2010/01/13

CORRUPÇÃO: COMENTÁRIO

Corrupção, a cargo da produtora Utopia Filmes, teve, ao que parece, um orçamento de cerca de um milhão de euros, tendo-se distribuído cerca de 50 cópias em todo o país e, da sua ficha técnica, constam nomes como Alexandra Lencastre, Miguel Guilherme, Pedro Cerdeira, Rita Blanco - entre outros.
Em boa verdade, o filme, segundo a opinião corrente, mais não é do que uma livre adaptação cinematográfica do livro Eu, Carolina e o argumento, algo redutor, gira em volta de uma alegada corrupção no futebol português. De resto, João Botelho, o realizador, revelou tratar-se de um filme negro, que versa sobre uma sobrevivente de uma rede de influências mais ou menos poderosa. Fica a certeza. Teria sido preferível… a dúvida.
Mais acrescenta, o realizador, que o filme não se compromete com qualquer facção futebolística, porque o cinema não permitiria, em caso algum, um julgamento, rematando, um pouco à pressa, que se trata, antes, de confrontar as pessoas com questões decorrentes da realidade que as rodeia. Pior a emenda do que o soneto. Se soneto existia…
Aliás, já não se sabe ao certo se é a realidade que constitui um facto bruto de per si ou se é o discurso sobre a matéria que revela toda a sua brutalidade, pois, segundo o mesmo orador, na película (que tem como protagonistas os actores Nicolau Breyner e Margarida Vila-Nova) vivem-se situações de conflito, mas sem resolução porque, ainda de acordo com o realizador, o próprio livro da Carolina não encerra um fim.
Ora aí está! Pangloss não diria melhor. A realidade seria uma napa amorfa e vazia de conceitos. O real uma coisa assexuada. E o concreto mais não seria do que uma massa compacta e intraduzível...
Ora, a meu ver, o cinema não se pode contentar com o simples acto ostentatório (a menos que se tenha em mente o filme documentário ou o relato histórico…). Não. O cinema tem de ir mais além. Tem de ultrapassar os níveis toxonómicos da compreensão. É que o acto de mostrar designa (sem significar), ao passo que a arte cinematográfica, essa, tem o dever impreterível de (re)interpretar, de apreciar, de avaliar. Até porque a realidade é dinâmica e passível de leituras, prende-se com uma escala de valores ambivalentes e de conotações porventura contraditórias e, em último recurso, vem inscrever-se numa gama variável de relações de força que se acentuam e se digladiam e se anulam.
Claro que aquilo que o realizador quis, no fundo, foi fazer um film noir, à imagem dos de série B norte-americana dos anos de 1940, mas com poucos meios, rápido e eficaz. Mas não terá logrado o seu objectivo. E de negro só o cenário da noite portuense à saída do bar de alterne...
O que falhou, então? Faltou ousadia. Faltou coragem para rasgar o livro. Faltou força para destruir o texto. Faltou relegar para segundo plano o documento autêntico (et pour cause!), qual miragem que desemboca invariavelmente no ardil. E o resultado é pouco mais do que incipiente: uma espécie de limbo discursivo em que a objectiva (a exemplo do teatro, no período pré-artaudiano) parece ter ficado refém do sacrossanto texto e, mais grave ainda, criou a ideia de um filme à tiroirs, em que o público está mais interessado em fazer corresponder a pseudopersonagem ao boneco da rua...
Em suma, à luz da presente análise, Corrupção recoloca a questão, central, do seu género, pois pode perfeitamente ser incluído no documentário. E como documento, meu caro João Botelho, é ordinário. Mesmo concedendo que a teoria do documento autêntico (mesmo aquele que é da jurisdição do historiador) é uma falácia...
NOTA: o autor do blogue é um benfiquista assumido. Como muita - e boa - gente sabe...
© Manuel Fontão

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