2009/11/14

CULTURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA_4

4. O estado das coisas

Poder-se-ia pensar que inscrevo a minha radiografia num campo semântico desvalorativo. Mas não. Pretendo tão-só acentuar o que de muito de bom se faz, tanto mais que o percurso não tem sido fácil. Com efeito, depois de um período de instrumentalização da cultura (Estado Novo), com a agravante de surgir legitimada pelos próprios criadores (António Ferro, Almada Negreiros...) e selada com o risco cego do lápis azul (SNP), seria legítimo pensar-se que a Revolução dos Cravos traria para a ribalta uma geração florescente de artista..

Novo revés. O PREC prolongar-se-ia, a indefinição política arrastar-se-ia ad infinitum (cf. o 28 de Março, as FUP-25 de Abril, o COPCON…) e, à excepção dos murais urbanos mais ou menos impressionistas e de inspiração cubana (sob a assinatura do MRPP e da LUAR) ou da música de intervenção (José Afonso, Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco…) pouco ou nada se vislumbrou na Paisagem Artística Portuguesa (PAP). Pois! Urgia tratar do jardim voltairiano. E, um pouco à laia panglossiana, lá fomos protegendo o que de melhor tínhamos conquistado (a liberdade de expressão), enquanto víamos o Gabriela, Cravo e Canela a preto e branco (1978)...
Não há mal que sempre dure, nem mal que não acabe: o cinza cedeu o lugar a um complexo jogo cromático… Era necessário habituar o nosso olhar às coisas e ao novo (velho) mundo. Era necessário adaptar o nosso campo de consciência ao real. Música rock? Lá veio o Se7e – estávamos em 1979 – explicar em que consistia. Pouco depois, habituávamos o nosso ouvido ao Chico Fininho (Rui Veloso).
Mais à frente, ouvíamos Portugal e CEE. Ah! Ainda vislumbrámos no firmamento o meteorito de Amares, António Variações (aposto que, hoje, estaria crivado piercings, que os pais gostassem ou não!...).
Mas urgia fazer um ponto de restauro sistémico. A Europa estava ali. Tão próxima (cosmopolitismo) e tão distante (provincianismo). Ora aí está! Havíamos de levar uma Fátima Lopes para os Campos Elísios para fazer companhia a Vieira da Silva. Havíamos de radicar uma Paula Rego em Londres para servir de referência. Havíamos de ter um António Damásio nos Estados Unidos como marco. E havíamos de ter um Nobel nas Canárias para provar que de Espanha também vêm bons ventos e bons casamentos (enfim, Pilar del Rio terá a palavra…).
Mudemos de registo. Portugal transformar-se-ia. Com efeito, hoje, faz parte dos circuitos internacionais, possui públicos-alvo específicos e prontos a consumir. A prová-lo, estão os megaconcertos de Madonna, de Fafá de Belém, de Adriana Calcanhoto, de Rolling Stones, de Domingo Carreiras, de Elton John (apesar do fiasco!...), etc.
Mas não só. Hoje, mais do que nunca, e graças às novas ferramentas, assiste-se a uma superprodução desde a música (Moonspell, Deolinda, D’ZRT, para não falar já dos consagrados Xutos & Pontapés nem dos GNR...) à arquitectura, desde a pintura, à escultura ou à publicidade. Aliás, nos dias que correm, e dada a dimensão da PAP (cf. a blogosfera), o difícil é seleccionar, tanta é a actividade artística…
Todavia, a questão de fundo, aquela que se prende com a especificidade da cultura portuguesa não me parece resolvida. Com efeito, a matriz ideológica da PAP, no seu essencial, permanece intacta: assim como há décadas o êxodo do interior para o litoral não fez com que os novos residentes adoptassem, pelo menos no imediato, uma postura urbana (o saloio continuaria a sê-lo em território lisboeta, não abdicando dos seus hábitos ancestrais…), também agora, com a abertura das fronteiras ao exterior (facilitada pelo espaço Schegen) não faz do nosso país um país colorido a exemplo das grandes metrópoles europeias, neste sentido que o multiculturalismo não tem a expressão e a dimensão que conhecem Londres, Paris, Marselha ou Montpellier .
Nem isso é relevante, pois que cada cultura segue o seu trilho (pathos) e não tem de estar condicionada a quaisquer preocupações programáticas (ethos). O que tem, isso sim, é que se libertar delas, pois que o que se observa é justamente a sua governalização (cf. En Attendant de Godot de Samuel Beckett na sua adaptação ao teatro russo ou a obra de Karl Marx aplicada à ex-URSS ou, ainda, a obra de Hegel que serviu indevidamente os propósitos de Adolf Hitler…).
Assim é. Desde Friedrich Nietzsche que sabemos que a cultura, a verdadeira cultura, consistirá na produção do génio, não obedecendo, por conseguinte, a qualquer finalidade. Significa isto que a PAP deve ter apenas como limites a consciência individual dos seus múltiplos autores – sem qualquer compromisso regular, na medida em que a produção criativa – e criadora – é do domínio secular e temporal. É que, do ponto de vista simbólico, Deus morreu. Desde a Revolução Francesa. E o homem está só face a si próprio e ao seu universo sui-referencial.
© Manuel Fontão

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