2009/07/02

REALPOLITIK_2

“Com um pouco mais ainda me vai fazer acreditar que votou em branco, observou o ministro do interior ironicamente, Não, não votei em branco, mas pensá-lo-ei na próxima ocasião. Quando o burburinho escandalizado resultante desta declaração começou a diminuir, uma pergunta do primeiro-ministro fê-lo cessar de golpe. Está consciente do que acaba de dizer, Tão consciente que deposito nas suas mãos o cargo que me foi confiado, apresento a minha demissão, respondeu o que já não era nem ministro nem da justiça. […] O que até agora havia sido ministro da justiça levantou-se, inclinou a cabeça na direcção do […] primeiro-ministro e saiu da sala. O silêncio foi interrompido pelo súbito arrastar de uma cadeira, o ministro da cultura tinha-se levantado e anunciava lá do fundo com voz forte e clara, Peço a minha demissão. Ora essa, não me diga que, tal como o seu amigo acabou de nos prometer num momento de louvável franqueza, também o senhor o pensará na próxima ocasião, tentou ironizar o chefe do governo, Não creio que venha a ser preciso, já o havia pensado na última, Isso significa, Apenas aquilo que ouviu, nada mais, queira retirar-se, Ia no caminho, senhor primeiro-ministro, se voltei atrás foi só para me despedir. A porta abriu-se, fechou-se, ficaram duas cadeiras vazias na mesa. […] [M]inistros que entram, ministros que saem, é o que mais se encontra na vida, disse o primeiro-ministro, de todo o modo, se o governo entrou aqui completo, completo sairá, eu assumo a pasta da justiça e o senhor ministro das obras públicas tomará conta dos assuntos da cultura, Temo que me falte competência necessária, observou o aludido, Tem-na toda, a cultura, segundo não param de dizer-me algumas pessoas entendidas, é também obra pública, portanto ficará em boas mãos. Tocou a campainha e ordenou ao contínuo que apareceu à porta, Retire essas cadeiras, depois, dirigindo-se ao governo, Vamos fazer uma pausa de quinze, vinte minutos […].
Meia hora depois os ministros voltaram a sentar-se ao redor da mesa. Não se notavam as ausências. […]”

In Ensaio Sobre a Lucidez, pp. 177/178, Caminho




© Manuel Fontão

Sem comentários: