2009/11/30

UM FEIXE DE LUZ NA CENA VENEZUELANA_2_O OBJECTO

O homem é um ser cultural por natureza, por ser natural por cultura.

Morin


A dança, um processo que data da noite dos tempos, foi percebido, desde sempre, como um das primeiras expressões (des)ordenadas dos afectos (eutimia vs fúria, aquiescência vs recusa, intrepidez vs medo, etc.). Aliás, as pinturas rupestres revelam, justamente, que o homem primitivo já exprimia, através da dança, o cortejo de sentimentos que lhe ia na alma (cf. o contentamento pelo advento da chuva, pelo hóspede que chegava, pela presa que havia caído no alçapão, pela boa colheita vs o descontentamento, a ira, a cólera, o rancor…).
De resto, já Sócrates, o grande filósofo grego, através de Platão em Leis VII, considerava a dança como uma actividade que viria contribuir, em larga escala, para a formação completa do cidadão, na medida em que ela daria proporções correctas ao corpo, seria fonte de boa saúde, e, além disso, seria um óptimo objecto de reflexão estética e filosófica… Aliás, este pensamento sintetiza e explica, na minha opinião, o espaço que a dança ocupava na educação grega. Com efeito, o homem grego, como sabemos, não separava o corpo do espírito e, de resto, acreditava que o equilíbrio entre ambos lhe trazia o conhecimento e a sabedoria.
Claro que estas formas de expressão artística ainda se encontravam, na sua essência, assentes nas cerimónias de homenagem aos deuses (cf. as Dionisíacas, as Bacantes ou Ménades, etc.), mas a verdade é que, pouco a pouco, estas manifestações, a princípio mais ou menos ritualizadas e mecânicas, foram adquirindo um conjunto de passos, de gestos próprios e de encenações específicas em que cada deus ia sendo invocado em situações cénicas cada vez mais complexas e simbólicas, até atingirmos aquilo que, hoje, se designa por coreografia.
Diga-se, em abono da verdade, que algumas das técnicas de dança da civilização grega conseguiram sobreviver até aos nossos dias, como por exemplo, a meia ponta ou relevé (que consiste, em termos coreográficos, no movimento a partir da posição dos pés rentes ao chão, permitindo à dançarina ficar nas pontas – meia ponta para os dançarinos –, e, desse modo, retomar sua posição inicial), as quais (técnicas) foram, posteriormente, absorvidas pelo ballet de cour, e, mais tarde, pela técnica clássica.
Poder-se-á, por conseguinte, afirmar que a dança (palavra proveniente do sânscrito e que significava desejo de viver) enforma, de uma maneira ou de outra, aquilo que o homem não consegue comunicar, pelo que as diversas manifestações traduzem, à la limite, uma necessidade particular do ser humano – a comunicação. Por conseguinte, não admira que, desde muito cedo, o homem tenha recorrido a esta forma de expressão artística. É que a dança constitui, de facto, um dos processos mais completos do todo comunicacional, na medida em que ele atravessa diagonalmente os domínios perceptivo, sensorial e motor. Desenganem-se, pois, aqueles que associam indevidamente o homem primitivo com a elementaridade da sua inteligência…
Ora, o que se busca através deste modo de expressão artístico? Parece-me que, antes de mais, se interpela a própria relação com o nosso corpo. Mas não só. Também se questiona o corpo do outro e, mais do que isso, a inter-relação das formas (subjectivas e objectivas) com o mundo circundante. Acrescente-se, desde já, que a dança, perspectivada deste modo, se articula estreitamente com os contextos locais das suas realizações concretas e, em consequência disso, se encontra intimamente associada ao desenvolvimento social, facto que explica, por exemplo, que as representações encontradas em França e Espanha, com 10 000 anos de existência, contenham, na sua larga maioria, cenas de caça (marca gnoseológica do homem de então), ao passo que as complexas coreografias da contemporaneidade têm tendência, entre outras, para mostrar a violência que a urbe exerce sobre o homo dolens (cf. a arte contemporânea venezuelana, infra).
© Manuel Fontão

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