2010/02/26

PATRIMÓNIO_04_CONTRIBUTOS PARA UMA NOVA UNESCO

Les acteurs au sein de l’organisation ont toujours des choix possibles.
Philippe Bernoux

É, hoje, um lugar-comum dizer-se que as sociedades coetâneas se encontram sob o signo da mutação, que o mundo contemporâneo vive mergulhado numa crise permanente de valores e que o homem da economia global perdeu irremediavelmente o seu centro de gravidade emocional. Claro! Até aqui sabia justamente para onde ia, pois que a estrada começava mesmo ali. Doravante, bom, de hoje em diante, o homem livre percebe apenas que o caminho, esse, acabou – ele ter-se-á bifurcado numa profusão inextricável de redes de comunicação, numa pluralidade de vias de banda larga, cujos objectos técnicos – a internet, a televisão digital, o scanner, a câmara de alta definição – não são apenas epifenómenos da ciência e da técnica, mas também o resultado de aspirações mais ou menos difusas. Assim, o proibido, o inacessível, o longínquo, o infinito, o sonho, tudo isso está hoje à distância de um simples clique. Mas o pesadelo, a desilusão, o abismo, o desconcerto também se encontram mesmo aí ao lado. Que escolher então? E quem é que detém a chave suprema do segredo? Em quem confiar, pois? Mas onde é que pára o kibernetes?
Verdadeira hermenêutica do pensamento humano. Mas que as organizações, essas, têm o dever de solver a favor do homem livre – e não contra o seu devir. Quero, com isto, dizer que a UNESCO deve, antes de mais, estar ao serviço do devir da Humanidade, que luta desesperadamente (a) pela mitigação das assimetrias entre o Norte e o Sul, (b) entre a universalidade dos bens e os interesses da economia global, (c) entre a aceleração industrial e o aquecimento global.
Com efeito, não se compreende, pelo menos à luz da perspectiva estritamente antropocêntrica, que a superprodução de uns (cf. continente europeu) não encontre qualquer eco na subnutrição de outros (cf. continente africano), que os recursos hídricos sejam objecto de desperdício num determinado canto do globo terrestre, ao passo que, noutras zonas geográficas, se assiste impavida e estranhamente, à ausência de água potável. Em suma, não se percebe, neste capítulo, a inércia da UNESCO, a não ser que se tenha de admitir, como necessidade teleológica, uma práxis assente no egocentrismo e na indiferença, ou, para ser mais sintético, num eurocentrismo mais ou menos bacoco. E um exemplo flagrante deste estado, calamitoso, de coisas, é o facto de as organizações com vocação universal não se terem ainda pronunciado sobre factos tão simples e simultaneamente tão cruciais para o desenvolvimento sustentável da Humanidade, como é o caso da água, que, até aqui, era entendido como um bem comum (universal) e que se encontra, justamente, num obscuro processo de privatização… Ora aí esta! Não é sem razão, pois, que a UNESCO tem sido encarada, nos últimos tempos, com uma certa desconfiança: é que o seu modus operandi, tem contribuído, em grande escala, para a complexidade da questão, até porque, cada novo anúncio de patrimonialização, pomposo e magistral, mais não faz do que aumentar o turismo de massas, mais não faz do que aumentar os níveis de CO2, e, em resultado disso, a sua acção mais não faz do que potenciar o desequilíbrio dos ecossistemas e o emburguesamento dos agentes turísticos. Em resumo, a até aqui prestigiada instituição deixou-se, incompreensivelmente, mergulhar num autêntico ciclo vicioso e… pernicioso e, nesta óptica, hipostasia o cortejo de doxas que as civilizações do nosso tempo enfrentam.

Face ao exposto, parece óbvio que urge uma total reestruturação do organigrama da UNESCO, assim como a sua completa despolitização, cujo processo poderia passar, por exemplo, pela instalação de unidade móveis e caleidoscópicas, temporárias e rotativas, nos locais de intervenção, como, aliás, preconizam - e bem! - os modelos organizacionais fluidos. De resto, esta mudança de rumo seria facilmente conseguida, se a instituição elegesse como interlocutores privilegiados, não os estados policiais e extenuados, mas, antes, os agentes locais, tais como as associações de bairro e os amigos do ambiente, i.e. os agrupamentos dinâmicos, liderados por pessoas em carne e osso, que, através dos mais diversos meios (blogues, petições, subscrições públicas, etc.) abraçam múltiplas causas e têm o condão de ultrapassar, a maior parte das vezes, os meros interesses locais (cf. Os Amigos da Lagoa do Fogo, nos Açores, SOS Cagarro). Até porque, note-se, a instituição se encontra literalmente refém da soberania e da avarícia dos estados nacionais (que não estão juridicamente obrigados a seguir as suas directivas) e, nesta matéria, importa indagar se a sua postura se prende com alguma propensão para o masoquismo ou se, colocar-se, assim, a jeito, não configurará aquilo que Freud designou de benefício secundário (uma espécie de estratégia de legitimação face àquilo que não é capaz de executar…).
Mas não só! Na realidade, e na linha de pensamento anterior, urge que a UNESCO reformule a sua metodologia de trabalho, prevendo, por exemplo, programas sectoriais no terreno, cujas tarefas seriam devidamente supervisionadas por equipas de trabalho interdisciplinar (cooptadas - ou não - no seu seio), cujos elementos constituintes usufruiriam do apoio técnico especializado (know-how) indispensável à consecução da(s) empreitada(s). Porque é preciso que se veja o fundo do problema, que se prende com o objecto patrimonializável: com efeito, como se disse supra, tudo quanto possuímos – ou quase – é património da humanidade, ou pelo menos, assim deveria ser considerado. Destarte, a questão electiva deveria ser um assunto de pormenor e, em última análise, (ser) caucionado pelas sinergias locais – alheias, de resto, a qualquer conotação política e a pressupostos (preconceitos) culturais menos claros…
© Manuel Fontão

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