2009/12/21

A ILUSÃO DO DRAMÁTICO_ABORDAGEM TELEOLÓGOCA_03

Il faut suivre la foule pour la diriger. Lui tout céder pour tout lui reprendre
Antonin Artaud

Os Gregos conheciam muito bem os efeitos terapêuticos do texto dramático, a avaliar pelo amplo teatro que construíram nas colinas da cidade hospitalar (Epidauro) e que se destinava a completar o tratamento dos doentes que para lá eram enviados. Assim, ao mesmo tempo que os pacientes recebiam, na pele, os benefícios das águas termais, submetiam o espírito aos efeitos catárticos da arte dramática.
Aliás, ao longo de todos os tempos (cf. Shakespeare, Gil Vicente, Goethe, Corneille, Racine, etc.) que o teatro surge associado a uma vasta área semântica da terapia. Assim, aceita-se comummente que o teatro regenera os homens e a sociedade, purifica o espírito, corrige os defeitos caracterológicos, castiga os comportamentos desviantes, repreende os vícios de personalidade – e a lista, ilustrativa, permanece em aberto. Mas não só. Quer se trate da figura universal do clown ou de D. Juan, quer se trate de Fedra ou de Frei Luíz de Sousa, isto é, quer se situe no plano cómico ou no trágico, o efeito é invariável: o teatro é purgativo e moralmente edificante.
Urge, por conseguinte, perguntar em que consiste o teatro, tanto mais que todos nós desempenhamos, no nosso quotidiano, uma série de papéis. Dito por outras palavras – e para parafrasear o autor de Poética – importa perceber por que é que nós reagimos de forma diferente na vida e no teatro e, em particular, importa compreender por que é que um cadáver em decomposição numa qualquer rua da cidade nos aterroriza, ao passo que uma natureza morta é naturalmente bela. Dir-me-ão que se trata da distância que vai do prosaico ao poético. Certo. Mas o argumento não colhe, se o exemplo for captado a partir do prosaísmo do quotidiano, como será o caso de uma cena doméstica fortuita, no caso em apreço, uma discussão acesa entre um casal que se dá em espectáculo em plena rua do nosso bairro e cuja trama seria levada à cena. Significa isto, a meu ver, que o teatro possui um poder de representação específico (artístico), implica que o teatro é, antes de mais, um jogo (de papéis) que nos permite apreender aquilo que, de outro modo, nos escaparia.
Assim é. O teatro é, antes de tudo, lugar de encontro dos nossos mistérios, dos nossos conflitos internos, da nossa inquietação e espaço especular do social, isto é, reflexo caricatural da sociedade – o que permite melhor compreender a sua constituição e melhor denunciar as suas imperfeições.
Efeito de distanciação brechtiano, pois, no que toca ao todo social. Mas também no que toca à natureza, neste sentido que tanto o actor como o espectador, antropologicamente ao mesmo nível, procuram uma resposta às suas questões, buscam um armistício que ponha cobro à guerra civil que os dilaceram por dentro, em suma, demandam um período de tréguas que viabilize as suas precárias existências, o que se traduz, à superfície, pela construção da identidade (construct).
Visão redentora e catártica da dramaturgia. Sem mais. Espaço de sublimação das paixões censuradas pela sociedade.
Implica isto que o teatro não é divertimento, pelo menos no sentido comum do termo. É que a diversão não obedece a uma estratégia teleológica, não implica uma intencionalidade imanente ao próprio objecto (se intenção há, ela é externa ao dito…), pois que se trata de uma actividade inocente, aleatória e acidental, ao passo que a arte dramática, essa, é, na sua essência, um acto cultural, cuja matriz não se situa ao lado da vida, mas no seu seio.
Na realidade, o efeito teatral tem por objectivo mudar alguma coisa: o olhar do espectador, a sua visão do mundo, a sua personalidade, a distância que vai do seu imaginário ao do próprio criador. Ora, isto acontece porque o espectador deixou de ser uma pessoa dotada de consciência individual – passou a ser público. Com efeito, entre a cena que se desenrola e o espectador não há religação física, ou dito por outras palavras, só há memória, reminiscência, biblioteca. Efeito de catálise, pois, pelo qual o espectador se transforma em coisa pública e, se porventura reage ao mimo, é por pura hipnose – e não por reflexão autónoma. É que o espectador pensa como público, como colecção de ajuntamentos e não como um grupo de pessoas dotadas de um superego, não como uma comunidade regida por leis socialmente aceites, não como uma multidão identitária. O que está ali diante da cena é, antes de mais, uma turba.
Claro que o espectador, ele, pode a qualquer momento, descer ao particular, agarrar a sua consciência individual entretanto volatilizada, mas o processo será sempre a expensas da intensidade dramática e, em última análise, em prejuízo da carga intimista superveniente da cena.
© Manuel Fontão

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