2010/08/25

FOTOGRAFIA_A IDEIA CONVERSA_1. O ESTADO DA QUESTÃO

J’émets le voeux que la photo, au lieu de tomber
dans le domaine de l’industrie et du commerce, entre dans celui de l’art.

Gustave Le Gray (1852)

É quase uma banalidade afirmar que a fotografia constitui, de per si, um meio de expressão artística e não um fim em si mesmo. De resto, muitos artistas contemporâneos utilizam-na como modo de representação, sendo que o seu objectivo é o de imaginar um pormenor que traduza um sentimento, um traço emotivo ou um desejo, e, nesta perspectiva, o trabalho fotográfico resume-se invariavelmente a uma busca estética particular. Ora, assim definido, o fotógrafo não está longe de um Johann Christian Bach, por exemplo, que teria composto uma sequência musical para produzir um efeito estético específico, nomeadamente, a aproximação ao sagrado.

Por outro lado, há que precisar que o artista, a exemplo de outras áreas do saber disciplinar, não está isento de um certo número de constrangimentos do modo, tais como o princípio da coerência (importa que a sua obra reflicta uma certa cosmovisão), a escolha metodológica (a temática, os recursos utilizados, a aposta num determinado estilo) e uma certa estética da recepção.

Ora, uma das apostas maiores do modernismo foi a tentativa mais ou menos determinada, obstinada e obsessiva, para preservar a obra de arte dos malefícios da indústria, para poder salvaguardar, desse modo, a sua alegada autonomia e pureza. Todavia, esta ilusão estética, por volta dos anos oitenta, conheceu o seu epílogo, cujo processo de desmistificação teorética se ficou a dever, em grande parte, à inclusão da fotografia no campo das artes plásticas. Com efeito, a fotografia, um medium de massa por excelência, obrigou as ciências conexas a uma mudança radical de paradigma: da homogeneidade passou-se imperceptivelmente à heterogeneidade, do monolitismo passou-se indelevelmente à heteronimia e, destarte, a fotografia não parou de alargar as suas fronteiras, de se miscigenar, quer dizer, de ganhar a batalha da transversalidade – que se transformou, hoje, na lógica dominante do sistema. Dito por outras palavras, a fotografia obrigou a arte a interrogar-se, a questionar-se e, desse modo, contribuiu largamente para a sua redefinição, ou melhor, para reestruturar os seus pressupostos teóricos. No caso em apreço, colocou em causa o carácter determinista da essência pura de cada médium, e, correlativamente, promoveu a valorização da invenção, a busca incessante da novidade e da originalidade, em suma, a descontrução de um real que, salvaguardadas todas as proporções, é compósita, variegada, multifacetada. Nuancée. Proteiforme. Plástica.

Note-se, aliás, que a força motriz do pós-modernismo é, como muito bem mostrou Roland Barthes (1980), a passagem da produção à reprodução, o que significa que a noção de autor (autorictas), i. e., a instância genética (cf. Gérad Genette) se viu imperceptivelmente substituída pela noção de scriptor, ou seja, um autor ontologicamente desautorizado, pois que surge, neste limiar, despojado de toda e qualquer subjectividade, despido de afectos, de paixões e de humores particulares.

Claro que o fotógrafo, como de resto, o pintor, o escultor, o cineasta, o dramaturgo, etc., não param de reivindicar o direito à auctoritas, mas não é menos verdade que ele, o fotógrafo, é aquele que melhor posicionado está para desconstruir a função de autor, na medida em que se lhe pede, fundamentalmente, que reproduza, que serie, que repita, em suma, que faça vacilar a noção de originalidade e, mesmo até, que faça oscilar a noção central de obra de arte… sui-referencial (autotélica).
Poder-me-ão objectar que traço, aqui, uma (cosmo)visão algo pessimista e, à la longue, inscrita numa lógica eminentemente estruturalista. Mas a questão central, a meu ver, reside no facto de se ter percebido que, em matéria de arte, o rei vai [escandalosamente] nu, o que implica que a argumentação parte do pressuposto de que o mundo hodierno vive mergulhado numa enorme dúvida, a saber, a capacidade de o homem inscrever a arte ao abrigo do livre arbítrio.
Com efeito, o homem do mundo da pós-modernidade caracteriza-se, antes de mais, pela sua faculdade de produção de signos supervenientes do sistema de relações que, todavia, o dilaceram, ou seja, o indivíduo pós-moderno não é mais do que o joguete de forças sociais, políticas e culturais infinitamente superiores e, nesta óptica, ele, o homem coetâneo, é o joguete da ilusão de poder nomear… o inominável.

Vejamos, pois! A época das certezas mortas, a crença num tema estável e imutável – apesar do carácter passional –, a aposta numa auto-reflexão livre de variáveis contextuais cedeu, finalmente, o lugar a uma interrogação epistemológica – crítica e ideológica –, sobre a qual assenta o ser artista da contemporaneidade. E, nesta matéria, pouco importa que a justificação teleológica se fundamente nas estruturas da linguagem (cf. Michel Foucault), nas relações com o inconsciente (cf. Sigmund Freud ou André Breton) ou, ainda, nas ideologias sectoriais. A questão, aliás, não se coloca a nível discursivo, normalmente situado a jusante do processo criativo, mas, antes pelo contrário, na sua (filo)génese. E, nesta matéria, é um dado adquirido que o homem pós-moderno se tornou, malgré lui, num vasto consumidor – ou repositório – de sistemas de signos, de códigos, de modelos semióticos.
Assim é: o homem coetâneo, provavelmente porque atingiu um ponto de saturação e de não retorno, erigiu o simulacro em norma, fez-se prevalecer da imagem simulada e segura, recorreu, enfim, ao eu sem limites. E, neste novo sistema axiológico, é, porventura, a sua própria consciência individual que está, doravante, em questão. É a sua identidade. É o seu porvir. É o seu humanismo.

Ora, face a esta visão extenuada do mundo, face à renúncia da totalidade do ser, face à focalização, porventura excessiva, do detalhe, percebe-se um certo desencanto, uma indelével decepção, um profundo mal-estar. Pudera! O Homem Novo ainda não chegou. O Grande Arquitecto não tem residência fixa, nem deixou indicações precisas sobre o seu paradeiro. Godot não significou o advento da humanidade socialista. O reencontro do homem consigo próprio tarda em chegar e a fotografia do presente bruto, único, irrepetível, imutável continua a negar a utopia do origo. A arte (des)espera o grau zero da sua autonomização, o pré-texto, o instante decisivo.
© Manuel Fontão

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