2011/11/29

Multiculturalismo e plurilinguismo

A palavra multiculturalismo é, no mínimo, ambígua e possui, pelo menos, dois sentidos bem diferentes. Numa primeira aceção, o multiculturalismo encerra um sentido marcadamente descritivo [1] , na medida em que se refere a um facto da vida humana e social, caracterizado pela diversidade cultural étnica, religiosa, etc., subjacente ao tecido social na sua totalidade. Assim, e para dar um exemplo concreto, pode afirmar-se que o cosmopolitismo de qualquer grande cidade da Europa ou do continente americano oculta fenómenos eminentemente multiculturais. Todavia, existe um segundo sentido, prescritivo, que designa, na sua essência, as políticas de reconhecimento da identidade pessoal e do exercício de uma cidadania diferenciada.
Claro que estes pacotes legislativos, não obstante ser feitos em nome das minorias étnicas (a maior parte das vezes, à pressa e ao sabor das modas etnológicas...), visam, na minha opinião, e em primeira instância, justificar, de forma mais ou menos autotélica, o caráter democrático das sociedades, quer dizer, os seus valores alegadamente morais, os seus códigos de pseudojustiça social, pelo que, assim entendidos, os referidos documentos legais perpetuam, tão-somente, a boa consciência burguesa e, em última análise, não escapam a um certo etnocentrismo [2], quiçá, a um certo sentimento xenófobo.
Em suma, a diversidade linguística dos sistemas de ensino nacionais não está – como deveria – ao serviço da neutralidade ideológica e cultural [3]. Longe disso. É imposta de cima para baixo. E tem força de lei. Nesta perspetiva, a prática trai os pressupostos de partida, segundo os quais todas as culturas teriam o mesmo valor, e, consequentemente, mereceriam o mesmo tratamento e a mesma atenção. Ora, tal não acontece, a meu ver, pelo que a repressão linguística dos grupos minoritários continua tão acesa como nos idos das fundações das nacionalidades. E, destarte, é o relativismo linguístico [4] que está – como sempre esteve – em causa. É a negação velada de uma verdade objetiva decorrente de uma cultura outra. E, todavia, a cultura é – deveria ser – a faculdade de perceber diferenças.

Por outro lado, a noção de plurilinguismo, decorre, direta ou indiretamente, das competências de intercompreensão e de comunicação intercultural. No fundo, trata-se de um conceito que, para além do seu valor funcional, assenta, sobretudo, na necessidade de dar resposta à diversidade linguística (e cultural...) e de comunicar numa sociedade que é, cada vez mais, multilingue e multicultural. Por outras palavras, o plurilinguismo comporta uma dimensão intercultural, que, na prática, se traduz pela interação e/ou mediação (socio)comunicativa. Deste modo, a educação, em matérias de línguas, constitui-se, sobretudo, como um espaço privilegiado do objetivos políticos consignados para a cidadania democrática.
Note-se, pois, que a definição do conceito (plurilinguismo) acentua o facto de que, à medida que a experiência pessoal de um indivíduo no seu contexto cultural se expande, da língua falada em casa para a sociedade em geral, e, depois, para as línguas de outros povos (aprendidas na escola, na universidade ou por experiência direta), essas línguas e culturas não ficam armazenadas em compartimentos mentais rigorosamente separados; pelo contrário, constrói-se uma competência comunicativa, para a qual contribuem todo o conhecimento e toda a experiência das línguas e na qual as línguas se interrelacionam e interagem (2001: 23).
De resto, a competência plurilingue e pluricultural é definida pelo QECR (2001) como uma competência complexa e compósita que permite aos utilizadores da língua, enquanto atores sociais, participar ativamente em interacções comunicativas assentes no conceito-chave de interculturalidade: a competência plurilingue e pluricultural é a capacidade para utilizar as línguas para comunicar na interação cultural, na qual o indivíduo, na sua qualidade de ator social, possui proficiência em várias línguas, em diferentes níveis, bem como experiência de várias culturas. Considera-se que não se trata da sobreposição ou justaposição de competências distintas, mas sim de uma competência complexa ou até compósita à qual o utilizador pode recorrer (2001: 231).


Bibliografia essencial

Conselho da Europa (2001) Quadro Europeu Comum de Referência. Porto: Edições Asa.
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[1] Parece-me que em Portugal (pelo menos…) quando se fala de multiculturalismo apenas se tem em mente o caráter descritivo do fenómeno e muito raramente se discute a orientação etnocêntrica das políticas oficiais para a matéria. Assim, falta explicar, por exemplo, as razões ideológicas que levaram o sistema de ensino português a alargar a oferta linguística ao espanhol, ao alemão, ao francês – em detrimento de outras línguas (cf. a situação linguística da língua mirandesa, a segunda língua oficial portuguesa, mas que, na prática, permanece confinada à região epónima). E isto para não falar da situação linguística do povo cigano, que se vê invariavelmente constrangido ao fenómeno da aculturação… 
[2] Prova disso mesmo, são as provas de língua para a aquisição da nacionalidade.
[3] De resto, o QECR (2001) não se debruça – como não poderia – sobre estas matérias. Documento descritivo e positivista, como convém, apenas refere que “Pode chegar-se ao multiculturalismo simplesmente diversificando a oferta de línguas numa escola ou num sistema de ensino específicos, incentivando os alunos a aprender mais do que uma língua estrangeira, ou, ainda, diminuindo a posição dominante do inglês na comunicação internacional.” (2001: 23).  Mas, ao crítico, pede-se-lhe, como é óbvio, que questione as variáveis fornecidas…
[4] Em linguística, o relativismo prende-se com o facto de cada comunidade perceber – e modelar – a linguagem segundo o seu contexto imediato e as suas necessidades existenciais. Assim, o esquimó, por exemplo, perceberá, por razões óbvias, uma gradação de qualidades de neve (ao passo que um habitante dos trópicos apenas registará o fenómeno bruto), do mesmo modo que um açoriano, mercê da sua ligação às atividades marítimas, enxergará vários estádios do mar (lá onde um continental apenas notará vagamente uma alteração do seu estado normal, na circunstância, a maior ou menor acalmia).
© Manuel Fontão

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