2009/12/12

ESTRATÉGIA PARA SER FELIZ...

Havia dois homens, gravemente enfermos, que ocupavam o mesmo quarto de um hospital. Um deles, o mais velho, usufruía de uma grande janela aberta para o exterior e passava horas e horas sentado numa pequena cadeira que fazia parte do parco mobiliário do estabelecimento, ao passo que o outro, impedido de se mover, ia desfiando os seus dias numa atitude de prostração, de esmorecimento e de mutismo, como que confrontando o seu destino com a sorte que, porventura, não tivera. E assim permanecia, o pobre homem, acostado e envolto numa espécie de torpor que lhe tolhia os movimentos e lhe toldava o espírito.
Todavia, e muito graças ao mais idoso, os dos homens falavam horas e horas a fio, erravam, e, nessas longas divagações, a noção do tempo e do espaço parecia esbater-se, tornava-se algo de inútil e de inócuo, em suma, algo que serviria, apenas, para regular a atividade frenética das civilizações. No fundo, eram conversas íntimas e leais, que colocavam em cena as suas famílias, os seus amigos, os seus projetos de trabalho e, à la longue,  os seus próprios sonhos. Mas também colocavam a nu, como é óbvio, as suas frustrações, os seus erros de avaliação, os tempos imemoráveis da juventude, ou melhor, aquilo que a vida deveria ter sido – e não foi. Os temas, esses, não obedeciam, por assim dizer, a um plano prévio, e, vezes amiúde, iniciavam um novo tópico, para o abandonarem logo depois, sem prejuízo de o retomarem mais à frente, para o esquecerem, em definitivo, de forma mais ou menos imprevista e olímpica.
De resto, quando a conversa parecia ter chegado ao fim, quando o tempo havia perdido toda a sua consistência real, então, o mais velho, homem mais experiente e scarmentado, vinha postar-se defronte da sua grande janela e descrevia ao seu companheiro de quarto as coisas belas que podia ver e a magnífica paisagem de que desfrutava: um lindo lago com cisnes a perder de vista, e, nos passeios cingidos de exóticas flores, vislumbrava, ao que parece, grupos de pessoas, homens e mulheres, que, despreocupados e felizes, faziam ecoar, no infinito, o ritmo cadenciado dos seus passos, misturado com a doçura das suas vozes. E aquelas crianças! Como eram belas e imprevisíveis! E como, de repente, haviam irrompido numa louca correria, porque o papagaio de papel, levado pela brisa, teimava em prolongar a sua rota, porque o fantasmagórico objeto - o omnipresente papagaio de papel - insistia em se quedar à altura do sonho do homem e… não haveria ninguém para o acolher no aeroporto improvisado no momento da chegada. Nem sequer haviam preparado a pista de aterragem. Nem sequer uma pessoa da terra para lhe anunciar as boas vindas...
E o homem, agora debruçado no parapeito da janela, continuava a descrever, ao seu inconformado consorte, os grupos de jovens namorados que caminhavam, enlaçados, ao ritmo dos seus sonhos e dos seus desejos. Havia, de um e do outro lado, vastas áleas de flores e de árvores que refletiam, nos seus rostos, as cores do arco-íris e acrescentavam charme aos seus corpos dançantes. E, mais além, um detalhe, um breve e sugestivo esboço da cidade que ficava por detrás, a poucas milhas de distância - isto a avaliar por aqueles três arranha-céus que pareciam desafiar o azul do horizonte...
Ora, enquanto o homem descrevia, deste modo, a paisagem, as coisas e as pessoas que observava através da sua lucarna, o outro começava a reviver o seu passado recente, começava, finalmente, a querer sair daquele estádio de letargia e de exílio. Era como se o mundo, que ficou lá fora, em suspenso, começasse de novo a habitá-lo e a interpelá-lo. Era como se o colorido exterior, que lhe chegava pelo viés da descrição do outro, fosse destilando, na sua alma, pequenas pintadas de luz e de cor. E, nessa atividade mais ou menos onírica, inconsciente, involuntária, o homem reinventava o signo, reestruturava o seu significado intrínseco, dava-lhe novas formas. Ah, sim! O mundo, com todos esses detalhes, com todos esses jogos de luz e de movimento, parecia-lhe mais belo do que outrora. Parecia-lhe diferente de tudo quanto conhecera. Parecia-lhe, enfim, verdadeiro. E, de olhos cerrados, o homem acamado, deixava-se, assim, transportar pelo luxo da pintura, dava largas à sua imaginação, deixava-se penetrar pela beleza da vida: o pobre homem, enfim, sonhava…
De resto, numa tarde de verão, quente, luminosa, divina, o homem da janela descreveu-lhe um desfile que passava por ali. No dia seguinte, contou-lhe, com um certo luxo pictórico, o nascer do Sol e a forma como ele se ia impondo no horizonte, ao mesmo tempo que banhava de dourado todos os objetos circundantes. Também lhe narrou, com detalhes minuciosos, esse fenomenal arco-íris que, de repente, saíra de uma tempestade tenebrosa, medonha, interminável. Aliás, todos os dias, o homem da janela descrevia-lhe, com laivos de requinte e de genuína emoção, um detalhe diferente, um episódio singular que observava do exterior, em resumo, oferecia-lhe, invariavelmente, um detalhe sempre novo e de contornos exuberantes, apelativos, sublimes, - coisas banais de um quotidiano que lhe chegava lá de fora, como que a granel, mas que o homem, o da janela, fazia questão de edulcorar, realçando, em cada frase, em cada expressão, o aspeto maravilhoso de tudo aquilo – a que ela chamava o milagre da vida.

Os dias passaram. O homem da janela teve alta. O outro, que, entretanto, havia recuperado a sua mobilidade, embora a custo, já se podia ter de pé, e, então, pediu à enfermeira de serviço se o podia fazer transportar para a cama que o seu companheiro acabava de deixar, mesmo em frente da janela, para, desse modo, poder desfrutar da maravilhosa paisagem que os seus próprios olhos ainda desconheciam. E... Qual o seu espanto e a sua surpresa, ao ver que, através da janela, só era possível enxergar um muro alto e pintado de branco – nada mais!

O homem, frustrado, perplexo e desconsolado, perguntou então à enfermeira o motivo que teria levado o seu companheiro de quarto a descrever-lhe tantas coisas maravilhosas, através de uma janela que, afinal, esbarrava contra um muro pintado da mesma cor branca do quarto. A enfermeira, algo confusa, replicou-lhe:
– Na verdade, tudo isso é muito estranho, pois ele era cego! Provavelmente, o que ele desejava era apenas dar-lhe ânimo…




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