2010/08/23

A MODA_O PRADIGMA ESCONDIDO_2. A EVOCAÇÃO DA MEMÓRIA

Une mode a à peine détruit une autre mode qu'elle est abolie par une plus nouvelle, qui cède elle-même à celle qui la suit et qui ne sera pas la dernière.
La Bruyère, Les Caractères, XIII

2.1. A SEMIOTIZAÇÃO DO OBJECTO
Os signos de que a língua se compõe não são abstracções, mas objectos reais
Saussure, Cours de Linguistique Générale, p. 176

No mundo da moda da nossa contemporaneidade, e contrariamente ao provérbio, o hábito [parece] faz[er] o monge. Na realidade, enquanto o vestuário funcionava, para os nossos antepassados, como um sinal exterior da classe social a que pertenciam, na justa medida em que ele, o habito, servia para identificar o monge, a túnica servia para assinalar o funcionário, a armadura servia para distinguir o soldado, o fato-macaco servia para reconhecer o mecânico, etc., já nos dias de hoje assiste-se, sem dúvida, a uma diluição do signo. Em boa verdade, seria inconcebível, no passado, que o soldado se travestisse de monge ou que o monge usurpasse o fato-macaco do mecânico e, de resto, não passaria, então, pela cabeça de ninguém que o jogo das aparências invadisse a espectacularidade da indumentária. A cada um o seu vestuário. A cada um a sua roupa. A cada classe social o seu estilo. Em suma, a sociedade assentava numa lógica sistemicamente imutável e unidireccional. O mundo parecia perfeito...

Todavia, hoje, as fronteiras semióticas do ser e do parecer mudaram de lugar. Perderam a consistência de outrora. Adquiriram uma outra configuração semântica. Significa isto que o vestuário da modernidade constitui, antes de mais, uma forma de transgredir o indivíduo e de colocar o parecer no lugar do parecer ser. Assim, e para além da função primária do vestuário (protecção), encontramos, hoje, um vastíssimo leque funções secundárias, a saber, o pudor, a sedução, a valorização do corpo, a afirmação da personalidade individual, etc.

Com efeito, o mundo dos objectos (a roupa, os acessórios, etc.) possui uma função utilitária, mas também uma significação específica , o que implica que, num primeiro momento, se assiste a uma fusão entre a função (utilitária) do objecto e o seu sentido e, nesta óptica, poder-se-á afirmar que o uso de um impermeável, por exemplo, cumpre uma determinada função (serve, como é óbvio, para se proteger da chuva), mas esse uso significa, correlativamente, que o tempo está pluvioso, que o seu utilizador possui um certo estatuto social, etc. Ora, esta semantização do objecto, ou melhor, do seu uso, é inevitável, pois que, pelo viés da vida em grupo, qualquer uso é convertido em signo. Mas não é tudo. É que, num segundo momento, o objecto adquire um valor acrescido (para além do seu sentido funcional) isto é, adquire um sentido conotativo. Na realidade, um casaco de peles, por exemplo, além de proteger do frio e de significar essa protecção (sentido primário) possui, também, um valor antropológico e social de significação, o que implica, obviamente, que todo e qualquer objecto não escapa à significação, ou para melhor dizer, não há objectos insignificantes, na medida em que o processo de valorização semiótica começa no exacto momento em que o objecto é produzido e consumido – em sociedade e pela sociedade.

2.2. A MEMÓRIA
Une mode récente, ça ne se ressuscite pas. Mais une très vieille mode, oubliée depuis longtemps, alors là, pas de bobo : maquillée en nouveauté, elle fait fureur (...)
IKOR, R. Les Fils d'Avrom, p. 462.

A moda concebida no presente absoluto e gnómico é uma utopia. Não existe. Como não existe geração ex-abrupto. Na realidade, todo e qualquer comportamento social assenta necessariamente numa solução de continuidade entre o passado e o presente, isto é, entre os hábitos adquiridos em grupo ou em família e a necessidade de transgredir, de ultrapassar e de mudar a herança cultural recebida. Aliás, é neste interstício que se deve colocar a questão do estilo, que mais não é do que a divisória entre a informação conhecida (repetição ou estereótipo) e a informação acrescentada (a inovação). Com efeito, as formas de vida, as crenças, a cultura, enfim, o legado dos nossos antepassados contribui, quer se queira quer não, para dar uma forma mais ou menos estável ao mundo actual, a cujo fenómeno ninguém se pode, aliás, subtrair sob pena de colocar em risco as próprias bases do todo social, ou, pelo menos, de ser julgado como bizarro, disruptivo, incompreensível. De resto, seja dito em abono da verdade que a consistência da vida colectiva assenta, no seu essencial, na capacidade de transmissão de certos hábitos, de certos costumes, enfim, de certas rotinas, sem as quais a vida não seria obviamente possível. Aliás, é graças à memória que o homem constrói a sua identidade e o seu autoconhecimento, é graças à memória que ele tem acesso aos modos de representação do real, e, por conseguinte, é por esse viés que ele é capaz de contrariar a norma, na justa medida em que a transgressão do signo constitui um conceito relacional, quer dizer, um jogo de correspondências entre o preestabelecido e as divergências estilísticas, entre o corpóreo e o imaginário, entre o sonho e a realidade, em suma, entre a reprodução e a recriação. Ora, assim perspectivado, o fenómeno da moda pode resumir-se a uma teatralização do passado, a uma mimesis interpretativa em que a tradição (o tema) e a inovação (o rema) entram em partes desiguais e dissemelhantes...

Assim é. As sociedades coetâneas orientam-se, cada vez mais, pelo postulado de que é imperioso mudar, de que o que importa é, acima de tudo, produzir novidade e reinventar. Ora, afirmar isto significa que se vive, hoje, sob o signo da transmutabilidade, sob o efeito da transformação contínua (cf. a dietética, a cirurgia estética, o body-building, o desporto de massas, etc.), de que resulta a sensação, vaga e ambígua, de um rimo de vida alucinante, de uma sociedade em constante movimento, de um modo de ser e de estar em constante redefinição – em resumo, de uma sociedade em perpétua interpelação. Mas o dinamismo, note-se, é mais aparente do que real, pois que, paralelamente, se assiste ao revivalismo de códigos comportamentais mais ou menos ancestrais, ao desejo de reencontrar o caminho da salvação – na circunstância, o retorno às origens. Basta pensar no fenómeno do remix que alia o antigo e o moderno, basta pensar no jean tulipa, que se inspira manifestamente na célebre calça à boca-de-sino, basta pensar no sapato de plataforma, que faz lembrar os anos sessenta e setenta, basta pensar nas sandálias estilo romano, cujo nome é elucidativo do amálgama temporal, enfim, basta atentar na minissaia que, metonimicamente, transporta o observador para o Novo Continente.

Face ao exposto, parece claro que a moda, quer em termos de conteúdo, quer em termos de discurso, não escapa à contingência do tempo, razão pela qual é possível esboçar um estudo diacrónico da matéria. Ora, levar a cabo uma tal tarefa é, a meu ver, traçar a história recente da mulher, que deve a sua emancipação à importância crescente do fenómeno. Na realidade, a invenção do tecido e do têxtil (assim como a sua consequente massificação), fez com que a moda se tornasse mais acessível, mais democrática e mais proletária. Destarte, as modificações, neste capítulo, traduzir-se-ão por sucessivas mudanças de vida do universo feminino : a mulher começaria a conduzir, a fazer desporto, a dançar, a sair, a assistir a espectáculos culturais, e, mutatis mutandis, a encontrar novas formas de liberdade de expressão.

Doravante, a mulher descobriria a importância do corpo, centraria a sua acção estratégica sobre a linguagem corporal e o último quartel do século passado assistiria a uma tendência para corpos filiformes e uniformes reunidos em torno da fórmula matemática 86 x 60 x 86, o que significa que o corpo se viria a modelizar, a assemelhar-se e, para o revalorizar e distinguir de todos os outros, recorrer-se-ia à forma do vestuário em S, dos acessórios em Z e dos sapatos em Y. Mais, para o estilizar, recorrer-se-ia à engenharia informática, aos programas de computador, ao retoque da imagem e à microinformática. Assim, o modelo viria a superar a mulher em carne e osso e alimentaria um ideal de beleza que superaria, edulcoraria e exageraria o tangível e o cognoscível.

2.3. A INOVAÇÃO
Je veux une coiffure, en dépit de la mode,
Sous quoi toute ma tête ait un abri commode

Molière, L'École des maris, I

O que caracteriza, a meu ver, a elegância e o sentido estético não é, por certo, o vestuário de per si, mas, antes pelo contrário, a forma de o usar. Com efeito, inovar é um exercício de síntese criativa e, nesta óptica, uma cultura da inovação é função das capacidades de concepção, de realização e de tomada de iniciativa, ou melhor, constitui um lugar de reencontro de vários skills. É, de resto, o que têm conseguido demonstrar criadores como Luís Buchinho, cujo design revela uma concepção do feminino assente no urbanismo, na determinação, no dinamismo e no ritmo – ora simétrico, ora irregular. É o caso de Nuno Baltazar, que prima pelos conceitos de anatomia e de estruturação irregular, aliados ao acabamento easy-care. É, por fim, o caso de Maria Gambina, aliás, Maria Cristina Lopes, que se reivindica do estilo streetwear, inspirando-se, para o efeito, no movimento musical, no pragmatismo funcional e no romantismo.

De resto, a inovação constitui um dos vectores fundamentais do mundo da moda, até porque, numa sociedade do espectáculo imediato, em que as necessidades do consumidor não param de aumentar, designadamente os têxteis activos (capazes de potenciar a interactividade corpo/meio ambiente), os tecidos biossensoriais (aptos a manter a homotermia), os têxteis olfactivos (capazes de libertar um leque de aromas à la carte), nessa sociedade espectacular, dizia eu, espreita o perigo da separação entre o tempo e o espaço.

Todavia, acrescente-se, em guisa de resumo, que a invenção será inócua, se não integrar a noção de tempo e, correlativamente, se não englobar, no seu seio, as necessidades técnicas e culturais do consumidor. Significa isto que tanto a criação como a inovação se encontram intimamente imbricadas uma na outra, mesmo se se considerar que a visibilidade da criação, i. e., a moda, é mais espectacular para o consumidor do que o seu conteúdo científico e técnico intrínsecos.

2.4. O CLIMA DA ÉPOCA

La mode étant l'imitation de qui veut se distinguer par celui qui ne veut pas être distingué, il en résulte qu'elle change automatiquement. Mais le marchand règle cette pendule.
Valéry, Rhumbs, p. 116

Como ficou dito acima, numa sociedade tradicional, fortemente estratificada, a moda não tinha, por certo, razão de ser, pois que um único signo era, então, perfeitamente capaz de marcar o estatuto sociocultural do indivíduo e constituía, em definitivo, um indício suficiente para operar a distinção (princípio da pertinência). Na verdade, os símbolos de uma comunidade religiosa (cf. a Igreja), de uma sociedade militar (cf. o Exército) ou de uma facção política (cf. a Monarquia) encontravam naturalmente a sua força identitária na duração temporal e no seu carácter imutável, pelo que a ideia de moda era, como é fácil de calcular, um conceito demasiado estranho e desprovido de qualquer significação.

Desde então, a ordem social alterou-se. A nobreza cedeu o lugar à burguesia. O Grande Arquitecto abandonou o homem à sua sorte e os pontos de referência diluíram-se no tempo e no espaço. Ora, numa sociedade sem voz de comando, sem paternidade , fez-se, então, sentir a necessidade de legitimação. Sobretudo porque faltava explicar cabalmente a origem das desigualdades entre os homens, fundamentalmente, aquelas que se prendiam com os recursos materiais e simbólicos e, mais do que isso, era necessário explicitar as novas relações de poder. Ora, quando as afinidades (inter)classistas não se reproduzem mais pelos laços de sangue (como nos regimes monárquicos...), mas obedecem, antes, a uma estratégia de validação sob suspeita, urge emprestar à desigualdade uma espécie de oportunidade de vida, quer dizer, urge fazer crer que a individualidade se inscreve numa análise diferencial e que, por conseguinte, os privilégios são objecto de conquista pelo mérito (meritocracia) – e não simplesmente herdados do passado. Por outro lado, como disse Weber, para que os referidos privilégios soem como legítimos aos olhos do outro, torna-se, pois, necessário que eles parecem nascer de um qualquer esforço pessoal ou de um dom intrínseco ao ser humano, como por exemplo, o génio, o virtuosismo, o poder carismático, as qualidades superiores, etc.

Percebe-se o engodo: o mecanismo social da estilização de um modo de vida superior reside, doravante, na faculdade de distinção e o indivíduo eleito (distinguido) marca estrategicamente uma distância social para com as criaturas ordinárias (não distinguidos), cujo procedimento traduz, no fundo, um programa social centrado no corpo. Sem mais. O que conta, a partir de então, é a harmonia corporal, o contorno físico, o modelo. Aliás, o corpo, ele próprio, é submetido ao saber-fazer e ao saber-estar, isto é, a uma espécie de ética social fundada, não apenas na fotogenia (em que o importante é a sobreposição da imagem sobre o conteúdo), mas também na ostentação sóbria do corpo (em que o que conta é o que lá não está).

A consequência deste estado de coisas fala obviamente por si. A silhueta feminina transformar-se-ia radicalmente, desembaraçar-se-ia dos longos vestidos farfalhudos, apreenderia os valores da sobriedade e da sensualidade, recorreria sem tibiezas ao preto (até ali, reservado exclusivamente ao luto), cortaria com a herança do passado (cf. o corte do cabelo), enfim, emancipar-se-ia. Com efeito, enquanto o espartilho teria que ver, numa primeira abordagem, com a concepção da beleza mulher, no caso em apreço, com a cintura adelgaçada, já a introdução do jean, do soutien e da minissaia prender-se-iam com as correntes feministas dos anos sessenta, quer dizer, com o desejo de libertação e de expressão corporal... e, doravante, o imaginário anda por aí à solta. Ao ritmo do body-building.


2.5. A INFLUÊNCIA DA MÚSICA

La mode même et les pays règlent ce que l'on appelle beauté (...).
Blaise Pascal, Les Passions de l'amour

O corpo feminino é um corpo dançante. Frenético. Ritmado. Afinal, a trilha sonora de um desfile é responsável, desde a sua entrada em cena, pelo impacto e pela atenção que recai sob o modelo, e, mais do que isso, reflecte o discurso subliminar do estilista, espécie de moraleja a transmitir – qualquer que ela seja.
Com efeito, ainda que a música e a moda tenham sido tratadas, até à data, de forma separada (o que representa uma separação artificial entre o sonoro e o visual), isso não invalida que a música não constitua um importante elemento no que toca à recepção, à representação e à apropriação de um determinado objecto. Porque, quer se admita ou não, o elemento sonoro desempenha um importante papel na memorização cognitiva, pois que, enquanto a imagem visual representa uma certa realidade, o som, esse, serve de suporte à imagem mental.

Na realidade, a estética da recepção (musical) deve precisar que um tema musical ocorra sempre em situação, quer dizer, deve exigir que a melodia seja tributária de um espaço e de um tempo determinados – um hic et nunc. Por outras palavras, é legítimo afirmar-se que uma mesma música, ouvida em certos contextos situacionais (desfile de moda, boutique, café, etc.), não produzirá o mesmo efeito, pois que dependerá, por certo, das múltiplas situações de percepção e de audição, das práticas musicais individuais (hábitos adquiridos, práxis instrumental, etc.), das representações sociais dos temas musicais, e, por último, de factores físicos e psicológicos (cansaço, ansiedade, distracção, etc.).

Todavia, no caso da música aplicada à moda, parece-me que o elemento sonoro potencia o espectáculo e promove a inteligibilidade (e a interacção) entre a melodia e o produto, servindo de molde à linguagem corporal. Ora, um tal facto demonstra a dimensão operacional da música, tanto mais que a imagem acústica contribui, em larga medida, para a construção do símbolo, isto é, para a estruturação de uma imagem mental (representação) e, em último recurso, opera uma eventual transferência (positiva ou negativa) da melodia para o próprio objecto.
Claro que o processo é bem mais complexo, pois que importa efectuar a divisória entre o elemento sonoro e a mensagem, mas parece evidente que o conjunto é capaz, só por si, de se transformar em fragmentos de memória, e, mutatis mutandis, é capaz de funcionar como um processo mnemotécnico (cf. o nome dos artistas).

Face ao exposto, parece óbvio que a música encerra uma importância vital na sua relação com o mundo da moda, dado que ela fornece indicações paratextuais e paravisuais suplementares (a exemplo dos logótipos das marcas), capazes de perpetuarem, por si próprias, o espectáculo na memória colectiva, e, além disso, de contribuírem para a capitalização da imagem – acrescentando valor e significação a uma determinada emoção ou símbolo.

Resume-se a preceito: a música, assim como as melodias difundidas nos múltiplos espaços públicos, constituem, no final de contas, uma importante forma de comunicação, neste sentido que elas contribuem, de uma forma ou de outra, para a construção da identidade de um espectáculo, de um produto, de uma marca comercial – a exemplo das técnicas publicitárias.
© Manuel Fontão

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