2010/08/23

DESIGN DO PRODUTO_1. INTRODUÇÃO

L’homme se transforme lui-même en transformant la nature.
Engels

Todos nós sabemos, pelo menos de forma mais ou menos intuitiva, que o objecto técnico constitui uma das mais importantes manifestações culturais das nossas sociedades. Basta pensarmos, com efeito, na indústria automóvel, na robótica ou na digitalização da imagem para nos darmos conta de que nos é hoje possível – e quase banal! – possuirmos uma viatura com travões ABS ou acedermos, via Internet, à página oficial do PROGRAMA ERASMUS da responsabilidade da Comissão Europeia sediada em Bruxelas.
Poder-se-ia, à primeira vista, pensar que este estado de coisas tem mais a ver com a ciência do que propriamente com a técnica. Mas assim não é, na realidade. Tomemos como exemplo o (tele)comando, que, grosso modo, não é mais do que o resultado de uma acção exterior (carregar num botão) remotamente traduzida por uma ordem (de comando) . Qual é, pois, nesta matéria, a parte relativa ao científico? E o tributo devido à componente técnica? A resposta parece óbvia: temos, por um lado, um princípio estruturador (científico) e, por outro, uma manifestação tecnológica (de cariz manual, mecânica, (foto)eléctrica, digital....), pelo que se poderá afirmar, em guisa de resumo, que todo e qualquer produto final nasce da união entre a técnica e a ciência.
Mas não só. O produto deve ser, ainda, funcional, quer dizer, deve satisfazer um grau mínimo de utilizações em que, no caderno de encargos da sua competência pragmática, haja lugar à creditação funcional dos valores de uso. Ora, isto só será conseguido se o objecto satisfizer as condições de inteligibilidade e de racionalidade, o que se traduz, na prática por um conjunto de aplicações concretas capazes de representar de per si um ganho real em termos de tempo e de esforço humano. Na realidade, a máquina de lavar roupa, por exemplo, não poderia ter sido comercializada e massificada, caso não se traduzisse, no plano da práxis sociológica, numa melhoria substancial das condições de existência dos potenciais utilizadores (no caso em apreço, da dona de casa).

Claro que essa dupla condição – funcional e sociológica – se prende, antes de mais, com uma terceira dimensão do produto, a saber, a sua capacidade ergonómica. Quer isto dizer que um determinado objecto terá de se adequar mutatis mutandis às interacções humanas (que o objecto potencia) e ao todo sistémico em que ele se insere. Com efeito, a simples concepção de uma cadeira terá de levar em linha de conta (i) a forma do corpo humano, (ii) a posição do homo sapiens (que, a partir de um determinado segmento do seu devir histórico – e após ter conquistado a sua posição aprumada – fez derivar, por força das circunstâncias civilizacionais, outras posições motoras), (iii) a flexibilidade dos materiais, (iv) o aspecto cromático, (v) os contornos externos, em suma, terá de levar em linha de conta a relação do objecto com o meio ambiente da sua aplicação concreta.

Do mesmo modo, um candeeiro, por exemplo, será também função das variáveis contextuais e, neste capítulo, dever-se-á entrar com uma gama de factores heterogéneos, tais como (a) a durabilidade dos materiais, (b) a fotometria (luminotecnia, luminância, etc.), (c) o grau de incidência da luz sobre o local de trabalho (localização geofísica do edifício, horário de trabalho, carga horária, etc.), ou seja, ter-se-á de estabelecer um compromisso entre os princípios científico, técnico e ergonómico.
Seja dito de passagem que a função ergonómica constitui, por assim dizer, uma disciplina- carrefour, isto é, um conjunto de saberes construídos (cf. noção de construct) por todo um leque de ciências auxiliares, tais como a fisiologia, a antropometria, a biomecânica, a psicologia, a engenharia , etc., as quais, por seu turno, são directamente tributárias da função económica, aquela que se prende com as questões dos materiais, com o seu custo de aplicação, com os imperativos financeiras da instituição e com a estruturação integral dos seus elementos constituintes (cf. o sistema de fabrico). Aliás, em rigor, dever-se-á afirmar que a realização superficial, i.e., configuracional do objecto é já do domínio da subjectividade e, como tal, transporta consigo a assinatura de autor, quer dizer, o cunho do criador.

Parece, todavia, claro que este feixe de funções são aquelas que se prendem com a codificação do objecto, quer dizer, com as questões associadas ao seu fabrico. Mas uma coisa bem diferente é, sem dúvida, a forma como o referido objecto é percebido pelo conjunto dos seus utilizadores, cujo fenómeno coloca em evidência a importância da estética da recepção, i.e., a competência estética e semiótica do referente. É que, desde André Malraux , a árvore é mais do que uma árvore, pois que ultrapassou a pura noção ornamental, para se lhe acoplar a ideia de valor acrescido. Do mesmo modo, e para me apropriar de um outro exemplo paradigmático, o seio feminino superou, do ponto de vista filogenético, o sentido denotativo para se lhe acoplar um sentido conotativo e, destarte, o correspondente domínio referencial transmudou imperceptivelmente a sua compreensão: doravante, ele não serve apenas para amamentar o infans, mas assume-se como objecto de deleite do código amoroso.
Significa isto que a estética da recepção é função directa da massificação do produto, ou melhor, do grau de aceitabilidade do objecto e, desse modo, rege-se pelos códigos da gramaticalidade de uma determinada sociedade. Com efeito, o candeeiro hitleriano, concebido com tecido extraído dos judeus, não conheceu – felizmente – um grande efeito perlocutório, porque feria de morte o código ético, ao contrário do Volkswagen (lit.: carro do povo), que, por responder a uma necessidade genuína do devir social, se libertou das barreiras ideológicas do momento. Ora, uma tal função acarreta uma outra dimensão, a saber, a função poética, ou seja, a carga emotiva que o objecto supostamente carreia. Em boa verdade, um crucifixo, por exemplo, encerra um valor simbólico assente em duas dimensões complementares: uma, a estética (na medida em que se trata de um acessório susceptível de acrescentar significação) e, correlativamente, transporta consigo um valor afectivo (pois que o valor de símbolo se transmuda, pela crença do seu utilizador, na afirmação da sua personalidade).

Acresce a esta panóplia de funções, uma outra de alto valor civilizacional e que demonstra que todo e qualquer objecto se deve inscrever na evolução da consciência histórica do homem. Falo, como é óbvio, da função ecológica, ou melhor, da necessidade de o produto responder favoravelmente às preocupações do homem pósmoderno. Assim, torna-se, hoje, imperioso que o produto seja biodegradável, eliminável, reciclável, ou melhor, que estabeleça uma relação positiva, salutar e desdramatizada com o seu ciclo de vida – em suma, que se assuma como amigo do ambiente, ainda que seja a expensas da sua existência. Lavoisier antecipara o produto descartável…
© Manuel Fontão

Sem comentários: