2009/12/21

A ILUSÃO DO DRAMÁTICO_BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO_02

Le théâtre peut et doit intervenir dans l’Histoire
Berthold Brecht

O teatro do Estado Novo, salvo raras excepções (cf. o Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, fundado em 1938, e o primeiro a admitir a participação de mulheres ou o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, criado em 1954, que apostou num teatro experimental e de intervenção), não escapou à política do espírito. Com efeito, as tentativas de fomentar o género dramático, levadas a cabo por Adolfo Lima ou por Irene Lisboa (ainda no período de vigência da I República), conheceram um lamentável retrocesso. Sobrava o teatro do povo
Durante as décadas de cinquenta e sessenta do século XX vão chegando a Portugal alguns ecos do estrangeiro, mas a produção, essa, é escassa, cabendo à Fundação Calouste Gulbenkian (Cf. o chamado grupo da Gulbenkian, nomeadamente, Madalena Perdigão e Arquimedes Silva Santos) o ónus de desenvolver alguns projectos inovadores neste âmbito. Claro que há honrosas excepções, tais como Luís de Sttau Monteiro (Felizmente Há Luar!, A Guerra Santa e A Estátua), assim como o teatro universitário, que se assumiu, desde a primeira hora, como uma dramaturgia da resistência. Aliás, diga-se em abono da verdade – e sem prejuízo do que acaba de ser dito –, que, para escapar às garras do lápis azul, os projectos de intervenção tiveram de recorrer, invariavelmente, a esmerados métodos de expressão simbólica e subliminares, a única forma de contornar os constrangimentos editorais da época.
Foi, pois, preciso esperar pela queda do regime salazarista (e marcelista) para se poder apreciar os textos dramáticos, até ali, apensos ao Index (inclusive os de origem estrangeira), mas a descentralização do fenómeno, a pulverização das estruturas monolíticas (Teatro Nacional de D. Maria II, Teatro de S. João, O Teatro Carlos Alberto…), a reestruturação dos organigramas organizacionais, a modernização das unidades físicas (edifícios, salas, equipamentos sonoros, jogos cromáticos, luminotécnicos…) não se faria de imediato.
Com efeito, e não obstante o recobro de uma liberdade que havia tardado em chegar, a verdade é que o edifício organizacional do teatro demorou algum tempo a romper com a pesada herança do passado. É óbvio desde Philippe Bernoux, que as instituições reflectem supostamente a mentalidade das suas classes dirigentes e, como tal, foi preciso, primeiro, compreender o mundo, ou melhor, foi necessário adaptar o novo olhar à luz intensa que se fazia sentir na Europa contemporâneo. Quer dizer, acedíamos colectivamente ao cosmopolitismo, mas, do ponto de vista cultural, permanecíamos arraigados a um provincianismo mais ou menos secular…
De resto, este facto explica o grande impacto de autores de mise en question social e política como Antonin Artaud (o grande teórico do Théâtre de la Cruauté), Genet (que defendeu a causa dos oprimidos), Tcheckov (em cuja dramaturgia simplesmente não há heróis), Beckett (autor do Teatro do Absurdo), Lorca, Adamov, Brecht (o grande doutrinário da Verfremdungseffekt que pretendia provocar a reflexão – e não o processo de identificação aristotélico…), cujas mises en scène tiveram o condão de estimular uma consciência sociopolítica então adormecida e dessacralizar um texto que vinha en droite ligne dos temas clássicos de que o SPN fazia alarde…
Tal como se referiu supra, seria preciso esperar, com efeito, pelos anos noventa para ver os primeiros programas de financiamento do teatro e para assistir à consumação da actividade como um serviço público (designadamente através da acção do Instituto Português das Artes e do Espectáculo). Data desta época, na realidade, a assunção da actividade pelos municípios e a descentralização física das estruturas, como por exemplo, o Teatro Viriato (Viseu), o Cendrev (Évora), o TRSM (Arouca), O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), Mandrágora (Gondomar) . Também data desta década (noventa) a substancial melhoria dos equipamentos materiais (salas, palcos, tecnologia, endereços…), o que teve como consequência uma procura mais consistente do produto final, facto a que não é estranho a divisão das tarefas, a funcionalização dos programadores e directores artísticos, em suma, a profissionalização crescente dos encenadores, dos realizadores e dos elencos – residentes ou não.
Por outro lado, este novo estado de coisas viria promover uma nova concepção da dramaturgia assente (a) na importância da expressão corporal, (b) nas relações entre a palavra e o mimo, (c) na flexibilização dos meios, (d) num melhor entendimento da natureza dos públicos-alvo e dos mecanismos de produção, (e) na aposta em técnicas de marketing mais agressivas (que passaram a ser acompanhadas por uma divulgação eficaz e subliminar), (f) em cronogramas previamente elaborados e (g) na percepção de que o espectáculo deveria responder a uma necessidade do destinatário, i. e., que, por detrás de toda a dramaturgia, deveria preexistir uma estratégia capaz de englobar as tarefas de planificação, de execução e de avaliação.
No fundo, tudo se resume à adopção de uma prática assente no body pearcing que começou, finalmente, a levar em linha de conta a justificação teleológica da performance (cf. a noção de perfinst de Luís de Castro) e a função plurivalente do espectáculo (que estabelece múltiplas funções com o tecido social: pertinência, actualidade, resposta a uma necessidade real ou imaginária, grau de satisfação, fotogenia, força mediática… ). Doravante, este processo de construção da auto-identidade (cf os netizens da blogosfera) tornou-se fragmentária, nanocronometrada, quântica e proteiforme (no sentido em que a comunicação instantânea, síncrona ou assíncrona, se assume como uma prótese semântica da manifestação do origo dramático), razão pela qual se pode legitimamente afirmar que a existência (cf. Sartre) se sobrepôs por completo à teoria da essência.
© Manuel Fontão

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