2010/08/23

A MÚSICA_ELEMENTOS DE POSSIBILIDADE_2. CONTRIBUTOS PARA UMA LEITURA BIOSSEMIÓTICA

La profondeur [de la musique] fait appel à notre profondeur.
Jankélévitch (1983: 124-126)

É um dado adquirido que o registo sonoro constitui a antecâmara dos nossos sentimentos, das nossas representações mentais, dos nossos medos e dos nossos sonhos, sem que seja, todavia, possível registá-los sob a forma de linguagem escrita. Digamos que a música vale pelo seu poder sincrético e toda a tentativa de tradução para uma linguagem outra fica sujeita a caução e depende, em última instância, de uma hermenêutica particular – a do exegeta.

De resto, para a escola pitagórica todo este poder de evocação se encontrava associado às proporções numéricas, à cabalística e, nessa óptica, fazia parte integrante de um sistema de coerência próprio designado, então, por harmonia.

Todavia, todos nós estaremos de acordo que o elemento musical apresenta todo um conjunto de considerações simultaneamente físicas e psicológicas, as quais encerraram a música, durante vários séculos, no domínio do religioso, ou, para melhor dizer, as quais fizeram da música uma espécie de vasos comunicantes com os deuses (cf. os psalmos, os cantos gregorianos, o Credo, o Sanctus, o Agnus Dei, etc.). Assim, para a Antiguidade, a música comunicava intimamente com o Espírito e esta sua dimensão (metafísica) terá, provavelmente, impedido uma abordagem semiótica de que a sua significação, no entanto, se reveste. Aliás, é importante notar que a expressão musical não encontrará eco nos estudos da especialidade...

Ora, desde os estudos de psicologia da percepção, ficámos a saber que existe um conjunto de regras básicas que se prendem com a organização horizontal da voz (cf. o contraponto) e com a forma como a melodia se encontra exposta. Com efeito, todos nós sentimos, quando escutamos um trecho musical, que existe um movimento interno, que somos transportados por uma dinâmica própria, que o ritmo avança segundo um criterioso processo de aceleração ou de desaceleração - o que implica que a melodia é percebida segundo um espaço fictício que materializa a representação do movimento. Significa isto que a expressão musical se encontra intimamente associada à aquisição, pelo viés das mensagens corporais, das noções de movimento, das atitudes cinéticas, do esforço muscular, da détente, da velocidade, do ritmo, etc. Aliás, todos estes elementos psicofisiológicos são reconhecidos no decurso da capacidade de escuta como estruturas mais ou menos familiares e convocam um determinado cortejo de emoções in abstracto. De resto, é perfeitamente possível fazer variar o sentido, segundo a capacidade de escuta, ou melhor, segundo as condições de felicidade da execução: assim, é possível realizar uma certa notação (musical) centrada, por exemplo, na repetição (como é o caso de Debussy) ou na dinâmica do acento ou ainda no enunciado propriamente dito. Ora, um dos problemas maiores da análise musical parece ser, justamente, a sua segmentação linear, sendo que vários autores insistem no carácter (i) cíclico, (ii) direccional ou (iii) acentual da repetição. Todavia, a tendência dos novos criadores é, sem dúvida, para apreender o material sonoro segundo as variações de sentido, pelo que a questão se resume, na sua essência, à dificuldade de perceber os modelos da temporalidade (altura, duração, timbre, etc.) e o contexto significante da melodia. Destarte, tornar-se-á necessário fazer apelo àquilo que, em DLE , se designa por uma escuta atenta (ou orientada), quer dizer, recorrer a uma estratégia auditiva que não se centre exclusivamente num único dado sensível (fone, grafema, morfema, lexema, semema, etc.), mas sobre o efeito de conjunto produzido pela totalidade dos parâmetros.

Todavia, parece-me que o estado da questão – que assentará, claro, numa teoria das significação, mas também, e sobretudo, na noção estruturante do tempo – não fica resolvido pelo viés de uma abordagem multifactorial do fenómeno, pois que a dimensão temporal não tem, como sabemos, uma existência própria em psicologia cognitiva. Na verdade, será necessário tomar em linha de conta, ainda, a linguagem corporal e, mais do que isso, a sua interacção com o contexto imediato. Em suma, tornar-se-á necessário fazer apelo a uma teoria global da significação, capaz de tratar cognitivamente os dados temporais, os quais, por seu turno, se deverão articular com uma codificação espacial e cinética. Significa isto que a análise musical poderá beneficiar de disciplinas conexas (a linguística, a semiótica da imagem, a teoria da enunciação, a física, a psicologia, as teorias cognitivas, a biossemiótica, etc.), pelo que o seu campo de estudos constituirá um construct, quer dizer, uma ciência-carrefour.
© Manuel Fontão

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