2009/12/21

A ILUSÃO DO DRAMÁTICO_A DESSACRALIZAÇÃO DO TEXTO_04

Sans un élément de cruauté à la base de tout spectacle, le théâtre n’est pas possible
Antonin Artaud

C’est par la peau qu’on fera rentrer la métaphysique dans les esprits
Antonin Artaud

Deleuze identifica a dessacralização do eu com aquilo que ele designa de processo de produção de desejo, é concebido como produção de realidade material. Assim perspectivado, o desejo deixa de ser entendido como um defeito, mas sim, como produção de realidade. Ora, segundo Nietzsche, o eu não passa de uma síntese conceptual (o que escamoteia as relações de forças não apreendidas pelo campo de consciência), pois que ela recorre, fundamentalmente, à palavra. De resto, foi a partir da necessidade de comunicação que consciência e linguagem se desenvolveram, o mesmo é dizer que ambas assentam numa necessidade colectiva e gregária.
Contudo, para Nietzsche, a totalidade do pensamento e dos sentimentos não se traduz pela palavra, mas tão-só por aquilo que se torna consciente. Significa isto que não se sabe o que pode o corpo, pelo que tudo quanto se possa afirmar, a este respeito, é que ele escapa ao domínio da palavra. Não obstante esta definição em negativo, pode assegurar-se que ele, o corpo, é constituído por campos de forças indetermináveis, aonde os inúmeros seres vivos microscópicos evoluem segundo uma vontade própria e numa luta permanente. Assim sendo, o corpo (inconsciente), segundo o filósofo alemão, viria inscrever-se num devir criativo e transformador, ficando a consciência incumbida de reproduzir a conservação da espécie (a vida).
Deleuze, justamente, aproxima de forma muito idêntica, o inconsciente (mola propulsora do real) e o desejo, sendo que o primeiro constitui a força motriz do real, ao passo que o segundo constitui, por assim dizer, um campo de relações opositivas e/ou de identidade, cuja organização interna constitui a própria dinâmica da vida.
Da mesma forma, na teria de Artaud, o termo (vida) remete o leitor, de forma mais ou menos genérica, para um universo de forças em permanente conflito. Com efeito, nesse estado bruto, a vida (ainda não dissociável da arte) é anterior à palavra. Assim, fazer renascer o teatro seria, no fundo, romper com a linguagem. Aliás, Artaud, tal como Nietzsche, recusa a tirania da palavra (que separa a arte da vida), cuja supremacia no teatro faz com o que ela se torne simples reflexo material do texto. Assim, centro de conflitos psicológicos e ideológicos mais ou menos notórios, o teatro ocidental, subordinado ao ramo da literatura, constituiu-se como uma arte dependente.
Eis, pois, por que motivo Artaud propõe um teatro autónomo, quer dizer, um teatro onde a palavra valha, sobretudo, pelas suas capacidades visuais e plásticas, ou, dito de outro modo, um tipo de dramaturgia que extravase a linguagem da comunicação, visando o trabalho sobre o signo, quer dizer, propondo uma linguagem física.
Em que consiste, ao certo, este tipo e teatro? Consiste na dança, na música, nos gestos, nos gritos, em suma, trata-se de uma concepção de espectáculo total, dirigido, não à consciência, mas essencialmente ao corpo.
Assim, o teatro deve igualar-se à vida, não à vida individual, ao aspecto pessoal da vida em que triunfam as personalidades, mas a uma espécie de vida liberada, que varre a individualidade humana em que o homem nada mais é que reflexo. Importa, pois, como o próprio autor dizia traduzir a vida sob seu aspecto universal, imenso.... (1938: 136). Daí que tenha dado o nome de Teatro da Crueldade, cuja expressão deve ser entendida como necessidade e não como suplício, isto é, deve ser percebida como desejo de viver e de de rigor cósmico.
De facto, o Teatro da Crueldade, ao contrário dos espectáculos de distracção, deve despertar no espectador os seus nervos e o seu coração, abalando, por conseguinte e em definitivo, as representações. Tal como uma terapia da alma, o Théâtre de la Cruauté deve agir (note-se que toda a acção é cruel avant la lettre…) para liberar forças e fazer proliferar a máquina do desejo.
Diga-se, de resto, que o movimento do desejo é uma noção central do teatro artaudiano, não como representação hipotética da vida, mas como a própria vida. Vida intraduzível e inenarrável, em que a ditadura da linguagem destitui o desejo da sua objectividade – a produção.


© Manuel Fontão

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