1. Introdução
Por volta dos anos vinte, entra em voga uma noção algo enigmática nos diversos domínios da arte, a saber, a noção de pureza. Já em 1926, André Gide põe na boca de Edouard, herói de Les Faux-monnayeurs, o sonho de escrever um romance puro (1925: 76) e, em 1929, Paul Valéry, no Avant-propos deixa escapar o sintagma poesia pura (1957: 1275). Diga-se, em abono da verdade, que Valéry, ao contrário de outros autores, explica de forma mais ou menos cabal, num texto preparado para a conferência de 2 de Dezembro de 1927, em que consistiria a noção, dizendo que se trata de uma tentativa para constituir uma obra unicamente a partir de elementos poéticos. De resto, no domínio da pintura da época, também é possível descobrir alusões à pintura pura, como é o caso, por exemplo, de Apollinaire e de Kandinsky. Claro que esta nova concepção se inscreve, acima de tudo, no mero plano teorético pois que, na prática, constitui uma tarefa difícil traçar uma divisória mais ou menos nítida entre a arte até então e aquela que se reivindica do novo modelo. Todavia, a ideia de pureza inspira todo um conjunto de artistas, oferecendo-lhes um objecto de reflexão específico e rico em considerações estéticas e filosóficas.
Em que é que consiste, pois, a arte pura? Em princípio e segundo toda a probabilidade prende-se com o desejo artístico de suprimir todos os elementos que aparentemente não pertencem a um género específico: texto narrativo, texto lírico, texto pictórico. Em todo o caso, a arte pura insiste categoricamente em negar a toda a obra de arte uma finalidade prática e utilitária, pois que, segundo esta tese, a obra deve esgotar-se no seu próprio objecto.
Por volta dos anos vinte, entra em voga uma noção algo enigmática nos diversos domínios da arte, a saber, a noção de pureza. Já em 1926, André Gide põe na boca de Edouard, herói de Les Faux-monnayeurs, o sonho de escrever um romance puro (1925: 76) e, em 1929, Paul Valéry, no Avant-propos deixa escapar o sintagma poesia pura (1957: 1275). Diga-se, em abono da verdade, que Valéry, ao contrário de outros autores, explica de forma mais ou menos cabal, num texto preparado para a conferência de 2 de Dezembro de 1927, em que consistiria a noção, dizendo que se trata de uma tentativa para constituir uma obra unicamente a partir de elementos poéticos. De resto, no domínio da pintura da época, também é possível descobrir alusões à pintura pura, como é o caso, por exemplo, de Apollinaire e de Kandinsky. Claro que esta nova concepção se inscreve, acima de tudo, no mero plano teorético pois que, na prática, constitui uma tarefa difícil traçar uma divisória mais ou menos nítida entre a arte até então e aquela que se reivindica do novo modelo. Todavia, a ideia de pureza inspira todo um conjunto de artistas, oferecendo-lhes um objecto de reflexão específico e rico em considerações estéticas e filosóficas.
Em que é que consiste, pois, a arte pura? Em princípio e segundo toda a probabilidade prende-se com o desejo artístico de suprimir todos os elementos que aparentemente não pertencem a um género específico: texto narrativo, texto lírico, texto pictórico. Em todo o caso, a arte pura insiste categoricamente em negar a toda a obra de arte uma finalidade prática e utilitária, pois que, segundo esta tese, a obra deve esgotar-se no seu próprio objecto.
Por conseguinte, é neste contexto que a obra de Antonin Artaud se insere: o livro, que gira em torno do campo nocional do teatro puro, publicado em 1938, sugere que o autor deve perseguir a busca da arte no seu estado puro. De resto, trata-se de um livro que contém quinze ensaios escritos entre 1931 e 1938 e o seu título é, na sua génese, significativo: o teatro e o seu duplo. Aliás, o próprio Artaud afirma, numa carta a Jean Paulhan, datada de 25 de Janeiro de 1938, je crois que j’ai trouvé pour mon livre le titre qui convient. Ce sera : LE THEATRE ET SON DOUBLE car si le théâtre double la vie, la vie double le vrai théâtre (1938 : 196). Todavia, note-se, desde já, que, quando Artaud evoca o carácter duplo do teatro, não pretende insinuar um simples reflexo da realidade, mas, antes, negar peremptoriamente o aspecto mimético da dramaturgia, pois que le théâtre aussi doit être considéré comme le Double non pas de cette réalité quotidienne et directe dont il s’est peu à peu réduit à n’être que l’inerte copie, aussi vaine qu’édulcorée, mais d’une autre réalité dangereuse et typique (1938 : 46), para acrescentar, um pouco mais à frente, que il y a entre le théâtre et la vie une absurde séparation (1938 : 218) ou, ainda, l’Art n’est pas l’imitation de la vie, mais la vie est l’imitation d’un principe transcendant avec lequel l’art nous remet en communication (1938 : 242).
Algo complexo, à primeira vista. Mas desmonte-se o carácter aparentemente hermético da linguagem. E, para tal, há que ter presente que a forma mais rudimentar do teatro é, justamente, a sua natureza mimética, pois que, se o teatro não visa a representação mais ou menos edulcorada da realidade, então poder-se-á perguntar o que é os espectadores vislumbram em plena cena.
Por outro lado, e para melhor elucidar este ponto, penso que é essencial precisar que o autor de Le Théâtre et son Double estabelece uma análise comparativa (ainda que, aqui e ali, implícita), entre a concepção do teatro ocidental e aquela que advém da cultura oriental, cuja relação, dual, atravessa diagonalmente a obra e reflecte, no fundo, o seu pensamento sobre a matéria.
2. A concepção do teatro ocidental
Com efeito, é um dado adquirido que Artaud sofreu influências mais ou menos impressivas de culturas estrangeiras, tais como a mexicana e a balinesa, pelo que é na base desta análise diferencial que ele opõe o teatro ocidental (objecto de censura) ao teatro oriental (objecto de enaltecimento). Claro que, neste momento, se poderá questionar quais são as imperfeições do teatro ocidental e, a primeira repreensão, segundo o autor, é a questão – estruturante – da linguagem. Aliás, esta desconfiança relativamente à linguagem, e, de resto, a todo o signo linguístico, surge, desde logo, no prefácio da sua obra, quando afirma vigorosamente que briser le langage pour toucher la vie, c’est faire ou refaire le théâtre (1938: 14). Poder-se-á, por outro lado, interrogar sobre a legitimidade desta reacção epidérmica face ao teatro ocidendal e a resposta reside no facto de a linguagem não possuir, segundo Artaud, as características que o teatro requereria, dado que a ate dramática, aquilo que é especificamente teatral, n’obéit pas à l’expression par la parole, par les mots, ou si l’on veut tout ce qui n’est pas contenu dans le dialogue (1938: 35). Não se perca de vista o feixe de elementos que, para o autor, deve ser banidos do teatro: a linguagem, a fala, o diálogo – em suma, o texto. Assim é. Não espanta, por conseguinte, que Artaud resuma o teatro ocidental considerando-o uma arte que se define pela supremacia da fala sobre os outros elementos dramáticos. Com efeito, o autor afirma, de forma mais ou memos polémica, que pour nous, le théâtre la Parole est tout et il n’y a pas de possibilité en dehors d’elle (1938: 66). Eis, pois, os estritos limites do teatro ocidental, os quais se prendem, na sua essência, com a excessiva dependência relativamente à linguagem. Todavia, resta perceber como é que a linguagem condiciona o elemento teatral. E, para melhor precisar os contornos da problemática (que é, na sua génese, de natureza linguística), nada melhor do que se socorrer de um especialista na matéria, no caso vertente, Jacques Derrida que, na sua obra La clôture de la représentation,(1967: 361) explicita os pontos de vista teoréticos de Artaud. Na realidade, este linguista explicita os tópicos que seriam estranhos ao théâtre de la cruauté, e, em particular, ao sistema doutrinário de Antonin Artaud, a saber, (1) a repetição mecânica e generalizada da linguagem e (2) a fixação do texto (em detrimento do movimento), cujos elementos constitutivos resultariam na imobilidade da ideia escrita, e consequentemente, no aprisionamento do espírito ao texto, impedindo, pois, a sua plasticidade.
Contudo, importa referir que o autor não preconiza o abandono da linguagem. Não. Em vez disso, tenta alargar a linguagem da cena e introduzir, no todo dramático, uma nova linguagem, independente e autónoma da fala. É, na realidade, o que parece significar o teórico, ao afirmar que je dis que la scène est un lieu physique et concret qui demande qu’on le remplisse, et qu’on lui fasse parler son langage concret (1938: 36 ). Nova linguagem? Linguagem concreta? Parece que se está face a um novo enigma. Pura ilusão de óptica. Adivinha-se onde se poderá encontrar a chave do seu pensamento…
2. As possibilidades do teatro oriental
Sabe-se que Antonin Artaud assistiu, em 1931 (aquando da Exposição colonial de Paris), a exibições de teatro balinês, e, segundo alguns críticos, o evento ter-lhe-á proporcionado uma oportunidade única para aprofundar o seu sistema ideológico sobre o teatro e, em particular, sobre a possibilidade de contestar a preponderância da escrita na arte dramática da época. Aliás, o seu livro Le Théâtre et son Double contém dois artigos que dizem respeito à cultura oriental, a saber Sur le Théâtre Balinais (escrito em 1931) e Théâtre oriental et Théâtre occidental (escrito em 1935). Ademais, no que toca à oposição, já referida, entre Ocidente e Oriente, a lógica de pensamento é bastante clara: a cultura ocidental dependeria de forma excessiva da fala, ao passo que a cultura oriental, essa, se revestiria de outras formas de expressão dramática, designadamente, a linguagem física. O próprio Artaud corrobora este estado de coisas, quando afirma que la révélation du Théâtre Balinais a été de nous fournir du théâtre une idée physique et non verbale, où le théâtre est contenu dans les limites de tout ce qui peut se passer sur une scène, indépendamment du texte écrit, au lieu que le théâtre tel que nous le concevons en Occident a partie liée avec le texte et se trouve limité par lui (1938 : 65).
Assim, o olhar de Artaud vai-se centrando, progressivamente, na possibilidade de um teatro que seria uma espécie de hors texte, pois que, tal como ele refere, tout ce que je considère comme spécifiquement théâtral dans le théâtre, tous ces éléments quand ils existent en dehors du texte (1938 : 39). Ter-se-ia, desse modo, um teatro, cujas características seriam diametralmente opostas à concepção ocidental do objecto, em que la parole est tout. Dito por outras palavras, constituiria um teatro superiormente orientado pelo gesto, pelo signo, pelas atitudes, pelas sonoridades, em contraponto com aquilo que Artaud considerava estranho ao objecto (non théâtraux): a fala, as palavras, o diálogo.
Com efeito, segundo a sua opinião, a linguagem oriental ofereceria a possibilidade de criar um novo sistema que não pertenceria ao domínio da fala e que, por conseguinte, se esgotaria exclusivamente na cena dramática. Assim, à travers leur dédale de gestes, d’attitudes, de cris jetés dans l’air, à travers des évolutions et des courbes qui ne laissent aucune portion de l’espace scénique inutilisée, se dégage le sens d’un nouveau langage physique à base de signes et non plus de mots (1938: 52). Paradigmático. E altamente esclarecedor. Artaud aprecia, por conseguinte, o facto de o teatro oriental se distinguir pela sua eficácia física sobre os labirintos do espírito, na medida em que, segundo o teórico, a linguagem física encerra dois tipos maiores de meios de expressão, a saber, o visual e o auditivo. Com efeito, se, à cena, se subtrair a fala, os actores são necessariamente compelidos a recorrer à expressão corporal, são obrigados a usar o corpo como expressão significativa.
No entanto, as coisas não parecem ser assim tão simples, como aliás ele próprio reconhece. Com efeito, ce nouveau langage [et s]a grammaire [sont] encore à trouver. Le geste en est la matière et la tête ; et si l’on veut l’alpha et l’oméga. Il part de la nécessité de parole beaucoup plus que de la parole déjà formée. Mais trouvant dans la parole une impasse, il revient au geste de façon spontanée (1938 : 106). De resto, Artaud confronta esta situação de impasse com a sua tentativa de transformar a fala para que, dessa forma, ela se possa exprimir com mais eficácia. E, neste particular, o gesto oferece-lhe, de facto, um novo caminho, na justa medida em que ele, o gesto, actualiza a linguagem de que… se desconhecem as regras.
Perceba-se o escopo da questão: Artaud suprime a palavra, inventando uma linguagem física que não tem significação fora do espaço cénico. Ora, relativamente a este assunto, que se prende com a definição do signo, o autor daria, pelo seu próprio cunho, a resposta, ao afirmar, no seu livro La Mise en scène et la Métaphysique, que une forme de cette poésie dans l’espace [...] appartient au langage par signes. Et on me laissera parler un instant, j’espère, de cet autre aspect du langage théâtral pur, qui échappe à la parole, de ce langage par signes, par gestes et attitudes ayant une valeur idéographique tels qu’ils existent dans certaines pantomimes non perverties (1938 : 38).
Certo. Poder-se-á relevar o paradoxo, pois que o signo é sempre e invariavelmente a representação de algo, e, a partir do momento em que se lhe reconhece uma certa validação representativa, ele implica, necessariamente, a sua inserção no todo semiótico, pois que, como diz Derrida, un signe qui n’aurait lieu qu’« une fois » ne serait pas un signe (1967 : 55).
Todavia, e é aqui que reside a diferença de facto, a noção que releva do pensamento de Artaud não se prende com a representatividade do signo, mas, antes, com a sua dimensão plástica. E, mais uma vez, recorre ao modelo balinês, em cujas representações o autor aprecia, sobretudo, o corpo como signo, na justa medida em que ce spectacle nous donne un merveilleux composé d’images scéniques pures, pour la compréhension desquelles tout un nouveau langage semble avoir été inventé : les acteurs avec leurs costumes composent de véritables hiéroglyphes qui vivent et se meuvent (1938 : 58), acrescentando, a este propósito, que ayant pris conscience de ce langage dans l’espace, langage de sons, de cris, de lumières, d’onomatopées, le théâtre se doit de l’organiser en faisant avec les personnages et les objets de véritables hiéroglyphes (1938 : 87).
Doravante, percebe-se o alcance da sua tese. Artaud transforma, no fundo, as personagens num tipo de escrita puramente pictórica e, correlativamente, a forma auditiva (oposta à fala) traduz o valor incantatório do teatro. Mas uma outra questão se levanta. Na realidade, dado que Artaud considera a linguagem articulada como um elemento não teatral, importa perceber como é que ele resolve o dilema (pois que a linguagem auditiva é necessariamente articulada). E, para melhor compreender a questão, dever-se-á de ter em conta que a linguagem articulada encerra dois aspectos importantes, (a) o som e (b) a significação. Ora, o primeiro (a) sublinha uma utilização particular da voz, ce langage, on ne peut le définir que par les possibilités de l’expression dynamique et dans l’espace opposées aux possibilités de l’expression par la parole dialoguée. […] C’est ici qu’interviennent les intonations, la prononciation particulière d’un mot (1938 : 86). Assim, a seu ver, a entoação desenvolve uma musicalidade específica a partir de uma pronúncia independente do sentido concreto do dito e, neste sentido, a incantação consiste, ainda, numa outra utilização das palavras, como ele próprio explicita, quando refere que faire la métaphysique du langage articulé, [...] c’est enfin considérer le langage sous la forme de l’Incantation (1938: 44). Na verdade, o que ele procura, isso sim, é utilizar a linguagem para exprimir aquilo que habitualmente não exprime, razão pela qual a incantação surge na fase terminal desse acto, tal como no teatro balinês mais avec un sens tout oriental de l’expression ce langage objectif et concret du théâtre sert à coincer, à enserrer des organes. Il court dans la sensibilité. Abandonnant les utilisations occidentales de la parole, il fait des mots des incantations. Il pousse la voix. Il utilise des vibrations et des qualités de voix (1938 : 88). Destarte, a incantação mais não é do que o uso da fala, pelo viés da qual se produz a emoção, processo esse que, de resto, não se dirige ao espírito, mas à sensibilidade, ao passo que la voix, (que não abandona, em caso algum, o detentor da fala, aquele que fala hic et nunc) só adquire consistência e significado no devir teatral – e não fora de cena (como acontece no teatro escrito ocidental…).
Nesta perspectiva, o gesto, a entoação, a incantação constituem tentativas de dessacralização da escrita e da preponderância da fala. No entanto, se o teatro persistir nos velhos modelos, isto é, se continuar a oferecer-se em espectáculo, apesar de elementos desprovidos de sentido, ele degradar-se-á e transformar-se definitivamente em absurdo.
Não obstante o dito, parece claro que Artaud não visa o teatro livre. Não. Ele não aceitaria um teatro assente sobre a primazia do espírito. Aliás, ele próprio escreve, em 1925, no Manifeste em linguagem muito claro que je me livre à la fièvre des rêves, mais c’est pour en retirer de nouvelles lois. Je recherche la multiplication, la finesse, l’oeil intellectuel dans le délire, non la vaticination hasardée (1938 : 53), acusando mesmo a criação fácil, feita a partir do inconsciente e do acaso.
Face ao exposto, e segundo o autor, urge, pois, re-construir um novo teatro, um teatro puro, que consiste, no fundo, numa espécie de espaço clos da sua representação originária. Sim. A expressão parece, à primeira vista, paradoxal, pois que a representação requer sempre, obviamente, um espaço original outro, diferente e arquetipicamente distinto do primeiro. Mas é aqui, muita justamente, que reside a especificidade do teatro inaugurado por Artaud. É que, neste espace clos, a fala surge transformada em linguagem teatral pura, ou, dito por outras palavras, é em cena que ela começa a criar, de uma vez por todas, o seu próprio sistema de significações e que adquire, finalmente, consistência semiótica. Com efeito, o propósito de Artaud é claro, ao afirmar, com algum desdém Laissons aux pions les critiques de textes, aux esthètes les critiques de formes, et reconnaissons que ce qui a été dit n’est plus à dire ; qu’une expression ne vaut pas deux fois, ne vit pas deux fois ; que toute parole prononcée est morte et n’agit qu’au moment où elle est prononcée, qu’une forme employée ne sert plus et n’invite qu’à en rechercher une autre, et que le théâtre est le seul endroit au monde où un geste fait ne se recommence pas deux fois (1938 : 73). Ora, esta ideia curiosa e singular de que o teatro só vive uma vez, que ele é único e irrepetível, traduz, sem dúvida, a maior contestação que fora, até ali, feita ao teatro europeu – um modo de expressão artístico que assentava exclusivamente no seu poder mimético. Doravante, e graças a Artaud, sabe-se que o teatro prevê a sua própria morte, que ele não sobrevive à palavra pronunciada à boca da cena, pois que toute parole prononcée est morte et n’agit qu’au moment où elle est prononcée e que, desde que a nasceu, a palavra caminha em direcção à morte. Inelutavelmente.
Não se pense, todavia, que a vida do teatro que se realiza num momento único sofre uma destruição brutal. Não. Aliás, é aqui que intervêm os temas da vida e da morte e o primeiro manifesto de Artaud é, muito a propósito, briser le langage pour toucher la vie. Mas não deixa de ser verdade que, ao lado desta tentativa, se oculta sempre o valor absoluto da morte. De resto, o próprio autor reconhece no seu livro Le Théâtre et les dieux, a co-existência destes dois valores do ser humano no espaço (cénico), ao afirmar que culture dans l’espace veut dire culture d’un esprit qui ne cesse pas de respirer et de se sentir vivre dans l’espace, et qui appelle à lui les corps de l’espace comme les objets mêmes de sa pensée, mais qui en tant qu’esprit se situe au milieu de l’espace, c’est-à-dire à son point mort (1938 : 164). Claro que Artaud fala de cultura, mas, neste contexto, a cultura e o teatro confundem-se, ocupam o mesmo lado da barricada, dividem o mesmo espaço que é, a fortiori, o do ser humano face a este vaivém do movimento da vida a caminho da morte. Na realidade, la culture est un mouvement de l’esprit qui va du vide vers les formes et des formes rentre dans le vide, dans le vide comme dans la mort. Etre cultivé c’est brûler des formes, brûler des formes pour gagner la vie. C’est apprendre à se brûler des formes pour gagner la vie. C’est apprendre à se tenir droit dans le mouvement incessant des formes qu’on détruit successivement (1938 : 165).
Assim perspectivado, o teatro (como a cultura) consiste num espaço onde se resiste, de uma forma ou de outra, à destruição sucessiva e, após este momento, sublime, hipnótico, incantatório, surge o vazio, o nada – e é nesse sentido que se deve entender o adjectivo pur.
Assim parece. Razão pela qual Artaud compara o teatro à peste, que é, no seu entendimento, un mal supérieur parce qu’elle est une crise complète après laquelle il ne reste rien que la mort ou qu’une extrême purification. De même le théâtre est un mal parce qu’il est l’équilibre suprême qui ne s’acquiert pas sans destruction (1938 : 31). Ora, a peste, pelo menos no seu apogeu, implica uma purificação, cujo processo só se pode obter pelo viés da morte, pela destruição, qual alquimia da condição humana.
Do mesmo modo, o teatro também encerra um poder alquímico, uma vez que, segundo o autor, l’opération théâtrale de faire de l’or [...] évoque finalement à l’esprit une pureté absolue et abstraite, après laquelle il n’y a plus rien (1938: 49). Nesta óptica, a pureza teatral constitui um ponto de não-retorno, ou melhor, um limite extremo para lá do qual não há nada. Constitui, por assim dizer, o último ponto de contacto entre a vida e a morte, entre a conservação e a destruição. E, neste particular, o teatro assume-se como um ponto crítico, um espaço clos onde os movimentos da vida e da morte se dão incessantemente as mãos – mesmo sabendo que tudo há-de acabar em cinzas, em pó, em nada. Tal é a pureza de um teatro que, sabendo antecipadamente o seu fim, arrisca, mesmo assim, a sua pele em cena. Acto puro e simultaneamente cruel. Mas heróico, i. e., feito por heróis. E para heróis…
3. Resumo
Com base no teatro oriental e no teatro ocidental,
Artaud fornece duas definições de langage théâtral pur, cuja natureza se pode condensar nos seguintes itens definitórios:
a) por um lado, como a materialização visual e plástica da fala;
b) por outro, como linguagem do dito e da significação em cena (independentemente da fala), isto é, de tudo aquilo que encontra expressão no espaço ou que pode ser almejado ou desagregado por esse mesmo espaço.
Ficou dito supra (cf. Introdução) que a arte pura encerra dois elementos essenciais, a saber, a supressão de elementos que não são específicos ao género e a ausência de uma finalidade prática e utilitária. Aliás, Paul Valéry, a propósito da poesia pura, afirmou que, para tal, seria necessário que l’on puisse [...] donner l’impression d’un système complet de rapports réciproques entre nos idées, nos images, d’une part, et nos moyens d’expression, de l’autre, — système qui correspondrait particulièrement à la création d’un état émotif de l’âme, tel est en gros le problème de la poésie pure. (1967 : 1270). Significa isto que, tal como a poesia pura deve assentar num mundo fechado, hermético no interior do qual as ideias e as expressões constituiriam um todo harmónico, também o teatro puro deve pretender urdir uma cena onde a linguagem encerre a sua própria significação, insubstituível e irrepetível, isto é, onde o espaço clos funcione como um hapax.
Tentativa ousada e inovadora, sobretudo se se tiver em linha de conta que a história da arte ocidental se confunde com a história da mimeses.
PARA OBTER A BIBLIOGRAFIA,
CONTACTE O AUTOR DO BLOGUE. OBRIGADO!
CONTACTE O AUTOR DO BLOGUE. OBRIGADO!
© Manuel Fontão
Sem comentários:
Enviar um comentário