2009/11/30

UM FEIXE DE LUZ NA CENA VENEZUELANA_03_ANÁLISE SEMIÓTICA

[...] no homem tudo é natural e fabricado, no sentido que não há uma só palavra, ou conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico e que, ao mesmo tempo, não se furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direcção, por uma espécie de regulação e por um génio do equívoco que poderia servir para definir o homem

Merleau-Ponty


Com efeito, a dança constitui uma forma de expressão da arte e, destarte, são-lhe inerentes as mesmas funções de outras manifestações artísticas (tais como conceber e representar experiências, projectar valores, construir sentidos e significados, revelar sentimentos, etc.), distinguindo-se apenas pela pertinência da sua linguagem, pelos meios específicos que reclama e pelos traços diferenciais (mínimos) que a definem relativamente ao todo semiótico, a saber (a): o movimento e (b) a imobilidade. Que se entende, aqui, por movimento? Ora, (a) designará um deslocamento ou uma transformação que se identifica com o impulso corporal e com a capacidade de projecção no tempo e no espaço, cuja ocorrência [de (a)] implica a preexistência do seu contrário (o não-movimento, a quietude, o silêncio do corpo dançante…), a exemplo do que acontece com outras ciências (cf. a escala de Koenig para a fonética ou o modelo de acesso lexical de Klatt…).
Na realidade, acrescente-se, para melhor apreensão do objecto, que toda e qualquer análise semiótica é tributária das unidades discretas das suas partes constituintes (la différance para Jacques Derrida), ou, dito por outras palavras, o construct semiótico só percebe diferenças. Aliás, (b) assume-se mesmo uma conditio sine qua non para que, le momento venu, o bailarino solicite e potencie o movimento, o que implica, na prática, que as acções humanas e, em particular, o esforço superveniente da dança sejam, em último recurso, tributários da relação entre o elemento cinestésico e a situação de repouso. De resto, não será inútil observar que estes dois aspectos entram em doses variáveis em toda a actividade humana, e, com toda a propriedade, no domínio da dança, os quais se traduzem, à superfície, pelos diferentes níveis de desempenho (eficiência, economia de energia e fluxo de movimento).
Princípio binário, por excelência. Mas a dança obedece a outro mecanismo interno, o qual se prende, na circunstância, com o facto de a expressão corporal não ser linear. Na realidade, a dança não segue, neste particular, o princípio da textualidade, por exemplo, mas obedece, antes, a uma concepção circular, neste sentido que, qualquer das suas partes constituintes, não pode, em caso algum, ser separada da totalidade que a compõe e de que depende. É que a actividade dançante, assim como qualquer outra esfera da vida do homem, não é algo exclusivamente mecânico, mas revela (ou oculta?) todo um cortejo de factores de ordem biológica e cultural, pois que, tal como diz Merleau-Ponty, os comportamentos criam significações que são transcendentes em relação ao dispositivo anatómico (1999: 257).
Em boa verdade, tal como MerleauPonty explicita, todo o movimento é indissoluvelmente movimento e consciência de movimento e que todo o movimento possui um fundo. O movimento e o seu fundo são momentos de uma totalidade única. O fundo do movimento não é uma representação associada ou ligada exteriormente ao próprio movimento, ele é imanente ao movimento, ele anima-o e mantém-no a cada instante; a iniciação cinética é, para o sujeito, uma maneira original de se referir a um objecto, assim como a percepção (1999: 159).

o movimento

A noção de movimento é, pois, central no espaço cénico. Importa, por conseguinte, esboçar uma breve análise do fenómeno, seguindo, neste particular, a proposta de Rudolf van Laban, o mais importante teórico de dança do nosso século, que reconhece o movimento como uma espécie de linguagem primeira.
Com efeito, o sistema labaniano define quatro aspectos do movimento que se encontram relacionados entre si, a saber (i) corpo, (ii) esforço, (iii) espaço e (iv) relações, que funcionam como uma espécie de lentes através das quais se observa e se apura o foco da experiência do movimento. Assim, ter-se-á:

i) o corpo

Trata-se de perceber que parte do corpo se move e, a partir daí, inferir a fluência centrípeta e centrífuga, o uso do corpo de maneira ampla ou restrita, a consciência de qual parte constituinte é que se está a mover, a unidade entre as suas partes superiores e inferiores, a unidade entre o seu centro e as suas extremidades, os movimentos do tronco iniciados em diferentes partes, as suas formas e a destreza manual, etc.;


ii) a qualidade ou esforço

Prende-se com o facto de perceber a forma como o corpo se move e observar as habilidades rítmicas, os movimentos mecânicos ou métricos, a resistência, as reacções imediatas ou demoradas, as fases crescentes e decrescentes, os elementos constituintes do movimento, a saber, (a) a atitude da pessoa face ao peso do seu corpo, (b) a atitude da pessoa face ao tempo, (c) a postura da pessoa face à fluência do movimento, (d) a atitude da pessoa relativamente ao espaço e (e) a habilidade para alternar entre estas duas atitudes opostas;

iii) o espaço

Nesta matéria, importa compreender (para) onde é que o corpo se move, isto é, importa, sobretudo, atentar nos gestos (shaping), na localização das formas, nos planos do movimento e nos níveis do espaço que são utilizados pelo indivíduo;

iv) as relações

Neste subdomínio, é importante ter presente os modos de actualização dos comportamentos interpessoais, designadamente, com que é que o corpo se move [+ hum; - hum] ou com quem é que o corpo dialoga [+ hum; + hum], isto é, importa tomar consciência do tipo de relações (de movimento) que o bailarino estabelece com os objectos ou com outros indivíduos.

Por seu turno, Barbara Haselbach, partindo da proposta de Laban, enumera cinco formas de movimento, as quais se podem, sucintamente, resumir deste modo:
a) locomoção: movimento continuado de um lugar para outro, os quais podem ser executados a passo, a saltitar, a rodar sobre si próprio, a deslizar, a arrastar-se ou a perfazer pequenos círculos;
b) gestualidade: movimentos de uma parte do corpo, sem suster todo o seu peso, como por exemplo, rodar a cabeça, encolher os ombros, acenar ou balancear o pé;
c) elevação: suspensão do corpo, acção de se levantar, saltar e, de forma, geral, todos os movimentos que contrariam a lei de gravidade;
d) rotação: circunvolução de todo o corpo sobre um determinado eixo;
e) posição: aparente imobilidade exterior, que se traduz por uma certa atitude de rigidez ou de relaxamento, em que o todo corporal permanece numa tensão equilibrada, de que resulta que o movimento se produza exclusivamente ao nível da musculatura, sem que isso seja muito visível ao exterior (espectador).

Uma outra abordagem, bastante interessante, do objecto em causa (o movimento) é aquela que é levada a cabo por Fitt (1996). Na realidade, no seu artigo sobre Movement behavior a autora estabelece as diferenças qualitativas do movimento, propondo um sistema que focaliza os elementos mais básicos do acto de se mover para, a partir daí, classificar os diferentes estilos.
Assim, a partir das noções elementares de (a) tempo, (b) espaço e (c) força, a estudiosa refere que a análise qualitativa do movimento se pauta, essencialmente, pela identificação e análise de diferentes possibilidades (qualidades) de desempenho de uma mesma acção, quer se trate do indivíduo, quer se reporte ao grupo. Convém, todavia, ressalvar o facto de esta investigação partir de um leque de pressupostos que urge relevar e que se podem enumerar deste modo: (i) o ser humano funciona como um todo integral (mente, corpo e emoção) e não pode ser perspectivado de forma isolada; (b) cada indivíduo é portador de características e padrões únicos (de movimento); (c) cada movimento estabelece uma estreita correlação com outros modos de comportamento (tais como personalidade, expressão da emoção, modo de processamento de dados cognitivos; (d) cada indivíduo possui, em tese, a capacidade de ampliar os valores de uso do tempo, do espaço e da força e, em caso de deficiência (cf. Contact Improvisation), pode adaptar o modo e a forma de expressão…

Face ao exposto, pode legitimamente concluir-se que o movimento é algo de muito complexo, conforme no-lo confirma o próprio Laban, que, na sua obra intitulada Dança Educativa Moderna (1978), esclarece:
(...) La riqueza de movimiento en la danza moderna exige un enfoque diferente de su maestría. Es, en realidad, imposible abarcar en su conjunto el flujo del movimiento humano, estudiar las variaciones casi infinitas de los pasos y el porte del cuerpo de la misma manera que se puede hacer con el restringido número de movimientos utilizados en las formas estilizadas de danza. En lugar de estudiar cada movimiento particular, se puede comprender y practicar el principio del movimiento. Este enfoque de la materia de la danza implica una nueva concepción de ésta, es decir del movimiento y sus elementos (1978: 20).


o corpo

Um outro elemento de grande importância para o modo de expressão aqui em análise, é, sem dúvida, o corpo. Claro que, nesta matéria, tenho em mente o corpo universal, prototípico, aquele que decorre dos arquétipos mais ou menos estereotipados e supervenientes das representações construídas pelo todo social. Neste sentido, o corpo é inevitavelmente perspectivado como um subproduto civilizacional e, mais do que isso, conotado com uma certa herança (cultural, genética, social…), pois que, tal como diz Morin, cada cultura, por meio do seu carácter impressivo precoce, dos seus tabus, dos seus imperativos, do seu sistema de educação, do seu regime alimentar, dos talentos que ela requer para as suas práticas, dos seus modelos de comportamento no ecossistema, na sociedade, entre indivíduos, etc., reprime, inibe, favorece, sobredetermina a actualização de tal ou tal aptidão, de tal traço psicoafectivo, exerce as suas pressões multiformes sobre o conjunto do funcionamento cerebral, exerce até efeitos endócrinos próprios e, deste modo, intervém para co-organizar e controlar o conjunto da personalidade (1999: 165).

Face ao exposto, apresentar-se-á, de forma sintética, o modo como se estrutura o Body-Mind Centering. Para tal, descrever-se-á, em primeiro lugar, os sistemas do corpo recorrendo ao trabalho de Cohen, que elege dez sistemas no corpo humano, a saber: (a) o sistema esquelético, que é formado por ossos e juntas, oferecendo ao nosso corpo a forma básica por meio da qual nos podemos (loco)mover no espaço (note-se que, por este viés, é a mente que também se organiza, promovendo o suporte para nossos pensamentos…); (b) o sistema de ligamentos, através de cuja constituição os nossos ossos se mantêm unidos, guiando a reposta muscular e suspendendo os órgãos nas cavidades torácica e abdominal. (Refira-se que este subsistema proporciona a claridade e a eficiência para o alinhamento e o movimento dos ossos e órgãos); (c) o sistema muscular, a partir do qual os músculos estabelecem uma rede tridimensional para o suporte equilibrado de movimento da estrutura esquelética, proporcionando a força elástica (o que possibilita a mudança dos ossos pelo espaço. Aliás, por intermédio desse subsistema, incorporamos a nossa vitalidade, expressamos o nosso poder e comprometemo-nos num diálogo de resistência e de resolução); (d) o sistema orgânico, responsável pela manutenção dos nossos os órgãos e, à la longue, responsável pelas funções indispensáveis à nossa sobrevivência interna (respiração, nutrição e alimentação). Além disso, este subsistema proporciona-nos o sentido de volume, de saciedade e de autenticidade orgânica e, correlativamente, assume-se como habitat primário ou ambiente natural das nossas emoções, das nossas aspirações, das nossas memórias e das nossas reacções internas; (e) o sistema endócrino, que se prende com a secreção produzida pela glândula endócrina (passando directamente pela corrente sanguínea, pelo que o seu equilíbrio ou desequilíbrio influencia todas as células do corpo. Tal subsistema caracteriza-se por um processo de silêncio interior, de ondas ou explosões, de caos ou de equilíbrio, de cristalização de energia dentro da experiência arquetípica; (f) o sistema nervoso, que, associado ao sistema endócrino, faz com que os nervos recebam e transmitam informações para todas as células do corpo e coordenem essas informações de forma controlada nos centros de retransmissão espalhados por todo corpo; (g) o sistema de fluidos (celulares, sanguíneos, linfáticos, sinoviais e cérebroespinhais) que medeiam a dinâmica de fluência entre descanso e actividade; (h) o sistema facial, por meio do qual se faz corresponder os sentimentos internos à expressão externa; (i) o sistema gorduroso, através do qual a gordura estática é armazenada como potencial desconhecido ou represado, criando uma sensação de peso e de letargia. (Registe-se que a gordura mobilizada exprime, à superfície, força, poder primordial e uma sensação de graça e de fluidez…). (j) o sistema dérmico, pelo viés do qual tocamos e somos tocados pelo mundo exterior, somos invadidos e protegidos, fazemos contactos e somos contactados pelo(s) outro(s).
Contrariamente à teoria modular (cf. Sprengler, para o domínio da Linguística…), que determina que cada competência específica é cega perante todas as outras, Cohen, por seu turno, argumenta que, não obstante cada modalidade se apresentar separadamente, os respectivos subsistemas contribuem, de uma forma ou de outra, para o produto final (o movimento do corpo/mente), ou seja, são interdependentes do todo sistémico, razão pela proporciona, na prática dançante, uma completa rede cinestésica: a representação concreta.

Falei, acima (cf. o movimento), do corpo deficiente e da necessidade de o adaptar, seja ao modo, seja à forma de expressão. Ora, parece-me que o Contact-Improvisation, criado por Steve Paxton, serve amplamente os propósitos do corpo deficiente ou irregular, pois que, neste tipo de dança contemporânea, cabem, grosso modo, todas as formas de expressão do quotidiano (cf. as varinas na lota, os vendedores ambulantes numa qualquer rua caraquenha, os vendilhões de ilusões numa qualquer praça lisboeta, etc.). Com efeito, o Contact-Improvisation, definido como um processo criativo que ocorre quando duas ou mais pessoas se movimentam com apoio mútuo e jogam com a mudança de equilíbrio colectivo, mescla a acrobacia com movimentos abertos e aleatórios, capazes de mimar a variedade cenográfica do dia-a-dia. Não obstante o facto, e porque se destina à relação entre o esqueleto, a musculatura e os reflexos, o Contact-Improvisation também atenta para as interacções do corpo perceptivo com o organismo corpo/mente. Assim, por meio da experiência directa e imediata, podemos conhecer novos percursos dançantes, potenciadores, não apenas do contacto (inter)pessoal, mas também da recriação do contexto (urbano, prosaico, situacional…).
Em que consiste, ao certo, o Contact-Improvisation? Fundamentalmente, baseia-se na sensação do toque e no equilíbrio entre duas pessoas, em que os parceiros (em dueto) tocam, de forma mais ou menos recorrente, um no outro e é, justamente, através dessa técnica (o toque) que a informação passa e se transmite. Note-se que, segundo Kathleen (2000), a teoria da estimulação pelo toque é absolutamente necessária para o nosso bem-estar tanto físico quanto emocional e, neste particular, refere que o abraço, por exemplo, provoca mudanças na nossa forma de estar. Na realidade, e segundo aquela autora, os gestos de afecto melhoram substancialmente a nossa auto-estima, aumentam a nossa capacidade de integração na vida grupal, traduzem-se por um saldo positivo no nosso caderno de encargos sentimental e, em última análise, melhoram a nossa inteligência ou, para falar com mais rigor científico, as nossas inteligências, pois que, desde os trabalhos de Gardner sobre o assunto (cf. a inteligência linguística, lógico-matemática, espacial, musical, cinestésica, interpessoal, pictória, e intrapessoal…), desde os estudos de Gardner, dizia, que o corpo se assume como um dos primeiros veículos do conhecimento, através do qual o indivíduo extravasa o cortejo das suas emoções, construindo assim uma rede inextricável de saberes mais ou menos coesos e solidários…
Todavia, não se pense que este tipo de dança contemporânea nasce de forma mais ou menos abrupta. Bem pelo contrário. Aliás, segundo Albright (1997), este estilo requer um forte investimento pessoal e um sistema de treinos que reúne, pelo menos, seis aspectos essenciais, a saber, (1) a atitude, (2) o sentido apurado do tempo de resposta, (3) a orientação do espaço disponível, (4) a orientação do parceiro, (5) a expansão da visão periférica e (6) o desenvolvimento muscular. Assim, argumentando que este método não tenta recrear a moldura estética do corpo clássico ou o contexto de dança tradicional, Albright (1997: 90) vai eleger o Contact-Improvisation para representar o corpo com deficiência.
Em suma, os corpos disponíveis para a dança, quaisquer que sejam eles, promovem a (auto)aprendizagem, acrescentam uma nova dimensão à cosmovisão de cada um de nós, fomentam a acumulação de técnicas e de conhecimentos aos códigos de movimento inscritos nos nossos corpos, e, desse modo, criam elementos de possibilidade aos códigos gestuais preexistentes, aos movimentos cinestésicos conhecidos e, nesse sentido, são as balizas e os paradigmas filogenéticos e ontogenéticos que surgem pari passu redimensionados. Porque o corpo disponível para a dança é um corpo que aprende, absorve, compreende o movimento, adquire hábitos motores – elabora saberes.
©Manuel Fontão

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