2011/11/19

Classificação e funcionamento interno das trocas verbais

1. Classificação das trocas verbais

Goffman divide as trocas verbais em duas categorias distintas, a saber, as trocas confirmativas, que servem, no fundo, para estabelecer e/ou para confirmar a relação interpessoal e as trocas reparadoras que visam a neutralização dos efeitos negativos de uma qualquer ofensa (i. e., uma ameaça) à face do interlocutor.


1.1. O trabalho sobre as faces do discurso (face-work) [1]

Na sua génese, está o facto de todo e qualquer sujeito falante sentir a necessidade de preservar o seu território e a sua face, noções estas que devem ser entendidas como universais etológicos, quer dizer, como primitivos universalmente aceites na atividade de comunicação dos seres humanos. Assim, o território pode ser perspetivado tanto no seu sentido literal, como na sua aceção metafórica e designa, quer num sentido, quer noutro, o território corporal, material, espacial, temporal, cognitivo, afetivo, etc., ou seja, a face negativa do locutor, ao passo que a face, que se pode ganhar ou perder, se prende com o valor social positivo que todo o locutor reivindica através dos comportamentos sociais, e que encerra, no entendimento de Brown e Levinson, a face positiva do locutor.

1.1.1. Face Threatening Acts (FTA)

Ora, acontece que, nas trocas verbais de todos os dias, este sistema de faces está sujeito a constantes ameaças, neste sentido que o locutor corre constantemente o risco de colocar em causa (e mesmo de invadir….) a liberdade de ação do seu interlocutor. Assim, um enunciado do tipo:

(1) Fecha a porta!

pode, em certos contextos, ser sentido como demasiado brusco (uma FTA, portanto), pelo que se preferirá um ato ilocutório indireto, percebido como menos ameaçador para a face do interlocutor:

(2) Podes fechar a porta?

dando a entender, ao interlocutor, que ele tem a possibilidade teórica de percorrer os valores possíveis (sim/não) do valor da ordem, ou melhor, representando a instrução como um espaço performativo aberto. Mas não só. A ordem pode ainda ser objeto de morfemas lexicais atenuantes (doravante, atenuadores), como por exemplo /por favor/ ou surgir conjugada com o valor contrafactual da condicional, de que resulta, neste último caso, um ato ilocutório compósito do tipo:

(3) Poderias fechar a porta, por favor?
(4) Importar-te-ias de fechar a porta, por favor? (5) Seria pedir-te muito, se te pedisse que fechasses a porta?

Com efeito, a contrafactualidade tem o condão de colocar o enunciado num universo possível, imaginário, e, como tal, a ordem é entendida como um futuro do passado, isto é, refere-se a um intervalo de tempo situado no passado, logo válido apenas para um mundo M1 diferente, em todo o caso, do mundo real (M0).
Face ao exposto, poder-se-á concluir que o sistema de faces (positiva e negativa) representa uma ameaça permanente para os interlocutores (tanto para o locutor como para o alocutário), na justa medida em que qualquer FTA é entendida como uma derrota simbólica. Nesta perspetiva, as regras de cortesia surgem como um instrumento de conciliação ao serviço do desejo mútuo da preservação das faces, tanto mais que certos atos de linguagem se perfilam como potencialmente ameaçadores. Dito por outras palavras, as regras de cortesia têm a função de atenuar as marcas FTA, que se distribuem conforme se segue:


1.1.2. Face Flattering Acts (FFA)

Ora, se alguns atos são passíveis de invadir a face e o território dos interlocutores, já os atos lisonjeadores (FFA), esses, estão ao serviço da valorização das faces, como por exemplo, o elogio, o reconhecimento, a congratulação, etc. Com efeito, pertencem a este domínio, as regras de cortesia, a polidez das formas de tratamento, o uso dos vocativos de valor positivo, etc.
Refira-se, no entanto, que o locutor A não poderá usar as marcas FFA em causa própria, que, na circunstância, seriam percebidos como FTA, como é o caso, por exemplo, do autoelogio (narcisismo), da autocontemplação (egocentrismo), dos atos autodegradantes (desrepeito pela sua própria pessoa) [6], o que significa que o excesso de polidez e de cortesia neutraliza, por assim dizer, o próprio conceito de cortesia...
De resto, e tal como se procedeu para a explicitação das FTA, também é possível – e desejável – conceber as combinatórias possíveis para o sistema de distribuição das marcas FFA, que obedecem ao seguinte esquema:


Significa isto que todo o ato de linguagem pode ser descrito como um marca FTA ou como uma FFA, sendo que a utilização de uma ou de outra tem implicações negativas ou positivas num determinado discurso, mas, note-se em guisa de parênteses, são possíveis, nesta matéria, vários matizes, quer dizer, há FFA que podem, circunstancialmente, funcionar como FTA e vice-versa. Um exemplo clássico deste estado de coisas consiste, por exemplo, nas precauções ritualizadas das aberturas das conversas telefónicas:

(5) Não te acordei, pois não? [7]

Na verdade, se este enunciado é produzido, digamos, às onze horas da manhã, pode subentender que o destinatário é uma espécie de dorminhoco, que se rege por padrões de vida noctívagos, e, eventualmente, boémios, etc. O mesmo se passa, aliás, na comunicação exolíngua em que (A), por exemplo, hispanofalante, fala em português e (B) lhe responde em espanhol. De facto, a situação tanto pode ser endossada à generosidade de (B), neste sentido que quer poupar a (A) um esforço cognitivo (logo, por conta das FFA), mas também pode ser entendido como uma marca FTA, se se entender, antes, que (B) pretende significar a má qualidade do português de (A), a sua incompetência e inabilidade na matéria, etc.
De resto, uma análise mais fina deixará perceber que muitos elogios (FFA) não passam, afinal de contas, de marcas FTA, quer dizer, comportam-se como uma autêntica ameaça às faces positiva e negativa do interlocutor, como de resto, os enunciados (6-11) comprovam:

(6) Fica-te muito essa saia. Pareces mais magra! (pressuposto: não és magra...)
(7) Que belo penteado! Faz-te mais jovem! (pressuposto: não és jovem)
(8) És muito dotada nesta matéria! (pressuposto: não o és noutras matérias)
(9) Acho-te muito mais simpática, agora! (pressuposto: dantes, achava-te pouco simpática)
(10) És estranhamente fotogénica! (pressuposto: na realidade, não és agradável à vista)
(11) Estás muito bonita, hoje! (pressuposto: habitualmente, não és bonita)

A prova de que tais encómios são percebidos como dúbios – e considerados, em última análise, como uma antífrase – é que um comentário possível ao enunciado (11) seria, por exemplo:

(11a) Obrigado pelos outros dias!

o que se pode glosar mais ou menos como: quero fazer-te observar que considero o que acabas de dizer como o contrário de um elogio, pois que consideras que, os outros dias, não sou bonita.

Registe-se, por fim, que, em contexto dialogal, as marcas FFA são mais abundantes do que as FTA, caso contrário, seria o fracasso da troca (verbal) ou o silêncio, que é, de facto, a morte da linguagem. Aliás, prova disso é que as línguas naturais podem muito bem formular o agradecimento em termos hiperbólicos (que, por vezes, funciona como um ato autodegradante!), mas, curiosamente, não possuem formulação metalinguística para minimizar o processo (sob pena de produzir um enunciado agramatical) [8], como se pode constatar pelos enunciados abaixo:

(12) Muito obrigado!
(13) Mil vezes obrigado!
(14) Fico-te infinitamente grato!
(15) *(Um) pouco obrigado!
(16) * Fico-te um pouco grato! [9]

Em consequência do que acaba de ser descrito, pode-se, então, dividir o sistema de cortesia em dois grandes domínios [10], a saber:
(i) a cortesia negativa, de natureza abstencionista, que consiste em evitar a produção de FTA ou em recorrer a atenuadores, cujo processo se pode parafrasear como segue: apesar das aparências e/ou dos rumores, não te quero mal algum e [11];
(ii) a cortesia positiva, de natureza produtiva, que consiste em produzir FFA, eventualmente reforçado por material paraverbal e que se pode parafrasear por: quero-te bem [12].
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[1] Termo criado por Brown e Levinson.

[2] Um caso paradigmático será o tipo de perguntas indiscretas, que incidem sobre o espaço privado do indivíduo B (território), como por exemplo, as questões sobre a idade, o vencimento, os rendimentos, etc.
[3] A oferta ou a promessa representam um custo que podem lesar, no futuro, o território de A.

[4]Como por exemplo, o insulto, a injúria, o sarcasmo, a crítica, a desaprovação (cujos atos comprometem o locutor, isto é, o homo loquens – não o indivíduo, como seria o caso da agressão, que, como o termo refere, comporta uma dimensão física).
[5] Com efeito, os atos autodegradantes, como a confissão, o pedido de desculpas, a autocrítica ou a confidência procuram colocar o interlocutor refém do ethos de A e colocar B numa situação de dívida verbal: o rebaixamento excessivo de A, ao condicionar a produção de FTA, espera tirar benefícios de B, sob a forma de complacência, de tolerância, de piedade, em suma, de perdão. Note-se que este fenómeno é um mecanismo verbal muito próximo da chantagem emocional, como se poderá verificar na análise do corpus aqui apresentado (Cf. Assistente da TMN).
[6] Constituem atos autodegradantes, a confidência ou confissão, o pedido de desculpas, a autocrítica, o excesso de FFA, etc.
[7] Refira-se que as tag questions (não é? pois não?) constituem atenuadores, que procuram corroborar a adesão do locutor.
[8] Em linguística, o enunciado agramatical surge acompanhado de um asterisco (*).

[9] A expressão de (anti)agradecimento /Fico-te pouco grato/ constituiria uma litote por /censuro o que fizeste/, o que deve ser então metido por conta das marcas FTA.
[10] Estes conceitos foram adaptados de Goffman (1973: 73)

[11] Este princípio pode ser enumerado pela regra seguinte: evite ou atenue as ameaças à face do seu interlocutor (ordens, questões indiscretas, críticas, observações desagradáveis, recusas, etc.)
[12] Cuja regra poderá ser enunciada nestes termos: Produza atos lisonjeadores para as faces do seu interlocutor (elogios, manifestações de concordância, de solicitude, de zelo, de interesse, etc.).

Nota: clicar nas imagens para as poder ler.

© Manuel Fontão

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