2010/08/24

FOTOGRAFIA_A IDEIA CONVERSA_2. JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO

Não vou, aqui, fazer a resenha biográfica ou bibliográfica do autor, a qual está à distância de um simples clique (http://www.vpfcreamart.com/josecarvalho.swf). Seria um desperdício de tempo e de espaço.
Assim, aquilo que me interessa frisar, desde já, é o contributo maior do nomeado para o Prémio BES 2006 no domínio da fotografia, a saber, o seu carácter interdisciplinar. Com efeito, o autor tem feito uso de uma certa concepção artística para lhe acoplar o poder ambivalente da linguagem, e, nesta perspectiva, o material deve ser interpretado sob um triplo vértice: (a) o material fotográfico, (b) a sua resultante imagética e (c) o elemento linguístico. Note-se, desde já, a proximidade desta concepção artística com o teatro brechtiano, pois que, no centro do seu trabalho, está a preocupação de fazer sair o espectador do seu estado de letargia, da sua atitude mais ou menos acrítica e indiferente. Por conseguinte, poder-se-á considerar o trabalho de José Maçãs de Carvalho em linha com as teorias da enunciação, pois que encerra um diálogo permanente entre o acto de enunciação (intencional e significante), o enunciado (o objecto produzido pelo acto de enunciação) e o intérprete.
Relação de dependência, com efeito, do processo criativo. Necessariamente. Mas não de contaminação, porque a linguagem, essa, já estava presente no acto de enunciação original . É que, neste capítulo, existem, pelo menos, dois níveis dialogais, sendo que o primeiro é aquele que coloca em cena o locutor1 (a instância criadora) com o seu enunciado, enquanto o segundo põe em evidência o locutor2 (a instância reprodutora ) com o locutor3 (o intérprete).
Falo de linguagem e, nesta matéria, há que ter presente que a comunicação encerra um paradoxo, mal grado o pacto de generosidade que me (nos) anima. Com efeito, quando faço saber, ao meu interlocutor, que gostaria de ver uma foto do seu aniversário, entendo que quero ter acesso a uma das fotos do evento – e não a outro qualquer objecto que lhe pertença, por exemplo, a sua máquina digital último modelo ou o seu telemóvel com câmara incorporada. Significa isto que observo escrupulosamente as regras do código linguístico no qual me exprimo (o Português) e não me passa pela cabeça ludibriar, nesta matéria, o meu ingénuo interlocutor. Contudo, esta marca de magnanimidade manifesta-se claramente insuficiente na interacção verbal, e, em última análise, nunca teremos – hélas! – a certeza de aquilo que nós queremos dizer é, em rigor, aquilo que nós pretendíamos significar. Mais. Nunca saberemos se aquilo que quero dizer é aquilo que o meu interlocutor entende que estou a querer transmitir. Daí, os equívocos, os mal-entendidos, o quiproquo. Mas não só. A incomunicabilidade também é função do sistema de crenças, de valores socialmente aceites, de personalidade - do hic et nunc. Na verdade, quando contemplo um jardim, por exemplo, exclamando /Mas que lindo jardim!/ e recebo do meu interlocutor um seco /Ui! Chamas àquilo um jardim?/, parece provar que a configuração semântica de um e de outro não coincide ponto por ponto nas propriedades consignadas ao objecto (jardim).
Face ao exposto, e levando em linha de conta os pressupostos teóricos acima enunciados, inerentes, de resto, à condição humana, parece mais fácil compreender o trabalho de José Maçãs de Carvalho, que recorre a uma dialéctica assente em situações comunicativas tendentes à intervenção social – positiva e positivista.

Assim, a fotografia de uma nova Marlyn Monroe, ressuscitada ou melhor, reproduzida à saciedade como símbolo da sedução e do sex-appeal do fenómeno hollywoodesco mais ou menos escultural, convida provocatoriamente várias personalidades políticas a um brinde efusivo, o que faz aproximar – de forma ilegítima – o discurso político do show business. Na realidade, o mundo do espectáculo, ponto de intersecção entre a liberdade individual e a criatividade performativa, não se deveria compaginar com o homem político, que surge invariavelmente investido pelos traços configuracionais da gravidade, do distanciamento, da frieza racional, do dogmatismo e do conservantismo. Dito por outras palavras, se contaminação existe neste trabalho, ela é preexistente à entrada em cena da linguagem: encontra-se impregnada no próprio valor icónico e simbólico das imagens fotográficas.
Claro que a linguagem constitui um elemento preponderante neste trabalho. Mas não posso concordar que a introdução do discurso venha, como soe dizer-se, desestruturar o conjunto. Muito pelo contrário. O trabalho (video)fotográfico, com a verbalização do brinde, reestrutura o todo o significante, neste sentido que, doravante, não é o Presidente William Howard Taft o destinatário primeiro do brinde (inscrito num Tempo T0 e num Espaço Δ0) mas são, isso sim, os vários responsáveis políticos do mundo contemporâneo que, destarte, surgem mimetizados num Tempo T0+1 e num Espaço Δ0+1. De resto, os vários convites não passam, no fundo, de meras fórmulas consagradas pelo uso , isto é, traduzem tão-somente um saber/estar dos (sub)mundos social e político protocolarmente instituídos e não implicam, em caso algum, um qualquer juízo de valor pessoal ou intimista.
Dito isto, importa, por conseguinte, extrair várias implicações teoréticas do magnífico trabalho de José Maças de Carvalho. E a primeira prende-se com o efeito de analogia: assim como em 1957, também no dia 17 de Maio de 2005, aquando da célebre reunião entre George W. Bush, Tony Blair, José María Aznar e Durão Barroso, se brindou festivamente ao eminente sofrimento dos povos. Também houve champanhe para lubrificar a máquina de guerra. Também houve embriaguez quanto baste para comemorar o momento fatídico, a tragédia, a morte. Assim, a /nova Marilyn/, símbolo maior do mundo espectáculo, erige-se em anfitriã, subsuma os estados paroxísticos de uma certa forma de fazer política, instaurando uma relação de semelhança entre o seu ofício (despertar o olhar do outro) e a realpolitik.

Note-se, a este propósito, que o que surge conceptualmente deslocado, nesta relação analógica, não é certamente, o mundo do espectáculo, que, esse, possui as suas regras próprias, tais como o glamour, a fotogenia, a coisificação e a massificação do eu. Não. O que é surpreendente é perceber que tanto o discurso como a práxis políticos também aspiram à mesma lógica comportamental, também primam pela espectacularidade, também sobem festivamente ao palco para comemorarem a morte.

Absurdo de situação, pois. Porque a preparação da guerra não é propriamente um festim. Sobretudo, porque é invariavelmente feita contra os povos. Porque, acima de tudo, não leva em linha de conta o bem-estar dos povos. Porque é raramente ratificada pelos seus legítimos representantes – o povo. Assim, a reunião bélica, hiperónimo de toda a acção política, constitui, antes de mais, uma embriaguez dos sentidos. Um insólito. Um vício. Um defeito de carácter. Um non-sense. Uma antropofagia.
Visão, por conseguinte, antitética a nível do conteúdo, pois que, a uma figura marcante do imaginário feminino (leveza, beleza, sedução, charme, convite), responde o homem político - um homo sapiens sapiens sem sentido de humor, um homem formal e preso às suas convicções, em suma, um burocrata inveterado, tal como o descreveu Eugène Ionesco.
De resto, o convite, notemo-lo de passagem, varia ligeiramente em função do destinatário primeiro e de acordo com dois valores escalares [+ intimidade; - intimidade], ou seja, o brinde é função do grau de (des)confiança na partilha efectiva. Assim, e como se pode observar, o /Presidente Barroso/ e o /Presidente Kadhafi/ são convidados avant la lettre, ao passo que o /Presidente Putin/ e o /Presidente Arafat/ levantam uma interrogação sobre o desfecho do referido brinde.

Não será talvez inútil afirmar, a este propósito, que a estratégia (pré)discursiva do trabalho encerra um valor eminentemente psicográfico, biossocial e sociopolítico, pois que os dois primeiros cedem voluntariamente à tentação do adversário, quiçá do inimigo, ou melhor, já estão a selar incondicionalmente o estranho pacto de sangue, enquanto os dois últimos, esses, são objecto de alguma deferência e de expectativa: venderão a sua alma ao diabo, à laia de Fausto – ou não? A história está aí para desvendar o segredo – e a competência enciclopédia não será palavra vã, nesta matéria…

Um outro elemento digno de análise será, sem dúvida, a reprodução massiva da fotografia, ou, para optimizar o dito, a reprodução do estereótipo – quer se trate do brinde propriamente dito, quer se trate do sex-symbol. Ora, como se sabe, o estereótipo é um pré-conceito. Quer dizer, vem antes da noção e prende-se com um conjunto de representações colectivas e comummente aceites pelo maior número, pelo que a estratégia utilizada pelo autor se prende, antes de mais, com uma certa provocação conceptual. Assim, a escolha de uma /Marilyn Monroe/, rejuvenescida e manipulada, uma representação por assim dizer totémica, significa justamente, a funcionalização da personagem: pouco importa, por conseguinte, se a fotografia reproduz fielmente a Marilyn em carne e osso ou se é a sua cópia, pois que o que está em causa é, sobretudo, os seus valores icónico e simbólico. Aliás, a despersonalização do retrato, porque potencia a polissemia do enunciado, toca de perto, não apenas o cratilismo do nome próprio, mas também levanta a questão da fragmentação da consciência individual e do autoconhecimento socrático. Com efeito, o nome próprio da persona é um segmento biopsicossoal sujeito a caução, e, tal como procedeu José Saramago, uma personagem pode muita bem ser caracterizada por uma mera expressão denominada, tal como a mulher do médico ou o homem da venda preta, na exacta medida em que estabelece entre o indivíduo e a sua significação uma relação metonímica, ao passo que o nome próprio, esse, simplesmente não possui qualquer significação intrínseca.
Acresce a este aspecto da sua obra, um outro de não somenos importância, a saber, a construção de uma verdadeira trama diegética. Na realidade, através dos seus trabalhos fotográficos – e provavelmente mercê da sua formação inicial –, José Maças de Carvalho não se limita apenas captar o instantâneo, a imortalizá-lo, a suspendê-lo no tempo e no espaço, mas, antes pelo contrário, entende contar uma história (cf. Video Killed the Painting Stars). Estamos, pois, perante uma arte que se inscreve num determinado segmento narrativo, neste sentido que há um momento Mi (Momento inicial) e um momento Mf (Momento final), e, como tal, o procedimento aproxima a fotografia da arte, designadamente da diegesis, na justa medida em que opera uma fusão espectacular entre o real e o ficcional.

Claro que o objectivo central do seu modus operandi se prende, a meu ver, com a concepção de intérprete, que, deste modo, se sente interpelado, coagido a reagir, impelido a reflectir sobre aquilo que lhe é dado observar, em suma, a sair da sua secular zona neutral. Assim, quer seja através do vídeo, quer seja através da sequencialização da imagem/fotografia, quer seja, ainda, através da música, o observador actualiza o enunciado à sua guisa, isto é, de acordo com os seus próprios cânones estéticos, políticos, religiosos, culturais, etc. E, nesta matéria, o trabalho de José Maçãs de Carvalho deve ser entendido como positivista, interventivo, proactivo – até pelo conteúdo linguístico, que, à point nommé, desafia o observador a uma reestruturação do todo artístico.

Significa isto que o autor se move numa perspectiva multidisciplinar, pois que instaura um diálogo permanente e aberto com áreas conexas, a saber, com o movimento cinético, com a acústica (a música), com a imagem, com a fotografia, com o trabalho quinestésico, com a linguagem – de que resulta uma fusão de saberes disciplinares ao serviço da afirmação de uma identidade, situada algures entre o real e o virtual... que importa reconstruir.

Falei do poder interdisciplinar da fotografia. Falta, por fim, abordar ao seu valor documental. Na realidade, a fotografia, enquanto objecto material e suporte físico, permite ao observador a feitura de inúmeras leituras do objecto fotográfico, pois que, contrariamente à situação de observação clássica, o analista pode voltar a rever a foto tantas vezes quantas deseje, e, desse modo, examinar os detalhes, colocar hipóteses espácio-temporais, em suma, reformular o seu campo de pesquisa.
Refira-se, em guisa de parênteses, que Roland Barthes sublinhou esse facto, ao dizer, a este propósito, que a fotografia fornece imediatamente todos os detalhes que constituem o saber etnológico (Barthes, 1980: 52), na medida em que ela permite aceder a um infra-saber (idem, 1980: 54). Todavia, a perspectiva documental da fotografia não acaba aqui. Caber-lhe-ão, por certo, outras dimensões, como por exemplo, o seu valor sociológico, arqueológico e etnográfico. E, não se trata, aqui, de fazer apelo a uma qualquer hermenêutica, mas de eleger a fotografia como material significante, quer dizer, como puro acto de ostentação de uma determinada situação e/ou acontecimento. Dito por outras palavras, todo o trabalho fotográfico se prende obviamente com a memória, primeiro porque se inscreve em determinadas condições de felicidade, e, depois, porque o seu significado recorta um determinado segmento do real, ou, para optimizar o dito, convoca uma extracção mais ou menos aleatória de um fragmento do universo sensível. Ora, o conjunto artístico aqui analisado não escapa, como não poderia, à contingência temporal e, de resto, não resiste ao confronto com o relato histórico, razão pela qual se pode afirmar que o consílio dos deuses contou com a participação de actores, que, na sua grande maioria, recolherem aos seus aposentos. Assim, como os agaves que mudaram de lugar – ou jazem, petrificados, num qualquer aterro dos Açores. Tal como as vítimas da guerra contra o Iraque, ali decidida. Afinal, a festa era ilegítima. Macabra. Apocalíptica. Como todas as outras...
© Manuel Fontão

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