2009/07/04

O CÃO DAS LÁGRIMAS

0. Depoimento
"Se me falarem sobre a morte digo: sim, já sei, estive à porta. Não cheguei a entrar, mas estive à porta. Aceitei essa probabilidade com uma serenidade enorme. Serenidade que conservo hoje. De certa forma, diria que me fez bem aquela doença. Relativizou tudo. Estou a escrever um livro e não quero morrer antes de acabá-lo. Uma das minhas preocupações quando estava entre cá e lá, numa espécie de limbo em que a consciência de mim mesmo não era absoluta, era a de que talvez não pudesse acabar o livro. Afinal, ainda hoje escrevi mais uma página. Lá para Agosto estará terminado. Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas, no Ensaio sobre a Cegueira. É um dos momentos mais belos que fiz até hoje enquanto escritor. Se no futuro puder ser recordado como "aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher", ficarei contente. Se alguém procurar naquilo que eu tenho escrito uma certa mensagem, atrevo-me pela primeira vez a dizer que essa mensagem está aí. A compaixão dessa mulher que tenta salvar o grupo em que está o seu marido é equivalente à compaixão daquele cão que se aproxima de um ser humano em desespero e que, não podendo fazer mais nada, lhe bebe as lágrimas."
José Saramago, in Público, 15.Junho de 2008

1. Cão como nós
É sobejamente conhecida a predilecção de José Saramago pelo episódio do cão das lágrimas, um cão que, como tal como tantos outros, erra de rua em rua, no meio de cadáveres, de imundície e de horror. Embora pouco relevante no plano discursivo da obra Ensaio sobre a Cegueira, o cão surge quando a mulher do médico, à saída do manicómio onde estava internada com o seu marido, chorava de dor e de cansaço. “Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçadas a ele.” (Ensaio sobre a Cegueira, p. 226, Caminho)

Percebe-se o escopo deste lance: numa cidade ao abandono, entregue a si própria, o cão – símbolo dos afectos e da fidelidade ao homem – entra, assim, numa dialéctica secular em que as pessoas, ao perderam toda a dignidade humana, tendem para a animalidade (os exemplos, infelizmente abundam na História Universal…), ao passo que os animais, esses, tendem a substituir-se ao Homem.

Não obstante o apego do narrador – e, poder-se-ia acrescentar, do próprio autor – a este espécime canino, com hábitos e maneiras assaz civilizadas (ele não devora, como tantos outros, os cadáveres que se multiplicam nas ruas, aceita com estoicismo a fome que o atormenta, age com recato no momento de fazer as suas necessidades fisiológicas, etc.), Constante acaba por morrer às mãos do homem da gravata azul com pintas brancas e a sua morte está indissociavelmente ligada ao seu amor canino pela sua dona, a mulher do médico, ela também vítima mortal das urdiduras maquiavélicas do ministro do interior. “O cão veio a correr lá de dentro, fareja e lambe a cara da dona, depois estica o pescoço para o alto e solta um uivo arrepiante que outro tiro imediatamente corta.” (Ensaio sobre a Lucidez, p. 328, Caminho)
O eufemismo da sua morte denuncia, com efeito, a simpatia do narrador pelo cão – que é o único objecto que tem direito, no universo romanesco, a um nome próprio, a cujo estatuto nem os humanos conseguem ascender. Assim, o cão das lágrimas, imolado pelo sacrifício, assume uma vital importância na economia da obra: ele não poderia viver numa sociedade pautada pela intriga, pela injustiça e pela crueldade. Desse modo, neste mundo-cão é a sociedade que fica irremediavelmente sem afectos, é a sociedade que fica vazia de sentimentos e de valores morais, tal como o comissário, alter-ego do narrador, morreu pela verdade…




© Manuel Fontão

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