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2009/07/04
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Trata-se de uma obra inquietante em que o narrador descreve minuciosamente o estado mais selvagem do fundo do homem que consiste, no final de contas, na vontade férrea, para não dizer obscena, de sobreviver a qualquer custo e sob condições, no mínimo, execráveis. O livro inicia-se com a súbita cegueira de um homem (O Primeiro Cego), no momento em que se encontrava num semáforo à espera do sinal verde. Ora, como em qualquer circunstância do nosso quotidiano, infelizmente banal, os outros condutores começam por reagir mal, o ritmo de vida não parece dar tréguas a quem quer que seja e, como tal, nem sequer se dignam prestar ajuda… à excepção de um homem que, virá a saber-se mais tarde, é um ladrão de automóveis. Parece, pois, claro que este momento inicial constitui uma crítica mordaz às sociedades contemporâneas e aos costumes egocêntricos dos seus habitantes em que a nota dominante é o individualismo e a falta de respeito para com o próximo. O certo é que a cegueira – o mal branco – se vai alastrando a toda a cidade, não poupando praticamente ninguém: assim foi, numa primeira fase, com o primeiro grupo de cegos: o médico (oftalmologista, por ironia do destino), a prostituta, aliás, a rapariga dos óculos escuros, o rapazinho estrábico, a mulher do primeiro cego, o próprio ladrão de automóveis, que foram compulsivamente internados num manicómio. Assim será, paulatinamente, com os governantes, com os soldados, com os jornalistas, com os motoristas de táxi, com os locutores, com os bancários, com os lojistas. Em suma, a epidemia atinge toda a cidade, à excepção da mulher do médico que, por motivos inexplicáveis, não perdeu a visão e que só por um estratagema engenhoso (afirmando que havia cegado no exacto momento em que levavam o marido) consegue acompanhar o primeiro grupo no internamento.
Assim, é nestas circunstâncias que a condição humana é apresentada sem os benefícios da visão, revelando como os valores mudariam numa sociedade que perdesse esse sentido: vivendo abaixo do limiar da dignidade humana, em condições a todos os títulos vexatórias e degradantes, a mensagem do narrador parece ser a de que o ser humano de hoje terá de mudar os seus princípios e consolidar os seus valores morais, caso contrário regressará à horda primitiva, ao estado – latente? – de selvajaria e de barbárie. Por outras palavras: o lado inumano (coetâneo) só poderá ser superado por uma humanidade consolidada, consciente e responsável, uma humanidade assente no amor gratuito ao próximo e no dever de solidariedade que temos para com o outro. Eis o caminho, de resto, inteiramente ao nosso alcance, tanto mais que depende de nós. Aliás, afastar-se desta meta será, mais ou cedo ou mais tarde, abraçar o caos: em terra de cegos… O romance lembra vivamente La Peste de Albert Camus, sem, por isso, assumir contornos positivistas, até porque a Humanidade parece, doravante, estar entregue ao seu próprio destino. A começar pelas personagens, que não possuem nomes próprios, sendo simplesmente identificadas pelos títulos (cargos, particularidades físicas, relações de parentesco, etc.). De resto, como sublinhou o próprio autor logo após o lançamento do romance, "O nome que temos substitui o que somos: não sabemos nada do outro". O pior de tudo, a meu ver, é que continuamos a não querer saber, embora isso nos interpele. Intimamente…
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