2009/11/14

CULTURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA_3

3. O paradigma cultural português

Muito se tem falado dos anos de ditadura salazarista para explicar eventuais atrasos da Paisagem Artística Portuguesa (PAP) e contra factos não há argumentos. Todavia, e sem me querer aproximar dos pressupostos biológicos e deterministas de Malinowski, parece-me, contudo, que este estado de coisas, tal como alguém explicitou ultimamente (refiro-me, em concreto, a Augusto Santos Silva e à célebre frase a culpa é dos genes), se fica a dever, pelo menos parcialmente, a profundos traços da mentalidade portuguesa, os quais se traduzem, à superfície, por alguma incapacidade para assumir frontalmente algumas falhas e uma certa inércia face ao desconhecido, ao novo, ao desafio – à arte. Com efeito, parece-me que, cada vez mais, continuamos reféns da mentalidade quinhentista. (Cf. Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto ou mesmo Os Lusíadas de Camões), em que os interesses de paróquia se sobrepõem ao colectivo, em que o narcisismo anula qualquer tentativa de universalização artística, em que a intriga destrói toda e qualquer iniciativa pessoal...
Significa isto que o ser português, concepção urdida por um povo com uma janela grande ouverte para o mar (espaço de sonho, de aventura e de descoberta, mas também de incerteza, de insegurança e de perigo iminente…), tal concepção, dizia eu, encerra uma dicotomia fortemente vincada entre duas subculturas, a saber, (a) uma, de natureza culta e (b) uma outra, de cunho popular, ou melhor, uma, de pendor cosmopolita, e uma outra, de tendência provinciana, sendo que a primeira está supostamente alinhada com a questão normativa do bom gosto (mas... em que consiste, ao certo, o bom gosto? É a norma? Mas qual norma? Por exemplo, os Franceses, melhor do ninguém, sabem que a questão é complexa e deve ser encarada com toda a cautela (cf. La question du bon goût et du bon sens), ao passo que a segunda, essa, embora marginalizada e objecto de censura tem, todavia, a capacidade de cativar as massas, as quais, a exemplo das Bacantes gregas, se reúnem devidamente acompanhadas dos seus símbolos totémicos (bandeira, cachecol, posters, etc.) e dos respectivos apetrechos para o reconforto do estômago – e não só).
Em suma, há um cotejo latente entre a (sub)cultura oficial, aquela que emana das instituições creditadas para o efeito, como por exemplo, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação de Serralves, o Centro Cultural de Belém, os Teatros Municipais (de que o mais recente é, sem dúvida, o Teatro Municipal de Vila do Conde), as redes de bibliotecas administradas pelas autarquias e os vários organismos públicos e, uma outra, oficiosa, subliminar, subterrânea, objecto de estigmatização e de ridicularização – a chamada cultura dos três F (Fado, Fátima e Futebol, aos quais (F), poderia legitimamente acrescentar um quarto (F) de Farinha, válido, aqui, na Venezuela, pois que as padarias são geridas, maioritariamente, por portugueses…). Lógica de conflito, por conseguinte. Estrutura dual, quiçá bélica, em todo o caso…
Ora, quem percebeu muito bem os mecanismos subjacentes a este estado de coisas, em que cada pessoa (espectador, consumidor...) conta para fins estatísticos, foram os grandes grupos económicos, como por exemplo, a TVI e a cadeia de supermercados Modelo-Continente, que, cada um a seu modo, levaram este paradigma ao seu ponto paroxístico. Com efeito, a estação televisiva de Queluz de Baixo tem vindo a apostar em pacotes programáticos de cariz populista, em que as fronteiras entre a esfera do privado e o espaço público não parecem muito bem delimitados (cf. os valores judicativos das notícias, o formato ambíguo dos telejornais, a literatura fotogénica, a grelha programática concentracionária…) e o grupo SONAE, na mesma linha de actuação, conseguiu reunir, com a ajuda de carismático Tony Carreira, quase quarenta mil pessoas (a exemplo do que aconteceu no pretérito dia 23 de Outubro no Centro Português de Caracas, com Roberto Leal…) (NOTA: o presente estudo compromete o analista que, em caso algum, poderá ser confundido com o homem e/ou o profissional..)
Outro traço marcante e transversal a toda a sociedade portuguesa é o binómio euforia/disforia tão visível, de resto, em acontecimentos recentes (como por exemplo a Expo’98 e o Euro2004…) e o consequente efeito de vacuidade que se segue aos grandes momentos...
A que é que se deve este estado de coisas, que mais não é, no fundo, do que uma certa pieguice, ou melhor, mais não é do que aquilo que Freud chamou de benefício secundário? Ora, ficar-se-á a dever, por certo, a uma opinião pública pouco esclarecida, a uma cultura de oposição permanente face ao desafio, a uma adesão a tabus e a modelos obsoletos, enfim, ficar-se-á a dever a uma sociedade civil fraca e pouco interventiva, a uma linha política marcada pelo populismo, a uma certa incapacidade de ultrapassar os preconceitos ideológicos, a uma deficiente capacidade de gestão, a um poder corporativo algo desregulado, a um conjunto de interesses de paróquia, a constrangimentos de índole económica. Que mais ainda? Ficar-se-á a dever a um modelo económico assente, no essencial, na valorização de cargas de trabalho terceiro-mundistas, em detrimento, muito justamente, de uma sociedade vocacionada para a fruição e para o lazer... (cf. Cazeneuve, J. (1962) Vers une Civilisation du Loisir. Paris: Gallimard).
© Manuel Fontão

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