Naquela manhã cinzenta de Maio de 1980, António da Rosa, empresário e engenheiro civil, sentia-se inexplicavelmente um outro homem, sentia-se capaz de revolver montanhas, apesar de contar já os seus quarenta e seis anos. Era uma sensação nova, de robustez, de firmeza de carácter e de força que lhe invadia a alma e lhe fortalecia a mente.
– D. Albertina? Bom dia! Sou eu, o Toninho…
– Olá, Sr. Engenheiro! Como vai? Depois, na semana passada… Já não o encontrei à saída…
– Estava com alguma pressa…– Mas correu tudo bem, não foi? Quer dizer…
– A fazenda saiu-me um bocado… um bocado… enfim um tanto ou quanto desmaiada, sabe…
– Não me diga! Olhe que não tenho recebido queixas do tecido…
– Talvez esteja a precisar de mudar de estilo… Estava a pensar justamente em passar por aí hoje… À tardinha. Lá pelas quatro horas. Que me diz?...
– Às suas ordens, Sr. Engenheiro. Que quer então que lhe prepare?
– Qualquer coisa de mais… olhe qualquer coisa de mais moderno, compreende? Com mais cor. Algo de mais escuro… Com mais contraste, percebe?
– Vem mesmo a calhar. Ontem mesmo, recebi artigo novo. Uma longa história… Depois contar-lha-ei… É uma bela fazenda, acredite! Sem defeito de fabrico...
– Fala a comerciante ou a mulher?
– As duas, Sr. Engenheiro. Falam as duas… Para lhe ser franca, já nem as distingo lá muito bem! Mas olhe que sei do que estou a falar!
– Veremos isso depois, D. Albertina. Veremos! Até logo!
O homem pousou o auscultador, debruçou-se sobre a sua secretária de mogno australiano e passou a mão pesada e carnuda pelo rosto. Quedou-se, depois, por breves instantes, no seu colega de trabalho, que continuava absorto na sua árdua tarefa e aproximou-se, a passos lentos mas decididos, da grande vidraça que dava para a rua.
Sentia-se incompreensivelmente inspirado. Sentia-se novo. Dir-se-ia que se tinha reencontrado consigo próprio, com os seus projectos, com as suas criações artísticas. Oh como ele se arrependera de não ter escolhido as Belas-Artes, um curso que lhe teria permitido expandir as suas capacidades inatas, um curso que lhe teria possibilitado dar largas ao seu poder de efabulação, à sua imaginação, ao sonho. Oh sim! O desenho, a pintura, o simples traço a carvão – eis o seu ponto fraco, eis o seu mundo próprio e que nada tinha a ver com as tarefas do momento em que a régua, o esquadro, o compasso o obrigavam a meter na linha a sua fantasia, os seus dotes de artista. Como é que tudo se passara? Como é que ele tinha desembocado numa profissão tão pouco consentânea com as suas propensões naturais? Ora, como quase toda a gente e segundo o velho preceito: primeiro estranha-se, depois entranha-se. E depois, o pragmatismo falara mais alto, as necessidades económicas ajudaram-no a traçar o destino, o atraso do país ditara-lhe irrevogavelmente a sua carreira profissional. Enfim, tropeçara naquele emaranhado de riscos, de plantas, de esquemas rigorosos, de linhas superiormente disciplinadas. O homem fizera concessões ao profissional, mas o conflito, esse, latente, profundo, estava lá, algures, pronto a irromper. Mas não passava de uma guerra surda, inaudível, que chegava à superfície já quase sem forças para se afirmar.
E depois, que importava, afinal de contas, tudo isso? Estava ali no conforto do seu escritório, uma sala ampla, sobriamente mobilada, num nono andar de um edifício à Boavista e com uma visão panorâmica verdadeiramente invejável, um motivo que fazia lembrar os quadros de Monet.
O longe do mar calmo esverdeado recortado aqui e ali por pequenos pontos fulvos uma massa compacta que se confundia com a linha instável do horizonte depois uma outra massa etérea azul-ferrete igualmente a perder de vista e lá em baixo na mesma direcção uma mancha dourada enorme extravagante de areia a convidar lascivamente ao lazer ao far niente à dulce vita num outro ângulo lá estava a longa marginal que se enlaçava que se enrolava nos recortes naturais como que uma faixa à volta da cintura como que num apelo constante e eterno ao enamoramento ao acasalamento à cópula e a brisa essa aragem fresca perfumada que transportava para dentro da cidade o cheiro da maresia e do sargaço o som das vozes dos marítimos o burburinho da fauna o choque de ancinhos a bater violentamente nos foeiros dos carros de bois os sargaceiros que entoavam cânticos ao oceano abstracto depois numa linha imaginária colocada assimptotamente a meia distância a profusão dos telhados interminavelmente colocados em cascata a orgia das varandas em risco de exclusão em debandada e os varandins escandalizados e em transe a profusão das chaminés que fumegavam à hora certa e outros artefactos os microclimas aerotransportados a cidade esventrada escondida do transeunte que passa distraidamente pelas frontarias lavadas dos edifícios a cidade em queda livre numa vertigem desenfreada a visão apocalíptica assustadora terrível do mundo exterior depois num plano mais aproximado uma fila irregular de telhados imbricados uns nos outros sem contornos definidos e numa nesga a única a rua lá em baixo soalheira apinhada de gente e nesse recorte nesse pormenor a silhueta de uma mulher uma jovem aí de vinte e dois talvez vinte e quatro estatura média rosto trigueiro marcadamente trigueiro porte atlético desenvolta cabelos negros impôs por breves momentos a sua presença atravessou pautadamente a rua e desapareceu por detrás do emaranhado de betão e de ferralha das ruelas estreitas ziguezagueantes inextricáveis que escondem a miséria a indigência o tumulto de estendais que ocultam o submundo do vício e do crime e que barram por completo os olhares indiscretos a contemplação do objecto a cidade outra vez as casas as ruas as pessoas a imagem de uma forma geométrica irregular um instantâneo uma particularidade que assume de per si a diferença o essencial um olhar que se crava no fundo da memória e que se funde se confunde com o próprio sonho a impressão de que aquilo que se vê já foi visto já foi percebido já faz parte de um passado que se evoca sim a impossibilidade de se delimitar com nitidez e rigor científico a sua fonte a incapacidade de se demarcar o real da sua representação quer dizer a imagem que se forma o detalhe que fica a meia distância entre o quadro a tela a vivência de cada um e a sua memória a incerteza de tudo isto a angústia que entra noite adentro na casa das máquinas da velha embarcação o silêncio do mar que antecipa a tempestade ao som dos tiquetaques o elemento propulsor a força das águas em movimento oscilatório sinuoso a intensidade da ondas que rebentam no areal e se transformam em poesia
– Meio-dia. Vou descer...
– Já? – balbuciou António da Rosa, perdido na sua contemplação. Vou contigo.
– O projecto do Passal avança…
– Mal – rosnou António.
Cá fora o sol brilhava. A cidade tinha recuperado os seus tons habituais, quentes e amplos, característicos das cidades litorais, as pessoas acotovelavam-se, a vida fervilhava em cada esquina. Um rapaz, jovem ainda, vendia rosas a quem passava. Outros pregões ressoavam no ar quente e húmido. Uma rapariga do outro lado do passeio saudava efusivamente alguém das suas relações. O homem do bazar surgia à porta sem motivo aparente.
– Onde vamos?
– Ao Matos. Que dizes?
– É uma ideia… Já estou cansado das ementas do Guedes…
Os dois homens caminhavam rua acima em direcção ao primeiro cruzamento. O Matos, o restaurante, ficava no ângulo das duas ruas. António parecia inquieto e ansioso. Dentro dele rugiam ainda as palavras de D. Albertina e a questão do novo artigo “É uma bela fazenda, acredite! Sem defeito...”. Acreditava, sim! D. Albertina, uma matrona com ares de personagem apostólica e romana, sabia tudo da sua arte, conhecia por dentro todos os meandros do negócio, farejava por assim dizer todos os lados possíveis e imaginários da mercadoria para melhor arrematar o seu valor, tal como o cão vasculha um osso para dele tirar o melhor proveito. A mulher era competente na sua tarefa: tinha acumulado uma vasta experiência no ramo, tinha adquirido todo um conjunto de pequenos truques, uma série de grandes golpes e a maior parte da quota de mercado que havia conquistado tinha sido fechada por ajuste directo e à estopada graças, não apenas à sua grandiloquência, que desarmava quem a ouvia, mas também porque fazia uso de uma grande perspicácia e fineza na sua estratégia de aproximação ao negócio. D. Albertina visava, sobretudo, o lucro, o dinheiro. Tudo o resto, dizia a velhaca, era poesia que não cabia na sua maneira de ser…
– É um bico-de-obra aquele projecto, Toninho…
– Se não é Aníbal! Temos ali pano para mangas!
– E se requerêssemos o alargamento do prazo de entrega? Sempre seria uma solução provisória…
– Não sei. Sabes que não há nenhuma cláusula no contrato que contemple tal situação…
– Haveria o risco de indemnização, por certo!
– É óbvio…
– Havemos de encontrar uma saída. Nem que trabalhemos vinte e quatro horas por dia…
Mas António não o ouvia. Desde aquela manhã de Maio de 1980, ele sentia-se verdadeiramente um outro homem. Pressentia, sobretudo, que a sua vida, quer dizer, aquele somatório de dias tristonhos e obtusos, tinha finalmente ficado para trás, tudo aquilo tinha mudado. Dir-se-ia que havia algures na sua personalidade um espaço vazio que havia sido ocupado, um buraco que fora preenchido, um ponto negro onde a luz tinha decididamente penetrado. E todo aquele bem-estar, toda aquela sensação de novidade que lhe vinha agora à superfície, mais não era do que a tradução linear desse enigma profundo, insondável, imperscrutável. Mas que sabemos nós de nós próprios? Onde começa a motivação dos nossos actos? E porque agimos de uma determinada maneira – e não de outra?
António não sabia. (...)
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© Manuel Fontão
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