2009/07/31

UMA QUESTÃO DE GÉNERO...

Os mass media, não obstante a sua importantíssima função social (e já não falo, sequer, de uma outra bem mais recente: a função terapêutica…) são exímios em criar novos e invulgares termos linguísticos, e, no caso de que agora me ocupo, formas morfológicas verdadeiramente inesperadas, como por exemplo, * rapididade, *beneficiência, *mau-estar – só para citar uma pequena amostra do panorama nacional.
Poder-se-ia, porventura, pensar que estamos perante um processo de neologia, fenómeno de grande rendimento e de salutar rejuvenescimento das línguas naturais, mas tal não é, lamentavelmente, o facto. É que a neologia constitui um processo de enriquecimento vocabular que se apoia normativa e estruturalmente no código da língua e obedece, de resto, às regras sistémicas em vigor. Assim, são exemplos de neologismos formas morfológicas como diabolização, dolarizar, TAC, etc.
Ora, o que está em causa, aqui, é um fenómeno muito diferente do processo neológico, pois que estou a falar de ocorrências como *o síndroma, *o sentinela, *o acne, *o herpes labial, cuja produção se prende com a ignorância das mais elementares regras gramaticais e que se devem, na sua essência, à confusão mental entre o género natural e o género gramatical. Claro que, como já dizia Vendryes (1921: 114), “a [a classificação não é] senão uma modalidade da divisão em classes, que se encontra para os nomes nas línguas humanas urbe et orbi”. Aliás, nesta matéria, Schmidt vai mesmo mais longe ao afirmar que existem quatro correntes orientadoras nessas classificações, a saber, (a) a “vital”, que divide os seres em animados e inanimados, (b) a “pessoal”, que os separa em pessoas (providos de razão) e coisas (desprovidos de razão), (c) a sexual, que cria o género masculino e feminino e (d) a numeral, que encara a forma exterior dos seres, levando especialmente em conta a possibilidade de os sujeitar à enumeração. (1926: 334)
É que não basta varrer o lixo civilizacional para debaixo do tapete…

Significa isto que a divisão entre o masculino e o feminino, para me restringir, apenas, a este subdomínio taxonómico, não é de todo em todo evidente e a prova disso é que, vezes amiúde, a distribuição dos conceitos [masculino] e [feminino], tal como referiu Léo Spitzer (1941), emerge da mentalidade colectiva dos povos, em que a noção de sexo é muito importante para a distribuição dos géneros. Parece, todavia, evidente que, apesar destes considerandos, o signo é, tal como afirmava Saussure, convencional, aleatório ou quando muito relativamente motivado.
Na realidade, Saussure precisa que a relação que une o significado ("l’image psychique”) ao significante ("l’image physique") é marcada pela noção de arbitrariedade. Dito noutros termos, poder-se-á afirmar que o signo linguístico é arbitrário porque se trata, no fundo, de uma convenção aceite comummente pelos falantes de uma determinada língua. Nesta óptica, poder-se-á dizer que a ideia de livro e o seu significante [livru] revela a existência do carácter arbitrário da relação significado/significante, pois que, como facilmente se depreende, o registo fonético (significante) da mesma imagem mental (significado) difere de língua para língua: (book, em inglês, livre, em francês, libro, em espanhol, buch, em alemão, etc.), o que implica necessariamente que não existe uma relação natural entre o significado e a realidade fonética do signo.
Com efeito, na teoria saussuriana, consideram-se dois tipos de arbitrariedade, a saber, a absoluta e a relativa, sendo que a imotivação total do signo (tomado isoladamente) e a sua motivação relativa têm que ver com as noções de palavra primitiva e palavra derivada. São exemplos deste fenómeno, a derivação do vocábulo bananeira formada a partir da palavra primitiva banana e que, além disso, nos remete para outras séries paradigmáticas como macieira, laranjeira, ameixoeira, etc.
Diga-se, em guisa de parênteses, que a questão da arbitrariedade do signo linguístico tem sido objecto, no decurso do século XX, de grandes discussões. E. Pinchon, neste capítulo, teve o mérito de chamar a atenção para o facto de a realidade fonética do signo ser dependente do seu significado, razão pela qual, segundo este autor, a relação entre os dois planos (significado e significante) ser necessária, logo, não-arbitrária (La linguistique en France” in Journal de psychologie normale et pathologique, 33, 25, 1937). Na linha deste raciocínio, Benveniste (1937: 33) defende que o vínculo entre significado (representação mental) e significante (representação formal) não pode ser arbitrário, mas necessário e indissociável do todo significativo, caso contrário a comunicação não seria possível. Por seu turno, Jacques Derrida também viria a contestar o modelo saussuriano…
Do que acima ficou dito, depreende-se que a teoria da arbitrariedade do signo não pode servir de baliza à distribuição entre os dois géneros, pelo que o sujeito falante deverá fazer apelo, em primeira instância, aos seus saberes enciclopédicos, no caso concreto, à deriva terminológica. Na verdade, os casos acima mencionados (*o sentinela, *o síndroma) provêm do latim ou do grego, pelo que o género deve ser considerado na língua de empréstimo.
Assim, e para os casos citados, ter-se-á:
1. sentinela: sentinella (1518-1525) “soldado armado pertencente a um turno de vigilância, de custódia ou de protecção”; alguns autores vinculam o vocábulo ao verbo sentiresentir, perceber”, mas admitem, todavia, que a formação não está bem esclarecida; outros, partem de um presumido *sentinellare, verbo frequentativo do latim tardio “sentináre”, “evitar um perigo, usando a astúcia”.
2. a síndroma (ou síndrome): gr. sundromê, ês concurso, isto é, acção de se reunir tumultuosamente”, donde “reunião tumultuosa”, do verbo sundrameîn, infinitivo aoristo segundo, voz activa, de suntrékhó”, “correr com”.
Posto isto, a questão a que urge responder é a de saber por que é que tais palavras são pontualmente sentidas como pertencentes ao género masculino, não obstante o índice temático em -[a]. E a resposta é óbvia: prende-se com a etimologia, espécie de genoma da palavra, e que explicita que a mesma é (foi) percebida, na sua origem, como vocábulo feminino ou masculino...
Parece, pois, que tais incorrecções linguísticas reflectem um certo ”ar do tempo” e põem a nu a necessidade de se reflectir sobre a organização curricular dos novos cursos superiores, principalmente aqueles que têm como missão lidar com as ferramentas linguísticas. Com efeito, abandonar a reflexão sobre o funcionamento da língua, secundarizar o ensino da(s) língua(s), em cursos que deveriam, justamente, ter como função primordial a sua aprendizagem e o seu aprofundamento, isso parece-me, no mínimo, uma imprudência.

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© Manuel Fontão

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