2009/12/21

A ILUSÃO DO DRAMÁTICO_O CONTEXTO PÓSMODERMO_05

O homem coetâneo vive num contexto da mudança, dilacerado entre as estruturas modernas e os sistemas pós-modernos, cujo denominador comum assenta, por um lado, na crença da racionalidade científica (as certezas mortas) e, por outro, na percepção de que é necessário, doravante, sobreviver sem modelos, sem um centro decisório único, sem o arquétipo redentor, sem a imagem apaziguadora. Trata-se, no fundo, de se adaptar a uma multiplicidade mais ou menos irreversível de papéis e de fronteiras, cujo processo (de mudança) não se pode – hélas! – resumir a um algoritmo fixo de acções (cibernética), mas se dilui, antes, nos contornos aleatórios do real
Herdeiro de um pretexto (pré-texto?) da mudança dominado pelo mal-estar da modernidade, o homem de hoje exilou-se da Modernidade Recente (período sócio-histórico que Anthony Giddens designa por Alta Modernidade). Adivinhava-se: a ambivalência do signo, a cacofonia, o paroxismo invadiram a contemporâneo e o homem calou-se. Num tempo em que os valores se subordinam à produtividade, à eficiência e à taylorização das tarefas, o homem pós-moderno saiu de cena. Num tecido social subordinado à especialização das tarefas, à racionalização dos meios, à optimização do produto (taylorização), em suma, numa sociedade orientada pelo Estado-planificado que, entre outras coisas, institucionaliza a cultura como mero bem de consumo, o homem social não tinha escapatória – transformou-se em (intra)individualidade.
O modelo organizacional hodiermo, caleidoscópico e fluido, caracterizado (a) pela flexibilização dos organogramas, (b) pela funcionalização das tarefas, (c) pela optimização da adaptabilidade, (d) pelo índice de criatividade, (e) pelo sentido de oportunidade, (f) pelo trabalho pseudocolaborativo (balcanização), (g) pelo aperfeiçoamento contínuo, (h) pela orientação positiva para a resolução de problemas e (i) pela maximização do produto - tudo isso (a-i) pulverizou a consciência gregária. Certo. Este paradigma modelar das organizações pós-modernas pressupõe a criação de laços mais significativos e contínuos entre os seus actores do que as trajectórias de carreira clara e previsível (o director, o realizador, o sonoplasta, o luminotécnico…), mas o homem, ele, herdou as estruturas da modernidade, pelo que tudo isto lhe provoca um crescendo de angústia e de inquietação. E evadiu-se. Alargou os limites da sua consciência individual, e, coadjuvado, neste particular, pelas sociedades da imagem instantânea, rompeu com os limites do eu. E fragmentou--se. Foi perdendo progressivamente a consistência da sua personalidade, isto é, entrou num processo de volatização da sua consciência. E dilui-se. Perdeu inexoravelmente os seus pontos de referências concretos, as suas âncoras, as suas amarras. E tornou-se sui-referencial.
Com efeito, o homem ausentou-se da sua comunidade. Recorre, hoje, à simulação segura, ou seja, a uma representação do real superveniente de uma crescente sofisticação tecnológica. Quer isto dizer que a imagem mediatizada (e mediata) da cidade Caracas, por exemplo, supera e edulcora a realidade caraquenha, o que significa, no plano epistemológico, que a realidade é bem mais desordenada e incontrolável do que a sua representação semiótica. E o homem fugiu para a sua caverna. Tanto mais que a compressão do tempo e do espaço, se traduz, em substância, na redução de despesas de produção, na flexibilização optimizada e na comunicação instantânea. Distendeu, por conseguinte, o tempo fenomenológico, quer dizer, aquele que é vivido, aquele que possui uma dimensão essencialmente interior e que, por conseguinte, varia de pessoa para pessoa e de acordo com as ocupações e preocupações do momento: deixou de ser policrónica para voltar a ser monocrónica (tal como o tempo dos administradores). Deixou-se colonizar pelo tempo sociopolítico, pois que a vigilância crescente dos espaços de retaguarda (em oposição às zonas frontais) faz com que o que é privado, espontâneo e imprevisível se torne, sob certas condições, público, controlado, previsível – superiormente colonizado.
Visão faustiana do social? Sem dúvida. É que até aqui sabíamos justamente para onde íamos, pois que a estrada começava mesmo ali. Doravante, bom, de hoje em diante percebemos apenas que o caminho, esse, acabou – ele bifurcou-se numa profusão inextricável de redes de comunicação, numa pluralidade de vias de banda larga, cujos objectos técnicos – a internet, a televisão digital, o scanner - não são apenas epifenómenos da ciência e da técnica, mas também o resultado de aspirações difusas. Deste modo, o proibido, o inacessível, o longínquo, o infinito, o sonho, tudo isso está hoje à distância de um simples gesto. Mas o pesadelo, a desilusão, o abismo também se encontram mesmo aí ao lado. Que escolher então? E quem é que detém a chave suprema do segredo? Em quem confiar, pois? Mas onde é que pára o kibernetes?
Todavia, o teatro não se poderá reger pela imagem simulada: faltar-lhe-ia a natureza espontânea e irrepetível do momento. Aliás, a repetição de um mesmo texto icónico subverte por inteiro as condições materiais da sua produção, neste sentido que elemento humano cede o lugar ao mecanográfico. De resto, a arte dramática reduzida às dimensões do mundo virtual (a tela de um computador, de um telemóvel, de um iPod…) é uma representação semiótica da cena. Que não a cena. A actriz que vejo no ecrã é um sucedâneo da mulher em carne e osso que pisa o palco. O cenário que enche a tela solitária é um ersatz do espectáculo. O teatro em diferido é uma representação simbólica do teatro: falta-lhe o poder hipnótico. A catálise. A histeria colectiva. O tressaillement do público. O contágio.
© Manuel Fontão

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