2011/12/02

Dura lex, sed lex

Querido Afonsinho,

Como já deves ter ouvido falar, até porque vozes de burro talvez tivessem, finalmente, começado a chegar ao reino dos céus (apenas, suponho eu, para quebrar a monotonia do azul bebé…), o bravo povo luso, a quem deste origem e fama e terra farta e o diabo a quatro, é, sem dúvida, um povo de invejosos. Não, Afonso, não se trata de uma queixa: é uma mera constatação, que eu não sou pessoa para andar por aí a dizer mal dos outros. Aliás, a delação constitui um outro traço da nossa psicologia coletiva, na justa mesura em que preenchemos a nossa vida coletiva e, vamos lá, a outra, a individual, a dizer mal do nosso vizinho do lado. Trata-se mesmo de um desporto nacional, acredita. Mas isso é outra história, que ficará, provavelmente, para uma futura comunicação.

Pois bem, Afonsinho, nós, portugueses do século XXI, suportamos muito mal a prosperidade e a felicidade de outrem, sobretudo, se é nosso conterrâneo e se vive paredes meias connosco. Sinceramente, meu ilustre e real amigo, não sei se este sentimento odioso e pestilento se prende – ou não – com aquilo que os psicanalistas designam de inveja do pénis, quer dizer, uma espécie de síndroma, que, no essencial, assenta num hipotético sentimento de lesão, experimentado pelas meninas, claro está, em relação aos meninos, quando, ainda na eufórica fase de descoberta, as tais meninas percebem, infelizmente, que os tais meninos têm pénis e que elas, de meninas te falo, não têm. Eu, cá por mim, acho que este tipo de coisas é, de facto, traumatizante, e, de resto, não me custa nada admitir que tal estado de coisas, iníquo e injusto, porque injusto e iníquo, pode provocar, na futura mulher, um terrível sentimento de diferença, uma espécie de complexo de castração, apenas atenuado com o desejo de (não) ter filhos. E, repara, meu querido Afonso, que isso explica muito o decréscimo da taxa de natalidade nas sociedades assistidas e assistencialistas – como são aquelas em que nós, homens e mulheres da pós-modernidade, vivemos, ou melhor, das quais não podemos fugir...

Mas onde estão os exemplos deste mui tresloucado introito? Oh meu caro, por quem sois!... Primeiro, e para provar que se trata de um traço tão português coetâneo quanto provecto, basta pensar na história da fundação do país, que, como muito bem sabes e pour cause, está ferida de morte desde o seu começo. A que é que me refiro? Ora, não me faças ouvidos de mercador, meu maroto, pois que o teu próprio matricídio terá sido introjetado, e, posteriormente, projetado por todos os portugueses nutridos no e pelo mau seio. Oh sim! Dir-me-ás que quem nasce torno dificilmente se virá a endireitar. E eu, teu humilde servidor, digo-te mais: com papas e bolos se enganam os tolos. Olha, pois, o exemplo do nosso grande Afonso de Albuquerque, cujas incursões no Oriente nunca terão sido igualadas. Na verdade, meu caro Afonso, com um pequeno conjunto de homens, o bravo militar, que os do Mindelo depois haveriam de imitar, venceu um conjunto de potências armadas, conquistou poderosos reinos, como por exemplo, Ormuz, Goa e Malaca. Concede-me, meu caro, este magro juízo de valor: era um homem dotado de um inquebrantável espírito de justiça, sempre mui bondoso, sempre mui piadoso para com os pobres e sempre mui paciente para suportar os sofrimentos que constantemente o assaltavam. Porém, e como muito bem sabes, sofreu do mal inveja, traduzido, na circunstância, pelo desprezo por parte de D. Manuel, teu sucessor na linha dinástica de antão... e cujas barbas não tinham comparança com as do grande governador das Índias.

Pronto, meu Afonsinho, pediste-me esclarecimentos adicionais, apoiados em provas históricas, em documentos históricos, providos de valor histórico, e, claro, eu não me podia furtar a tal exercício, tal é a profusão de exemplos que desfilam na minha depauperada memória. Mas, meu querido Afonso, encerremos o capítulo, ou melhor, prolonguemo-lo até aos nossos dias, que este país não é para velhos, muito menos para os do Restelo...

Eis, pois, a questão de fundo: então não é que o nosso benquisto Pedro Mota Soares, o Ministro Interino da Solidariedade Social, e digo interino, meu caro, porque, hoje em dia, os homens da realpolitik se revezam entre si, quer dizer, ora são chamados ao nobre e mui leal serviço público, por exemplo, um punhado de homens ditos socialistas, ora são retirados de um lote ditos democratas, se bem que, na minha singela opinião, apenas se mude a nomenclatura, pois, quanto ao resto, é sempre o povo chamado a pagar a fatura dos erros de todos estes excelsos servidores do estado. Pois bem, como estava a dizer-te, o tal Mota, coitado, anda nas bocas do mundo, que é como quem diz, entrou definitivamente para o anedotário das figuras públicas, só porque – imagina! – trocou um mísero veículo motorizado por um outro, bem mais potente e confortável, convenhamos, com umas largas centenas de cavalos amalgamados numa caixa cilíndrica! Oh Afonsinho! A celeuma que isto tem levantado!... O chorrilho de críticas que tenho lido nos jornais!... Um horror!... Na realidade, dizem uns que o homem roeu a corda, sem que se perceba muito bem se querem significar a corda do enforcado ou a roda pedaleira. Outros avançam que a mota foi apenas um engodo para atrair votos e votantes, e, imagina, citam mesmo os vigilantes da Quercus, que é uma gente esquisita sempre pronta a morder os calcanhares ao verdadeiro motor do progresso. Dizem outros, ainda, que o Mota, o homem, desaprendeu de andar de mota. Claro que estes últimos, como calcularás, partem do pressuposto de que as competências básicas se podem, irremediavelmente, perder. Mas, meu querido Afonsinho, tenho para mim que andar de mota é um pouco como andar de bicicleta: uma vez adquirida a competência, jamais se perderá, como aliás, determina - e muito bem - uma certa teoria da aprendizagem, muito à la page nos tempos que correm e que as más-línguas, que sempre as houve e as haverá, apelidam de eduquês. Enfim – passemos. Que os exemplos abundam e o tempo escasseia...

Também te queria, meu Afonso querido, pôr ao corrente de um outro exemplo, com valor de exemplum magnum (perdoa-me a tautologia, mas ele há coisas que merecem ser reforçadas…). Falo-te da segunda figura pública mais importante que a república portuguesa conseguiu, até à data, engendrar. Caramba, Afonsinho! Também! Estás sempre a interromper-me! Assim, não consigo, sequer, alinhavar o meu etéreo pensamento! Bolas! Agora começo a perceber as sucessivas crises de nervos que deves ter despertado na infiel moirama. Decerto que isso deve ter contribuído – e muito – para a debandada mourisca em Leiria. E em Santarém. E em Lisboa. Mas, enfim, lá vai a resposta, em guisa de parênteses, que mais não é do que um atalho: não, Portugal não existe enquanto nome, minha alteza real. Não tem substância, meu caro. Trata-se, agora, de um país de natureza puramente relacional, apenas presente na sua força derivacional, isto é, adjetival. Com efeito, hoje, dizemos república portuguesa, estado português, dívida soberana portuguesa. etc. Estás satisfeito com a curta e mui preclara explicação? Ah! Não, meu Afonso bonito, essa da dívida soberana terá de ficar para outra ocasião, que a matéria é complexa, e, de momento, não tenho mais fazenda…

Pois bem, como estava a (tentar) dizer-te, o segundo mais importante magistrado da nação lusa, uma senhora, imagina, tem andado aí pela imprensa nacional e internacional a lamentar-se de ingratidão, que é a outra face da moeda do mal de inveja de que te falava acima. E não sem razão, meu mui nobre e leal amigo, pois que a também mui nobre e leal senhora, a primeira em exercício (o que diz muito da evolução da mulher ao longo da história, ou, se quiseres, da involução do homem…), prescindiu do seu soldo ao serviço do povo. Estás a ver que, afinal de contas, o altruísmo não é, na nossa madre pátria, uma palavra vã. Estás a ver como ainda temos exemplos salutares da salutar forma de estar ao serviço da nação. Ah! Afonsinho! Mete dó, acredita, ver a maneira injusta e indigna como a rica senhora tem sido, indigna e injustamente, insultada na praça pública! Os portugueses são, de facto, muito estranhos, como estranha é a forma como denigrem os seus legítimos representantes! Aliás, não sei para que é que elegem os seus órgãos máximos, nas urnas (sim, é um empréstimo interno… por extensão semântica), se, depois, assomam à varanda da sua amargura, com um punhado de pedras na consciência, prontos a lapidar o bom nome e a reputação dos eleitos do povo. Ó Afonso diz-me se isto não é uma desfaçatez! Diz-me se isto não é de bradar aos céus! Diz-me se isto não configura um caso de abuso de linguagem! Com efeito, insinuar assim, de forma tão irresponsável e inócua, o direito de alguém usufruir, não apenas dos seus direitos legais, mas também dos consuetudinários!... Porque, meu caro Afonsinho, está escrito, em forma de lei redonda e bem desenhada, quer dizer, em capitulares merovíngíos e carolíngios, que a nossa mui querida Assunção Esteves, eis o seu nome, porventura bizarro como bizarra é a sua tomada de posição nesta matéria, pois bem, está escrito preto no branco e branco no preto que a nossa sumidade parlamentar se poderia reformar após dez anos de trabalho intenso e aturado no dito Tribunal Constitucional, pois que quem trabalha para estas altas instâncias acaba, bom grado ou malgrado, por produzir, sempre e invariavelmente, trabalhos aturados e intensos. Porque, em definitivo, meu caro - e é bom que percebas esta lógica elementar - tem sido uma prática costumeira dos políticos da nossa era exercerem tal requisito, aliás, sem qualquer exceção, o que diz muito do caráter useiro e vezeiro da justa medida, e, como tal, da legitimidade do direito adquirido...

E depois, Afonsinho, dez anos de trabalho árduo, extenuante, contínuo (oiço dizer, por exemplo, que os senhores curandeiros do Tribunal Constitucional trabalham doze, dezasseis horas a fio, sete dias por semana…. enfim, um flagelo apenas comparado às tarefas hercúleas!), dez anos de penosos trabalhos, dizia, não são dez meses, nem dez dias, meu caro Afonso. Aliás, uma coisa é falar, por exemplo, de um jardineiro, que, para cortar a relva, mais não tem do que ligar um botão elétrico, o da máquina claro, para que o seu trabalho apareça feito. Do mesmo modo, não se pode comparar a erudita tarefa de um excelso jurisconsulto, ainda para mais, de um tribunal da especialidade, com um simples agricultor, que, para lavrar a sua seara, apenas necessita de se sentar na máquina agrícola... e upa! Assim, só por um raciocínio especioso, e, vamos lá, mafioso, se poderá invejar a reforma dourada e choruda da Assunção Esteves aos quarenta e dois anos, ao passo que o jardineiro e o agricultor, esses, podem muito bem continuar a cortar relva excedente e a lavrar campos incultos até aos sessenta e cinco anos, não achas? Enfim, como já deves ter percebido, cada macaco no seu galho e os escolhos de um jurista são incomensuravelmente mais espinhosos do que os do leigo.

Meu querido Afonso, os bravos lusos contemporâneos deixaram de se orientar, há muito, pela luz da razão e estão, agora, a braços com uma grave doença, a saber, a suspeita. Com efeito, o meu vizinho está sob suspeita, e, ao mínimo sinal de riqueza externa, será executado pela Agência Nacional de Impostos. As pequenas e médias empresas estão sob suspeita, e, ao menor sinal de lucro excessivo, serão denunciadas por posição dominante, e, consequentemente, executadas pela Agência Nacional de Impostos. Os políticos, inclusive, os da Agência Nacional Nacional de Impostos, estão sob suspeita, e, coitados, ao menor sinal de crise, veem questionados os seus magros salários (que já não se mede em miríficas quantidades de sal, mas numa moeda – o euro – com um valor facial sujeito às flutuações de mercado e ao humor de alguns políticos ressabiados...). Pois bem, meu caro Afonso, a tal Assunção Esteves, que, para ofuscar os seus colegas parlamentares, até oxigenou, recentemente, a sua farta cabeleira, está, definitivamente, debaixo de fogo, devido à sua pensão vitalícia, cujo valor - imagina! - fica aquém de uns os míseros sete mil e quinhentos euros. Repito: menos de sete mil e quinhentos euros! Uma míngua, ó Afonsinho, sobretudo se tivermos em conta os seus préstimos relevantes à nação lusa. De resto, não sei como é que uma Presidente de um Parlamento, ainda por cima português, consegue sobreviver com tais parcos recursos financeiros. Sinceramente, não compreendo! E olha que tenho gasto horas e horas a tentar entender o enigma! Na verdade, achas que a pobre senhora, coitada, conseguirá manter o seu status quo, as viagens a Bruxelas, uma fugida a Londres ou às Seychelles, se, por acaso, não tiver acesso a eventuais ajudas de custo, que são, no fundo, pequenas somas, de resto irrisórias, que nem sequer cobrem o desgaste das solas dos sapatos? Achas mesmo que o reino, agora transformado numa verdadeira república das bananas, está a tratar condignamente os seus máximos representantes, e, no caso em apreço, uma veneranda magistrada, que estará, em termos de cargo e de importância, ao nível do teu tesoureiro mor? Diz-me, pois, se os lusos de agora estão à altura das circunstâncias! E, enquanto aguardo, serenamente, a tua resposta, espero, com toda a sinceridade, que a pobre senhora não morra de fome, como de resto, tem sucedido com outras personagens igualmente prestigiadas da nossa história, a começar pelo sanhudo Luís Vaz de Camões. Ou, para mergulhar no quotidiano comezinho, com o nosso Duarte Pio de Bragança, que a república conseguiu calar... a troco de nada.

O teu mui leal e e mui fiel servidor,

O Manezinho da Urzelina*

* Cronista lusodescendente, ex-combatente das pequenas e médias causas, ex-republicano semiconvicto, ex-sem-abrigo, com residência provisória em local incerto, para fugir à máquina trituradora do Sr. Gaspar, responsável pela Agência Nacional dos Impostos.
© Manuel Fontão

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