2010/08/24

MÚSICA_A IDEIA CONVERSA_3. PAULO CATRICA

Tal como ficou dito acima, uma fotografia deve ser considerada como uma interacção dinâmica entre três actores maiores, a saber, o fotógrafo, o referente e o espectador. Isto significa que o sentido é activamente construído e não simplesmente recebido. Assim perspectivada, a fotografia é polissémica, isto é, é capaz de gerar múltiplos sentidos (cf. Barthes, 1980). Todavia, a imagem fotográfica não é a representação do real, pois que entre uma coisa e outra há múltiplas operações, a saber, a intencionalidade do autor (dimensão estética, por exemplo), a percepção que o operador possui do real (ideologia, convicções, cultura, crenças, etc.), o material escolhido (a maior emoção que é possível retirar, por exemplo), o tratamento da própria imagem (retoques, manipulação, correcção, etc.) e, ainda, os próprios limites da arte do saber/fazer (as condições de felicidade do instantâneo, na ocorrência).

Ora, Paulo Catrica, na medida em que se interessa pelo aspecto paisagístico coetâneo, designadamente pelo poder transformador que o homem opera no meio ambiente, e, mais do que isso, pela forma como perspectiva o universo físico, merece um lugar de destaque nesta análise.

Com efeito, é de realçar, antes de mais, o realismo e a objectividade do fotógrafo, pois que, por vezes, temos a sensação de que entre os seus planos vectoriais (cf. os ângulos de noventa graus ou rectas a perder de vista…), a luminosidade realista (cf. o acto de enunciação como que dado en vrac) o olhar do artista/fotógrafo e o material seleccionado, entre tudo isto, dizia eu, não há nenhum filtro, não encerra um qualquer momento contemplativo, não revela uma qualquer dimensão auto-reflexiva. Pura ilusão de óptica, no entanto. Na realidade, o procedimento mais não é do que uma estratégia de alto rendimento estético, até porque é pelo viés desta técnica, aparentemente simples, que o autor retira toda a plasticidade, toda a transparência e toda a filosofia dos seus trabalhos. Com efeito, basta pensar na série Liceus (2005) para se perceber que, por detrás do espaço representado (fotografado), há sinais evidentes de vida humana, há toda uma efervescência emocional que jorra do quotidiano, há uma enorme densidade comunicacional em estado latente. Em boa verdade, as janelas, as portas, as lucarnas não são apenas topoï sem função argumentativa ou conceptual. Não. É, justamente, por lá que o fotógrafo, a exemplo do poeta descritivista, vê o mundo circundante. É através desses orifícios mais ou menos minúsculos ou ampliados que o descritor (scriptor) comunica com a vida e, neste sentido, constituem os vasos comunicantes com o outro lado da vida: a paisagem humana.

Não significa isto, porém, que o objecto de per si seja desprovido do elemento humano. E a prova é que o liceu, o quarto, o escritório, o corredor são, por assim dizer, espaços microssociais carregados de vivências, de peripécias, de enamoramentos, de paixões, em suma, são, por definição, palcos onde evoluem ou se desfazem os sentimentos mais íntimos do ser humano, lugares onde a trama romântica e romanesca se tece e se desfia. Assim é, por exemplo, do tempo liceal, um tempo psicológico intenso e marcante para o adolescente. Assim é do quarto onde o eu fantasmagórico anda à solta pelas fímbrias dos objectos e pelos interstícios do real transformado. Assim é do escritório onde palpita e fervilha a emoção, por vezes paroxística, de uma complexa teia de relações interpessoais. Assim é, enfim, do corredor onde nos debatemos e nos cruzamos com as histórias do outro…

Contudo, a recusa do autor em associar manifestações positivas e explícitas encerra, convenhamos, uma importante consequência epistemológica, a saber, que os seus trabalhos se inscrevem numa teoria interpretativa aberta e a priori infinita, ou seja, o intérprete é livre de reconstruir a matéria representada segundo o seu próprio sentido estético. De resto, é importante que se diga que o seu modus operandi tem que ver com aquilo que Gérard Genette designa de palimpsestos, ou seja, uma operação scripturale em que cada fotografia é percebida como um processo de sedimentação, i. e., como uma narrativa disposta por várias camadas históricas.

De resto, a temática central da sua obra levanta a questão – fulcral – da relação da fotografia com a História. Ora, dado que a fotografia pressupõe uma espécie de catástrofe cronológica, parece, à primeira vista, que o acto (fotográfico) mais não faz do que recuperar um tempo retrospectivo, um tempo que se reactualiza, em suma, pela evocação imagética. E, se é certo que o autor explora esta possibilidade, aproximando-se do exercício documentário, não é menos verdade que, ao contrário do relato histórico, subjectivo, fragmentário e sacralizado, a fotografia, pelo seu valor polissémico e pluridireccional, questiona o historiador, obrigando-o, no caso em apreço, a repensar o seu discurso alegadamente objectivo.

Mas não é tudo. O trabalho fotográfico de Paulo Catrica, pelo seu valor arquitectónico, entra, por direito próprio, na etnologia da fotografia, neste sentido que as ciências conexas (a sociologia, a arquitectura, a etnologia, o folclore, etc.) se podem socorrer dos seus trabalhos, para levar a cabo estudos sectoriais. Aliás, note-se, em guisa de parênteses, que a fotografia, neste particular, veio pulverizar e anular por completo as taxonomias, os inventários e as descrições exaustivas dos lugares, cujas potencialidades, de resto, já haviam sido exploradas por André Breton.

Por fim, e contrariamente a uma certa corrente de opinião, importa frisar que o projecto fotográfico de Paulo Catrica não está isento de emoção e de hormonas à flor da pele, como acima ficou provado e, sobretudo, como (com)prova o seu trabalho Stadia (2004). Longe disso! Porque é no estádio que o instinto anda à rédea solta. Como anda, certamente, nos subúrbios de Lisboa, do Porto e de Caracas. Ad libitum
© Manuel Fontão

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