2010/08/23

DESIGN DO PRODUTO_2. O MARAVILHOSO MUNDO DO OBJEU

A produção não fornece somente os materiais para as necessidades, ela fornece também uma necessidade para os materiais : a produção não produz apenas um objecto para o sujeito, mas um sujeito para um objecto.
Karl Marx

Todo o objecto, no momento em que é lançado no mercado, constitui o que de melhor há em termos científicos, tecnológicos e funcionais. Com efeito, o design mais não é do que a combinação óptima de três elementos fundamentais, a saber, (i) a linguagem formal, (ii) os materiais e as tecnologias disponíveis numa determinada época, e enfim, (iii) a capacidade de distinguir e considerar as necessidades funcionais e imateriais dos utilizadores. Dito por outras palavras, o design consiste numa disposição criativa que assegura a coerência entre os imperativos tecnológicos do fabrico, a estrutura interna do objecto e o seu aspecto final. Assim, a questão de saber se determinado produto é – ou não – inovador revela ser uma falácia argumentativa, pois que o objecto se define, na sua essência, pela sua diferença para com todos os outros (análise negativa). Aliás, o progresso civilizacional só se torna possível por colocar em prática uma dosagem ponderada e equidistante entre a informação conhecida (valor extensional do uso) e a informação desconhecida (valor intensional), caso contrário o produto constituiria uma mera contrafacção (cf. Umberto Eco) ou um elemento disruptivo…
Assim perspectivado, o design não significa tão-somente emprestar uma forma mais ou menos aleatória a um produto (recorrendo, para o efeito, a uma indústria mais ou menos sofisticada), mas, bem pelo contrário, consiste em conceber a vida, a política, o erotismo, a religião as crenças, etc., segundo uma determinada orientação ideológica e prática.

2.1. O FERRO A VAPOR
Un objet est une idée mise en proportion.
Sylvain Dubuisson

O ferro de engomar é, como se sabe, um instrumento usado para passar roupa, e serve obviamente para alisar e dar brilho aos tecidos, recorrendo, para o efeito, ao processo de aquecimento.
Aliás, a história do ferro de engomar começou há muito tempo atrás, e, tanto quanto se julga saber, já desde o século IV o fenómeno de alisamento de roupa já era sobejamente conhecido. Parece, aliás, claro que o utensílio (de que existem quatro belas amostras no Palácio da Pena) vai de par com a introdução crescente do tecido e, mais do que isso, com o sentido estético dos seus utilizadores, cujo facto é, a meu ver, de suma importância, pois reflecte uma tomada de consciência da vida em sociedade e do homem comunitário.
No entanto, o ferro de passar propriamente dito conhece as suas primeiras referências a partir do século XVII, com o ferro, um objecto pesado, à base de ferro maciço forjado e esquentado em estufas (a carvão), na lareira ou em chapas de fogão a lenha, o que dificultava, em muito, a sua utilização, pois que requeria, como se calcula, um esforço físico suplementar por parte do utilizador.
Com efeito, indispensável a qualquer lar, o ferro de passar, na sua curva evolutiva, passou a ser fabricado com materiais cada vez mais leves e duradouros, como por exemplo, o plástico, o alumínio polido, o aço inoxidável e o teflon, além de recorrer, como é óbvio, a tecnologias e a acessórios cada vez mais modernos como o jacto a vapor, a superfícies anti-aderentes, a regulação de temperatura específica para cada tipo de roupa, até aos mais avançados equipamentos dotados com sensores de movimento e com base removíveis (sem fios). Na verdade, todos estes avanços tecnológicos garantiram ao consumidor tudo o que ele precisava, a saber, um melhor desempenho, uma maior segurança, assim como um design e um colorido mais atraentes e, por fim, uma melhor relação custo/benefício.
Assim, ao passo que os primeiros exemplares perderam o seu valor funcional (readquirindo exclusivamente um valor folclórico), as amostras contemporâneas, essas, inserem-se necessariamente na evolução diacrónica do produto, na medida em que um estádio civilizacional ulterior (t+2) se assume como uma reestruturação do estádio imediatamente anterior (t+1) . Nesta óptica, traçar a curva evolutiva do ferro de engomar é, não apenas levar a cabo um estudo etnográfico do fenómeno (método diacrónico), mas também efectuar uma análise sociocultural de um determinado segmento da sociedade (método sincrónico).
No entanto, e dada a exiguidade do trabalho, não me será infelizmente possível aprofundar a temática, mas não resisto à tentatação de explicitar, aqui, algumas linhas de abordagem, as quais deveriam concluir que um corte sincrónico revelaria, por certo, a condição social da mulher (e, em particular, da ex-dona de casa), a redistribuição das tarefas domésticas (as quais tendem para um compromisso fluido e caleidoscópico), a divisão tayloriana do trabalho (as quais potenciam a fragmentação das tarefas), as relações físicas do desempenho (que tendem para a suavização da actividade) , o estatuto sociopolítico da intimidade (as quais tendem para a cultura do farniente), a consciência histórica (a qual interpela o homo sapiens na sua relação individual com o outro).

2. 2. A BICICLETA
A fealdade vende-se mal.
Raymond Loewy

A bicicleta da década de 70 constituía uma espécie de todo-o-terreno, estruturalmente pesado e com uma funcionalização que o devir social foi gradualmente esvaziando. Com efeito, quer se trata da biclicleta Órbita ou Águeda, a verdade é que ela constituía um meio de transporte na sua plena acepção. Aliás, havíamios visto a França e os Franceses carregar a sua baguette no suporte e em Portugal o detalhe serviria para satisfazer necessidades bem mais vernáculas: as couves ceifadas nas hortas, as batatas arrancadas aos campos de cultivo, as saladas colhidas nos pequenos latifúndios. Claro que, à luz de uma análise sincrónica, o fenómeno retrata um país rural, um povo a braços com grandes dificuldades económicas e um estádio de sociedade directamente herdeiro de uma revolução industrial mal resolvida, em que o operário difilcilmente sobrevivia com o soldo que o patrão lhe destilava. Era um país que vingava a sua depressão na roda pedaleira. Que transportava os filhos joelhos acima e ao ritmo das três mudanças da roda cremalheira. Que, em magros dias de festa e de alento, fazia subir a mulher para o quadro da biclicleta em ferro fundido. E, quando não, tinha de se apear – que o músculo falhava ao ritmo da ladeira. Então, o homem da casa, exausto, impotente, silencioso, lá descia do seu ped(est)al e transformava-se em besta de carga...
Abandonemos definitivamente a caricatura para melhor compreender o real. Tudo, no artefacto, possuía uma função específica: o suporte desempenhava a função de bagageira ou, em alternativa, de banco de passageiros. O quadro, em ferro fundido, servia de lugar do pendura. O guarda-lamas resguardava o condutor dos salpicos do limo.
Mudam-se os tempos, mudam-se os limites da técnica. E, com efeito, o artefacto foi, ao longo destas duas últimas décadas, objecto de uma completa recategorização, pelo que as suas funções foram perdendo a sua utilidade primeira. Assim, o guiador simplificar-se-ia e ganharia em funcionalidade, a campainha deixaria de ter qualquer função adstrita (e, como tal, acabaria por ser retirada), a roda cremalheira, sistematicamente substituída por materiais mais resistentes e mais leves, ganharia em potência, versatilidade e projecção, o suporte acabaria por ser subtraído (por constituir uma excrescência sem função assinalada), o mesmo acontecendo ao guarda-lama, que beneficiaria do esforço de pavimentação das vias de comunicação… Em suma, a biclicleta abandonou indelevelmente o espaço utilitário para conquistar o espaço lúdico e, correlativamente, o design do produto acabaria, também ele, por ser reduzido às unidades sistémicas mínimas, i. e., indispensáveis ao funcionamento estrutural do objecto (cf. recategorização do design, que subsuma o todo arquitectónico).
Claro que passo sob silêncio, pelas razões aduzidas no ponto 2.1., o contexto da mudança, o qual se prende com a melhoria das condições de vida dos portugueses, a saber, a majoração da mão-de-obra, a tercialização do trabalho, a escolarização massiva da população, a massificação do automóvel, a padronização dos hábitos de consumo, a mudança de mentalidades (cf. os mecanismos de endividamento, o consumismo, a flexibilização dos papéis sociais), o nivelamento dos parâmetros interclassistas, a gestão das expectativas imediatas – entre outros.
Face ao exposto, parece óbvio que o design do produto deixou de estar centrado na bicicleta enquanto meio de transporte utilitário, para deslocar o seu foco de atenção para a utilização segura e confiável do objeto em relação às suas características funcionais, operacionais e perceptíveis. Na verdade, o designer valoriza, hoje, os factores anatómicos e fisiológicos do corpo humano (que obedecem às leis da física e da biomecânica) e orienta o seu produto para a recepção, no caso em apreço, para a transmissão da informação do utilizador - o que afectará directamente os seus sentidos, através de sensações visuais, auditivas, tácteis, cinestésicas e/ou de vibração (cf. o tremor, o balanço, a trepidação).

2. 3. O TELEMÓVEL

Le facteur le plus important dans le design contemporain n’est pas qu’il soit attractif mais qu’il soit bien en rapport avec l’individualité. A ceux qui pensent que la fonctionnalité est l’élément le plus important, je peux dire maintenant qu’ils en sont restés au stade le plus élémentaire et le plus primitif du développement du design.
Borek Sipek

O telemóvel, amálgama de telefone móvel, surgiu nos finais dos anos 80, pelas mãos dos CTT/TLP (Correios de Portugal), que, mais tarde (1992) criou a TMN (Telecomunicações Móveis Nacionais S. A.). Na realidade, depois do lançamento do primeiro telemóvel, o fenómeno não mais pararia de evoluir, quer em tamanho, quer em novas funcionalidades. E, todavia, nos seus primórdios, o artefacto havia sido concebido segundo a tecnologia analógica e servia tão-somente para comunicar...
Seguidamente, surgiriam no horizonte novas operadoras, tais como a Telecel (agora Vodafone), a Optimus (entre outras...), as quais, juntamente com os fabricantes, ousaram ir mais longe e tentaram, ab ovo, oferecer ao consumidor toda uma gama de equipamentos cada vez mais sofisticados, quer a nível de design, quer a nível de tecnologia. Ora, o resultado está doravante, à vista: hoje, um telemóvel constitui um artefacto capaz de enviar mensagens, de tirar fotos, de filmar, de ser utilizado como despertador ou como gravador de lembretes, assim como serve para jogar, para ouvir música, para aceder à internet – e, desse modo, enviar, em tempo real, pacotes de informação cada vez mais abrangentes...
Poder-se-ia pensar que o fenómeno terá atingido o seu ponto culminante. Mas tal está, ao que parece, longe de acontecer, porque, a cada passo, o consumidor se vê confrontado com novas funcionalidades (que o design de interacção tenta ergonomicamente integrar) e o design do produto terá, aqui, um terreno fértil par se expandir. Com efeito, já vão longe os aparelhos primitivos (assim como os seus acessórios), pesados e pouco apelativos, que vieram, todavia, flexibilizar as comunicações. Doravante, o que está em causa não é tanto o poder comunicativo do aparelho, nem as potencialidades do interface, mas as acessibilidades ergonómicas do aparelho (luminosidade do ecrã, capacidade de resolução do LCD, sensação ao tacto, critérios de legibilidade, etc.), ou seja, o que está doravante em causa é, por um lado, a relação do utilizador com o objecto (dimensão afectiva) e, por outro, a sua relação com o todo social (dimensão identitária)…
© Manuel Fontão

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