, a política Deus, Pátria e Família, pelo que, em termos domésticos, ficámos, de facto, reduzidos, à cultura dos três F.

Além disso, importa referir que, ao atraso cultural, se associava o baixo nível económico do primeiro quartel do Século XX, cujo contexto não favorecia, de todo, a produção musical. Com efeito, embora a música erudita não obedeça, em rigor, a uma necessidade inexorável de um determinado instrumento, a verdade é que o compositor, no acto da concepção, pensa, obviamente, numa certa gama instrumental ao nível da performance. E, nesta matéria, a produção industrial revelava-se escassa e acarretava custos incomportáveis para a vida dos grupos. Correlativamente, os públicos eram bastante reduzidos, e, pior do que isso, primavam por um gosto algo duvidoso, quando não por uma inusitada ignorância. Faltava, por conseguinte, educar o ouvido…

E, apesar deste atraso estrutural, a música evoluiu, de forma espantosa, nestas duas últimas décadas. Percebe-se porquê. Portugal tinha aberto as suas portas em Abril de 1974. A música de intervenção havia lançado as sementes. Os tímpanos estalavam pelo lado de dentro do ouvido externo. A canção guiava o povo…

Doravante, a marcha fúnebre cedeu o lugar à esperança. À liberdade criadora. Ao redimensionamento da consciência individual. Ao génio. E, para este estado de coisas, em muito terá contribuído, por certo, a abertura à produção criativa de várias organizações (Cf. a Culturgest, a Fundação de Serralves, o Departamento de Artes da Universidade de Aveiro – entre outras) e o nascimento de organizações vocacionadas para concertos específicos e que resolveram apostar em novo reportórios (Cf. Festivais de Música em Novembro, organizados pelo Teatro Nacional de S. Carlos).

Por outro lado, a consolidação da democracia veio permitir um gradual aumento do poder de compra, isto é, acabou por permitir, ao consumidor, um crescente acesso aos produtos culturais, criando-lhe necessidades (reais ou imaginárias) e oferecendo-lhe um mundo até ali inatingível. O Olimpo, doravante, não era apenas apanágio dos deuses, mas podia supostamente ser partilhado pelo comum dos mortais. Ora, os vários sectores da indústria, apercebendo-se do filão de oiro que havia despontado com a Revolução dos Cravos, não enjeitaram a oportunidade: inundaram o mercado de mercadorias cada vez mais apelativas, foram às praças expor produtos cada vez mais sofisticados, injectaram na napa social todo um rol de bens de consumo mais ou menos imediato, coadjuvados, de resto, pelos media, que, atentos ao fenómeno das massas, lhes seguiram no encalço, começando a promover o desejo, a estimular o onírico, a arquitectar a ilusão.

Não espanta, pois, que o consumidor, desperto da letargia em que vegetara durante décadas a fio, sentisse uma necessidade – quase compulsiva – de adquirir a música de um Wolfgang Amadeus Mozart, de um Johann Sebastian Bach, de um Ludwig van Beethoven, quiçá de um Joseph-Maurice Ravel, de um Claude Debussy. Assim, todos estes factores terão, de uma forma ou de outra, contribuído para a eclosão da música erudita, a saber as variantes sociopolítica, sócio-económica e psicoafectiva. Mas não só. A expansão das editoras discográficas (que facilitou o acesso cultural ao maior número), a atenção dispensada pela rádio e pela televisão à música clássica, a realização de grandes eventos internacionais (Expo 98; Porto 2001), a crescente aposta das autarquias na divulgação da nova música erudita (fazendo encomendas e incluindo nas suas programações os novos compositores), a criação de Escolas Superiores de Música, de Conservatórios, de Academias, tudo isso terá contribuído, por certo, para o rejuvenescimento do panorama musical português e, à la alongue, para encurtar as distâncias com as paisagens acústicas da vanguarda.
De resto, se se centrar a reflexão num intervalo de tempo mais próximo do momento da enunciação, poder-se-á incluir toda uma outra panóplia de factores exógenos, como por exemplo, a explosão das tecnologias da informação e da comunicação, o desenvolvimento da electroacústica, a globalização da cultura, o estudo especializado, a facilidade de intercâmbio de postos de trabalho no espaço europeu, o papel da Oficina Musical do Porto e da empresa Musicoteca, a preocupação do Estado com o sector, a massificação do ensino – e a lista permanece, naturalmente, aberta.

Face ao exposto, parece claro que, na base da melhoria da paisagem acústica nacional e, em concreto, na crescente qualidade da composição e da execução, se encontra uma radical mudança de paradigma. E, nesta óptica, deixam de fazer sentido, a meu ver, as temporadas da Fundação Calouste Gulbenkian (assim como carecem de fundamentação teleológica as festas da música). Porque estamos perante um hapax. Porque estamos perante uma execução que se esgota no acto da sua concretização.

Todavia, nem tudo são rosas. Na realidade, as dissensões entre os grupos musicais, os interesses de paróquia, a balcanização do sector, a mentalidade subsídio-dependente de alguns compositores, que, em vez de promoverem a interdisciplinaridade e o trabalho colaborativo, acabam, ao invés disso, por criar entraves ao desenvolvimento ao florescimento da música erudita. Aliás, interrogo-me se, numa época em que as possibilidades de acesso aos conteúdos musicais, disponíveis, por exemplo, na internet, não suscitam novos modos de apropriação. Com efeito, se repararmos bem, as novas práticas musicais já dispensam – para o bem e para o mal – a relação física da informação no que toca às coordenadas espácio-temporais, assim como prescindem da presença de um indivíduo num tempo e num espaço determinados. Quer dizer que a música, como todas as outras artes, nos surge, doravante, como um elemento de possibilidade, na medida em que ela escapa, justamente, ao hic et nunc. Trata-se, por conseguinte, de uma liberdade de acesso à informação musical sem precedentes, mas que não deve, no meu entendimento, sobrepor-se ou eliminar o pasmo essencial, isto é, a execução presencial – que permanece essencial à fruição global da performance .

Por outro lado, seja dito em abono da verdade que o poder central e autárquico tem, aqui e ali, primado pelo abandono e pelo desleixo no que toca ao apoio a uma música de qualidade (cf. supra, definição de música erudita). Mas a questão é demasiado complexa para ser abordada no âmbito deste trabalho, tanto mais que o assunto levanta pressupostos filosóficos, os quais se prendem, na sua essência, com a necessidade de delimitar as fronteiras entre o poder político e a instrumentalização da cultural. Mas não só. A matéria teria ainda que ver com a definição da(s) (sub)cultura(s) e com a(s) sua(s) finalidades, e, mais do que isso, com as relações de promiscuidade entre as dimensões política, social e filogenética do homo sapiens. Assim, e para abreviar, acrescentaria apenas que, para Nietzsche, a finalidade da cultura, por exemplo, deveria ser a produção do génio e, como tal, não se deveria subordinar ao poder temporal.
© Manuel Fontão

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