PRECARIEDADE OU PRECARIDADE?

Uma certa confusão que se tem vindo a acentuar, proveniente, quer do discurso político, quer do relato jornalístico, é aquela que se prende com ocorrências do género:

(1) Este debate sobre a *precaridade do emprego…
(2) O importante, nesta matéria, é a *interdisciplinariedade…
(3) Vamos atribuir um subsídio de *complementariedade…

Ora, a questão revela algum desconhecimento do código linguístico, cujas regras (duas) se podem sucintamente enunciar nestes termos:

(A) aplicar-se-á o sufixo nominal [-iedade] à forma adjetival com sufixo em -(á)rio -(ó)rio
(B) aplicar-se-á o sufixo nominal [-edade] à forma adjetival com sufixo em -ar.

Assim, temos para a primeira regra (A), ocorrências como:
(A1) arbitrariedade (arbitrário);
(A2) contrariedade (contrário);
(A3) impropriedade (impróprio)
(A4) propriedade (proprietário);
(A5) obrigatoriedade (obrigatório);
(A6) notoriedade (notório);
(A7) sobriedade (sóbrio);
(A8) solidariedade (solidário);
(A9) variedade (vário);
etc.

e para a segunda regra (B), poder-se-ão citar exemplos tão diversos como:
(A1) circularidade (circular);
(A2) complementaridade (complementar);
(A3) espectacularidade (espectacular);
(A4) insularidade (insular);
(A5) interdisciplinaridade (interdisciplinar)
(A6) linearidade (linear);
(A7) particularidade (particular);
(A8) similaridade (similar);
(A9) suplementaridade (suplementar);
etc.

Parece-me, pois, que a indistinção mental (que leva o sujeito falante à aplicação abusiva do pensamento por analogia) esconde a ignorância (ou a preguiça intelectual que se vai instalando progressivamente nas sociedades coetâneas…) e, mais do que isso, constitui o reflexo de uma mudança de paradigma cultural: a passagem de uma cultura de raiz humanista para a euforia tecnológica, ou melhor, a transformação de uma cultura centrada no ser, no saber-ser e no saber-estar, para uma cultura assente no parecer-ser e no parecer-saber-ser – de que o programa Novas Oportunidades constitui um exemplo paradigmático.
Mas que se cuidem os mais incautos: à mulher de César não lhe bastaria parecer ser séria. Tinha mesmo de o ser. Quer isto dizer que o ser e o parecer devem formar, nesta como noutras matérias, a cara a e coroa de uma mesma moeda, i. e., devem formar um todo uno e indivisível.
E, para usar uma imagem saussuriana, não me parece que ainda seja possível rasgar a frente de uma folha de papel sem, inevitavelmente, se destrua o seu verso…

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© Manuel Fontão