2009/07/08

O CRATILISMO SARAMAGUIANO

Neste breve excurso procurarei definir o cratilismo e a forma como a teoria exposta por Platão, em Crátilo, é reinterpretada por Saramago, designadamente no Ensaio Sobre a Cegueira e no Ensaio Sobre a Lucidez, cujas obras mais não são, a meu ver, do que o prolongamento temático – e discursivo – da tese primeira (a platónica).
Na secção subsequente e à luz dos princípios retóricos expostos por Fontanier (Les Figures du Discours, Flammarion, 1993), explicitarei algumas diferenças entre a metonímia e a sinédoque e, posteriormente, analisarei a forma como o narrador constrói o sistema de referência das personagens, uma espécie de grau zero da onomástica – de cujo edifício os antropónimos foram, aliás, significativamente excluídos.
Nesta matéria, o que pretendo demonstrar é que o processo de criação lexical dos nomes próprios, aparentemente desordenado, obedece, no fundo, a um esquema sintáctico bastante simples e rudimentar, a saber, um sintagma nominal e um modificador.
Por fim, e após uma breve resenha de algumas teorias do nome próprio supervenientes da filosofia da linguagem, proponho concluir que o acto de nomear e, em concreto, o nome próprio é um construído linguístico e obedece, em última análise, aos critérios definitórios de todos os outros signos, que, como se sabe, encerram uma natureza distintiva, constituem unidades discretas e, por fim, funcionam como operadores de legibilidade da trama textual, pelo que devem ser abordados no âmbito de uma linguística de texto, tanto mais que atravessam diagonalmente toda a narrativa.




0. O cratilismo
Hermógenes e Crátilo conversavam sobre a justeza dos nomes quando Sócrates se junta aos dois locutores. Crátilo, num primeiro momento, defende que os nomes são decalcados da natureza das coisas, enquanto Hermógenes argumenta que eles são, antes, o resultado de uma mera convenção.
A dado passo, este último orador (Hermógenes) pede a Sócrates para tomar parte na conversa que, após um momento de indefinição (o filósofo ateniense confessa-se incompetente na matéria…), decide discorrer com eles sobre o assunto. Assim, Sócrates começa por examinar a questão com Hermógenes, de quem discorda por entender que os nomes representam a essência das coisas; depois, tomando como interlocutor directo Crátilo, Sócrates faz-lhe ver que seria necessário restringir a sua teoria sobre os nomes e que deveria rever a sua tese do movimento universal (sobre a qual assentavam os seus pressupostos teoréticos), pois que poderia dar-se o caso de a mesma ser completamente falsa.
Por conseguinte, o vocábulo cratilismo tem origem no nome próprio (Crátilo), cuja teoria tem como pano de fundo o pressuposto de que a significação das palavras decorreria de uma relação natural e imitativa entre a coisa designada e o vocábulo que a designa e não de uma pura convenção: “Mas se os nomes primitivos devem ser representações das coisas, conheces tu algum melhor meio de conseguir este fim do que torná-los o mais possível semelhantes aos objectos que eles devem representam. Ou preferes o método preconizado por Hermógenes e muitos outros que pretendem que os nomes são puras convenções que representam os objectos?” (Platão - Crátilo, XL, 433b-433e).

1. O processo de criação onomástico

Vem isto a propósito do Ensaio sobre a Cegueira, cujo sistema de personagens não obedece ao princípio onomástico, tão caro, de resto, ao autor (cf. o processo de criação de Blimunda, por exemplo, pertencente a outro universo romanesco, no caso em apreço, ao Memorial do Convento). Aliás, diga-se de passagem que este procedimento potencia de per si toda uma rede de significações secundárias, mas postas eficazmente ao serviço das redes isotópicas primárias de uma determinada obra, produzindo, não raras vezes, efeitos estilísticos diversos e surpreendentes.
Assim, o leitor apercebe-se, desde as primeiras páginas do romance, de que o sistema de referência pessoal assenta no seu aspecto meramente funcional, configurando os respectivos organogramas, conforme representação infra:

GRUPO DOS INTERNADOS (7)

o primeiro cego
a mulher do médico
o médico
a mulher do primeiro cego
a mulher dos óculos escuros
o velho com a venda preta
o rapazinho estrábico

cujos traços distintos assentam num único processo definitório, a saber, a relação por contiguidade:

GRUPO DOS INTERNADOS
Identificação (intra)diegética / Tipo de relação

(a) o primeiro cego parte / todo (antonomásia)
(b) a mulher [do médico] parte / todo (metonímia)
(c) o médico parte / todo (antonomásia)
(d) a rapariga [dos óculos escuros] parte / todo (sinédoque)
(e) a mulher [do primeiro cego] parte / todo (metonímia)
(f) o velho [com a venda preta] parte / todo (sinédoque)
(g) o rapazinho [estrábico] parte / todo (sinédoque)

Note-se que a diferença que se deve estabelecer entre (i) a metonímia e (ii) a sinédoque é que, tal como sugere Fontanier (1993: 79-87) a metonímia assenta numa relação por correspondência, consistindo “dans la désignation d’un objet par le nom d’un autre objet qui fait comme lui un tout absolument à part, mais qui lui doit ou à qui il doit lui-même plus ou moins, ou pour son existence, ou pour sa manière d’être” (1077: 79). Isto significa que a (i) metonímia resulta num outro objecto com existência própria e autónoma (extensão), como se pode observar pelo diagrama infra:
(i) metonímia

objectoa objectob
objectoc

a mulher o médico a mulher do médico
[parte] [parte] [todo]


Em contrapartida, (ii) a sinédoque instaura uma relação de inclusão, na medida em que a parte faz parte integrante do conjunto considerado (compreensão), tal como se depreende da definição que Fontanier explicita nestes termos: “Les Tropes par connexion consistent dans la désignation d’un objet par le nom d’autre objet avec lequel il forme un ensemble, un tout, ou physique ou métaphysique, l’existence ou l’idée de l’un se trouvant comprise dans l’existence ou dans l’idée de l’autre” (1977: 87). Assim, (ii) terá uma configuração do género:

(ii) sinédoque
objecto1

o rapazinho estrábico
[todo]



Refira-se, todavia, que vários linguistas a percebem como um caso particular da metonímia e que outros ainda a ignoram olimpicamente, como é o caso de Jakobson. Para ser mais preciso, importa acrescentar que este linguista russo engloba a sinédoque na metonímia, que ele afirma manifestar uma relação de contiguidade (eixo sintagmático), ao passo que a metáfora, por oposição, revelaria uma relação de similaridade (eixo paradigmático).
Tal perspectiva parece-me, no entanto, pouco prudente, até porque a antonomásia parece ser, justamente, um caso particular de sinédoque, no caso em apreço, uma sinédoque de pessoa. Na realidade, o exemplo (c) pode ser glosado como (c1) um homem [que é] médico (c2) um homem médico [de profissão] e, como tal, pode ser incluído na configuração (ii), pois que me sirvo de uma parte do indivíduo [o exercício da medicina] para designar todo o conjunto [o homem que exerce a medicina], isto é, [o médico].
De resto, e voltando ao tema central desta secção, que se prende com o processo de criação do nome próprio, os exemplos não se ficam por aqui. Longe disso. Com efeito, o procedimento possui um grande rendimento na economia narrativa saramaguiana e funciona como um sistema de referência onomástico de grau zero, quer dizer, um sistema de patronímicos assente exclusivamente na construção anafórica da linguagem. Constate-se:
PERSONAGENS SECUNDÁRIAS/FIGURANTES
Identificação (intra)diegética / Tipo de relação

(h) o ladrão [de automóveis] parte / todo (metonímia)
(i) o ajudante [de farmácia] parte / todo (metonímia)
(j) o motorista [de táxi] parte / todo (metonímia)
(k) os dois polícias parte / todo (antonomásia)
(l) o capitão [dos ladrões] parte / todo (metonímia)
(m) o cego [da contabilidade] parte / todo (metonímia)
(n) o locutor parte / todo (antonomásia)
(o) a mulher [que disse [Aonde tu fores, eu irei]] parte / todo (sinédoque)
(p) a mulher [do isqueiro] parte / todo (metonímia)
(q) o cão [das lágrimas] parte / todo (sinédoque)
(r) a velha [do primeiro andar] parte / todo (metonímia)

Posto isto, percebe-se melhor a uniformidade do critério utilizado pelo narrador, cujo procedimento se pode reduzir ao esquema sintáctico N + Mod (Nome + Modificador), conforme se pode verificar pelo quadro que se segue:
GRUPO NOMINAL MODIFICADOR
(a) o primeiro [homem] cego
(b) a mulher do médico
(c) o [homem] médico
(d) a rapariga dos óculos escuros
(e) a mulher do primeiro cego
(f) o velho com a venda preta
(g) o rapazinho estrábico

(h) o ladrão de automóveis
(i) o ajudante de farmácia
(j) o motorista de táxi
(k) os dois [homens] Polícias
(l) o capitão dos ladrões
(m) o cego da contabilidade
(n) o locutor [da rádio]
(o) a mulher que disse Aonde tu fores, eu irei
(p) a mulher do isqueiro
(q) o cão das lágrimas
(r) a velha do primeiro andar

Objectar-se-á, por certo, que o exemplo (o) não deveria entrar neste paradigma, mas a relativa restritiva [que disse [Aonde tu fores, eu irei]], ou melhor, [que disse isso] comporta-se como um modificador (frásico) e, como tal, corrobora a simplicidade do processo de criação. Aliás, a restritiva, distingue-se da não-restritiva (apositiva), como muito bem notou Jackendoff, por se ocupar directamente do referente, isto é, por construir o próprio referente…

O mesmo processo ocorre no Ensaio Sobre a Lucidez, que mais não é do que o prolongamento diegético do Ensaio Sobre a Cegueira. Veja-se o organograma que se segue, relativo à Assembleia de voto número catorze:
ASSEMBLEIA DE VOTO n.º 14

o presidente


os delegados os vogais os suplentes

p.d.d. p.d.m. p.d.e

ou ainda estoutro, o do poder tentacular e opressivo:

O GOVERNO

o presidente

o Primeiro-ministro

o(s) ministro(s)


da defesa do interior da cultura da justiça etc.

Note-se, por outro lado, que a configuração que se acaba de esboçar (da qual se eliminaram os indivíduos que não fazem parte directa da instituição, como por exemplo, “a mulher do presidente” ou “a mulher do delegado do partido da esquerda”, etc.), para além de antecipar, desde já, a votação final da eleição, decalca as representações mentais de uma determinada sociedade (ocidental) e de um sistema ideológico-cultural (superveniente do hemiciclo da Assembleia Constituinte da Revolução francesa…).
Ora, poder-se-ia pensar que o facto se prenderia exclusivamente com o carácter burocrático e funcionalista dos intervenientes, cujos papéis seriam bem negligenciáveis e despersonalizados e que, no fundo, o processo se viria inscrever no eixo axiológico da contemporaneidade, e, dessa, forma, decalcaria as representações mentais do poder – o qual é sentido como algo de interino, de efémero e de ilusório. Em suma, os homens passam – as instituições perduram ad aeturnum. Mas o procedimento, curiosamente, estende-se a toda a trama diegética, mesmo ao conjunto de personagens que são da simpatia do narrador, como é o caso – e os exemplos abundam – do grupo dos sete elementos subversivos, aqueles que constam da fotografia tirada aquando da cegueira branca havida há quatro anos (neste sentido, o romance assume metonimicamente a diegese do Ensaio sobre a Cegueira…) ou dos elementos da expedição executada a mando do ministro do interior. Atente-se no organograma seguinte:

GRUPO SUBSERSIVO (OS BRANCOSOS)

O primeiro cego/ o denunciante
a mulher do médico
o oftalmologista
a mulher do autor da carta
a prostituta/ a rapariga dos óculos escuros
o velho com a venda nos olhos
o garoto estrábico

cujos traços distintivos assentam no processo definitório referido acima:

Identificação diegética / Tipo de relação

o primeiro cego parte / todo (sinédoque)
a mulher do médico parte / todo (metonímia)
o oftalmologista parte / todo (antonomásia)
a mulher do autor da carta parte / todo (metonímia)
o denunciante parte / todo (antonomásia)
a prostituta parte / todo (antonomásia)
o velho com a venda nos olhos parte / todo (sinédoque)
o garoto estrábico parte / todo (sinédoque)





© Manuel Fontão

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