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2009/07/06
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE
“No Dia seguinte ninguém morreu.” Assim começa este pequeno livro de duzentas e catorze páginas do Campo das Letras, escrito num papel que revela preocupações ecológicas, em que o provérbio Ano Novo, vida nova vem conferir vinha veracidade e substância ao real. Com efeito, às zero horas do primeiro de Janeiro daquele ano (o narrador não especifica o tempo absoluto provavelmente porque tudo, neste mundo, seja relativo…), ninguém, naquele país de características mais ou menos ibéricas, morreria, ninguém conheceria mais o travo amargo do trespasse, em suma, as defunções fariam, doravante, parte de um passado revoluto – o que, até ao momento, nunca tinha acontecido (pelo menos a história da humanidade jamais havia recenseado um facto desta amplitude, isto excluindo obviamente a hipótese de a História se ter esquecido de registar a efeméride…) Ano Novo, vida nova! Doravante, e sem se perceber porquê (ele há factos que parecem não merecer qualquer resposta…), a imortalidade tinha contemplado aquele país monárquico, tinha presenteado todos os seus habitantes com o elixir… da vida eterna. Que ditosos serão, no futuro, aqueles homens e mulheres que já não teriam de pagar a livrança! Que bem-aventurados serão todos aqueles que, como a rainha-mãe, já deveriam ter finado! Acabar-se-iam, por certo, as guerras de alecrim e manjerona. Cessariam os acidentes, a violência gratuita, a injustiça. Em suma, expurgar-se-ia definitivamente o mal. Que bom!...
Sol de pouca dura, todavia. Até porque, já dizia Jean-Paul Sarte, l’enfer, c’est les autres. Este autêntico maná que se havia circunscrito apenas a este país imaginário que não chegava aos dez milhões de habitantes, já que do outro lado da fronteira se continuava a morrer com toda a normalidade, começara a intrigar a igreja católica, apostólica e romana (a ICAR), assim como demais teólogos, sem deixar de fora, claro, os filósofos pessimistas e os optimistas e até o próprio governo, que não sabia - como não sabe! - como responder à crise (parece que o espectro da impotência dos políticos já vem inscrita no genótipo...). A questão é de monta e merece reparo: que fazer, por exemplo, com aqueles que viessem a ser vítimas de um trágico acidente, passe o paradoxo? Que fazer com os da quarta idade, aqueles que estão alegremente confinados aos lares do feliz ocaso? Que fazer com aqueles que viessem a contrair doenças supostamente graves e letais? Que fazer, em suma, com aqueles que estavam, desde aquele primeiro dia de Janeiro, numa situação de morte adiada, espécie de vivos mortos? As questões não acabam aqui e poder-se-ia perguntar se seria justo – justo e humano –prolongar o sofrimento daqueles que se encontravam em fase terminal. Poder-se-ia interrogar sobre a forma como poderia sobreviver o sistema financeiro do país: a ausência de morte ao país significaria, claro está, a falência das Agências Funerárias (não desejam que ninguém morra, mas querem que o seu ofício corra…), o fim inglório das Companhias de Seguros (o seguro morreu de velho: tinha dezoito anos), o colapso da Segurança Social. Assim, e com o sofrimento insuportável dos moribundos, as pessoas acabaram, enfim, por encontrar uma forma genial de despistar a vida (ou melhor, de enganar a morte): começaram a atravessar as fronteiras do país, e, graças ao engenho e arte de que a humanidade sempre deu evidenciadas provas, aqueles que estavam às portas da morte conseguiam, enfim, obter sua passagem. Um mal, parece, nunca vem só. A solução encontrada é, em breve, explorada pelos maphiosos (“com ph para se distinguir dos outros…), uma organização que, com a complacência do governo, opera na clandestinidade e que se encarrega, a troco de avultadas somas, de se desfazer dos empecilhos que se encontrem eventualmente numa situação de morte adiada. A situação tornava-se, todavia, insustentável: morte desejada nunca é chegada. Foi, pois, com um misto de alívio e de curiosidade que a morte, quase oito meses depois, reapareceria, enviando uma carta à população, em que alertava todos, em geral, que, a partir de meia-noite daquele dia, voltaria a matar, mas com uma inovação metodológica à mistura: a referida carta, violeta, estabelecia um pacto com os habitantes do país, a saber, o pré-aviso de morte certa chegaria a todos sem excepção com uma semana de antecedência, para que os fatídicos candidatos pudessem arrumar as suas coisas… Contudo, este sistema verdadeiramente inovador de envio postal das cartas revelar-se-ia falível: é que há uma dela que teima em não chegar ao seu destino, na circunstância, um pacato violoncelista de quarenta e nove anos que vive solitariamente com o seu cão. Confusa, perplexa, aturdida com tal fenómeno, a morte (com letra minúscula, que não a Morte universal…) encarregar-se-á de investigar, por conta própria, a vida do importuno, e, para melhor executar a caritativa tarefa, adoptará uma forma humana (vai assistir, por exemplo, aos seus concertos, aluga um hotel na cidade, e acaba por o visitar no seu reduto…). Por fim, a morte apaixonar-se-á pelo músico, desfazer-se-á da famigerada carta de cor violeta, queimando-a com um “simples fósforo, ela que poderia desfazer o papel com olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos” (p. 214) e a fábula, curiosamente, acaba com a mesma frase de início. Em suma, a morte, a dos homens (conforme a taxonomia de Lineu), acaba por ceder às subtilezas do espírito e às súplicas do corpo. Eros venceu tânatos. “No dia seguinte ninguém morreu”. Nem admira. A morte existe (ou melhor, a morte mata) porque não é humana…
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