2011/11/26

Atos de fala [segundo J. Searle]

A. PARTE TEÓRICA

1. introdução

A obra charneira de John R. Searle data de 1969 e intitula-se, muito a propósito, Speech Acts, o que situa o autor na linha de continuidade temática de Austin.

Com efeito, para Searle (a exemplo de Austin), todo e qualquer ato enunciativo constitui, antes de mais, um ato particular que visa exprimir a ordem, a interrogação, a promessa, etc., ou melhor, que visa produzir um certo efeito [1] , e, correlativamente, que implica uma certa modificação da situação da enunciação. Como se perceberá, acabamos de definir aquilo que é, hoje, comummente aceite como força ilocutória, que mais não é, no fundo, do que a componente do enunciado que lhe empresta o seu valor de ato. Considere-se, pois, os seguintes enunciados:

(1) O Rui lê muito.
(2) O Rui lê muito?(3) Lê muito, Rui!(4) Quem nos dera que o Rui lesse muito!
Ora, como ficou assente no capítulo da Semântica ( a publicar em breve...), as frases (1-4) encerram o mesmo conteúdo proposicional, neste caso particular, a atribuição de um predicado /ler muito/ a um determinado referente /Rui/, pelo que a oposição opera no que toca à sua força ilocutória: de asserção em (1), de questão em (2), de ordem em (3), e, finalmente, de expressão de um desejo em (4).

2. atos de fala

Ora, do ponto de vista terminológico é importante que se distinga:

1. atos de fala ou atos ilocutórios, que correspondem à diferentes ações que podemos realizar pelo viés dos diversos mecanismos linguísticos, como por exemplo, a ação de prometer ou de ordenar, mas não a ação de cozinhar, de subir ou de descer uma montanha [2].

2. (de) força ilocutória, que, como ficou dito atrás, constitui uma componente que permite ao enunciado ser percebido como um ato particular, como por exemplo, a força ilocutória de ordem em (3), que se combina, assim, com o conteúdo proposicional do enunciado para, em conjunto, lhe fornecer o seu valor global:

(5) valor ilocutório + conteúdo proposicional 


2.1. condições de utilização

Com efeito, Searle preocupou-se em analisar e classificar os diferentes atos ilocutórios, e, para isso, partiu de casos particulares, como a promessa, problematizando as condições de felicidade às quais os enunciados deveriam obedecer:

(6) Que condições são necessárias e suficientes para que o ato de promessa seja efetivamente realizado e sem defeito no emprego de uma determinada frase? (1972: 95).
Com efeito, há certas condições [3] que presidem ao ato de prometer, e, como tal, devem fazer parte da sua definição enquanto ato de fala específico:

A. condição essencial
(7) a intenção do locutor L é que o enunciado o coloque na obrigação de efetuar P na sua relação interlocutiva com o alocutário A.

Como se pode observar, para Searle, a condição essencial da promessa consiste, por conseguinte, em se colocar numa situação contratual qualquer, quer dizer, em contrair a obrigação de efetuar um certo ato (dirigido à intenção de A), pois que, ao prometer, o locutor L compromete-se, ipso facto, a realizar o ato prometido. Com efeito, os exemplos infra comprovam que, ao contrário da asserção (9), o ato compromissivo exclui o teste de refutação (8):

(8) *Prometo trazer-te o livro amanhã, mas não prometo nada.
(9) Trago-te o livro amanhã, mas não prometo nada [4].


B. condição preparatória
(10) o alocutário A preferiria a realização de P (por L) do que a não realização desse mesmo ato.

No fundo, o que a condição preparatória determina é que o ato em causa (a promessa) deve ser benéfico para A, pois que, caso contrário, estar-se-ia perante a ameaça. Comparem-se os enunciados (11) e (12):

(11) Prometo ajudar-te na feitura do relatório [promessa].
(12) Prometo que te vou fazer pagar caro a tua ousadia [ameaça].


C. condição do conteúdo proposicional
(13) P não deve ter sido já realizado no momento da enunciação do ato de fala, pois que toda a promessa [P] se projeta no futuro.

(14a) Loc: Prometo-te o CD dos Deolinda.
(14b) Alocutário1: Já o tenho!
(14c) Alocutário2: Já mo deu!

(15a) L (político): Garanto-vos um país sério e honesto…
(15b) A (auditório): Já somos!

(16a) L (político) … um país com mais democracia…
(16b) A (auditório): Já temos disso!


D. condição preliminar (de Searle) [3]
(17) não é de todo evidente, nem para L, nem para A, que L adote o comportamento adequado de modo a efetuar [P] [5].

Na realidade, esta condição tem que ver com o propósito ou o despropósito das promessas enunciadas por L. Assim, as frases (18) e (19):

(18) L (marido): Prometo não te abandonar na próxima semana.
(19) L (cônjuge): Garanto-te ganhar no jogo [6].

violam o princípio da pertinência, pois que (18) será provavelmente capaz de provocar mais ansiedade do que conforto no alocutário e (19) não leva em linha de conta o caráter aleatório dos jogos de sorte, ou melhor, pressupõe que as condições de sucesso dependem da vontade individual, quando é um dado adquirido que o sucesso ou o insucesso no jogo se rege pela lógica do arbitrário, ou melhor, inscreve-se na esfera do capricho – independentemente das capacidades volitivas do enunciador.

Note-se, em guisa de parênteses, que as implicaturas conversacionais [8] vivem a expensas da infração desta regra, pois que se parte do princípio básico de que ninguém fala sem querer significar o que quer que seja. Assim, este tipo de enunciados obrigam A (alocutário) a uma reformulação do cálculo interpretativo, quer a dizer, a dotar o dictum (cf. Charles Bally) das condições mínimas de coerência interna [9].


E.condição de sinceridade [10]
(20) no caso das promessas sinceras, L tem a intenção de efetuar o ato prometido; no caso das promessas não sinceras, L não tem a intenção de o efetuar.

Uma última nota para observar que as distinções efetuadas até aqui também são, grosso modo, válidas para outros atos de fala. Assim, por exemplo, no que toca à ordem, a condição essencial ou sine qua non será o facto de L apresentar o seu enunciado como tendo por objetivo último o de levar A a executar o ato em causa. Contudo, este ato é, por outro lado, regido por um certo número de condições de realização, como por exemplo, o facto de o locutor L estar (ou não) em condições de exercer a sua autoridade sobre A (condição preliminar) ou desejar verdadeiramente a concretização do ato em questão [11].

De resto, tendo como base de apoio a classificação austiniana, Searle desenvolve, no seu livro Sens e Expression (1982,) uma taxonomia inovadora, assente nas doze dimensões de variação significativa [12]. Todavia, a sua análise centra-se, sobretudo, no papel que desempenham as condições essenciais, as quais enformam, aliás, a base da sua taxonomia – que se resume ao objetivo ilocutório.

(21) É próprio do objetivo ilocutório de certos atos de tornar as palavras (ou melhor, o seu conteúdo proposicional) conforme ao mundo real, enquanto outros têm como objetivo ilocutório tornar o mundo conforme às palavras (1982: 41).

Por outro lado, o autor coloca também em evidência as questões relativas às condições preparatórias, como por exemplo, a diferença de estatuto ou de condição (social, hierárquica, etc.) entre o locutor L e o alocutário A. E Searle ilustra o assunto do seguinte modo:

(22) Se o general solicita ao soldado raso para limpar a caserna, é, segundo todo a verosimilhança, uma injunção ou uma ordem. Se o soldado raso pede ao general para limpar a caserna, é, verosimilmente, uma sugestão, uma proposta ou um pedido, mas não será, em caso algum, uma injunção ou uma ordem (1982: 44).

o que prova, muito justamente, o conteúdo explicitado em (21).

Destarte, Searle acaba, enfim, por distinguir cinco categorias de atos ilocutórios, conforme prova esta passagem:

(23) Nós dizemos a outrem como é que as coisas são [atos assertivos], tentamos que A faça coisas [atos diretivos], comprometemo-nos a fazer coisas [atos compromissivos], exprimimos os nossos sentimentos e atitudes [atos expressivos] [13] e, pelo viés dos nossos enunciados, provocamos mudanças no mundo circundante (1982: 32).

Por conseguinte, e dada a sua importância taxonómica, não será provavelmente inútil proceder à sua definição exaustiva:

1.assertivos

(24) aqueles que têm por objetivo responsabilizar L pelo que é dito (em graus mais ou menos variáveis…) sobre a existência de um certo estado de coisas, quer dizer, sobre a verdade da proposição expressa, sendo que o seu valor de adequação vai da representação linguística em direção ao mundo envolvente (extralinguístico).

2. diretivos

(25) o objetivo destes atos ilocutórios consiste no facto de o locutor L endossar ao seu alocutário uma certa ação, a qual pode ser ilocutoriamente acompanhada por uma certa cortesia, se recorrer, por exemplo, ao convite, à sugestão, etc., ou, pelo contrário, pode ser mais ou menos intensa, se recorrer à ordem propriamente dita, à reclamação, à insistência, etc.

3. compromissivos (ou comissivo)

(26) aqueles que colocam os interlocutores numa situação contratual, sendo que L fica comprometido a realizar [P] em beneficio de A. [Cf. quadro teórico supra, designadamente, as condições enumeradas por Searle].

4. expressivos

(27) podem ser definidos como tendo por objetivo o de exprimir o estado psicológico especificado na condição de sinceridade face a um estado de coisas especificado no conteúdo proposicional [14].

5. declarativos

(28) as declarações caracterizam-se pelo facto de a sua realização efetiva garantir, por si só, a validade do conteúdo proposicional. Neste sentido, (i) se o ato consiste em nomear A (alocutário) para o exercício do cargo, A é, por inerência, diretor do cargo, (ii) se consiste em declarar a guerra, então, a guerra é uma realidade, (iii) se consiste, enfim, em declarar a sessão do tribunal encerrada, mais ninguém poderá, nessa mesma sessão, prestar depoimentos [15].


3. questões teóricas

Face ao exposto, parece evidente que todas estas abordagens partem do princípio de que, quando alguém usa da palavra, influencia, de uma forma ou de outra, o seu alocutário.

De resto há autores [16] que partem do pressuposto de que todos os enunciados encerram, em si mesmos, um certo valor de ato, inclusive as asserções, como por exemplo (28), em que a mãe denuncia o farniente do filho e (29), em que é o filho que insinua o seu desejo de ir de férias:

(28) O Miguel trabalha numa fábrica de metalurgia.
(29) O Nuno vai de férias.

Na realidade, o valor teórico destes enunciados (28-29) insere-se nas asserções, pois que a sua produção se pode resumir ao facto de um certo locutor L se limitar a transmitir a A uma determinada informação, ou, em alternativa, a fazer saber a A o que L pensa de um determinado estado de coisas. Mas se se entrar em linha de conta com as condições materiais da sua realização, pode encontrar-se uma certa carga pragmática, como provam os comentários de A face a (28) e (29), que reafetam uma certa polemização:

(28a) Mas [17] o Miguel é o Miguel; eu sou eu.
(28b) Não me estou a ver a trabalhar fechado dentro de quatro muros…
(28c) Não te preocupes: eu vou continuar a procurar outro trabalho…
(29a) Está bem. Mas nós não podemos…
(29b) O que é que queres insinuar?
(29c) Mas, em contrapartida, não foi ano passado – e nós fomos!

Ora, tal facto deixa transparecer que o conteúdo proposicional não se atualiza, na maior parte dos casos, independentemente de um certo valor ilocutório, mas que é, pelo contrário, tributário de uma carga pragmática de natureza variável, isto é, situada algures numa certa escala de valores.

3.1. tipologia

Como ficou dito antes, Austin, na sua oitava conferência na Universidade de Havard introduz a distinção que se representa no diagrama infra e cuja nomenclatura tem sido largamente adotada, incluse pelo Dicionário Terminológico para a língua portiuguesa:



B. PARTE PRÁTICA

1. Comente, à luz da teoria da performatividade, o seguinte texto:
  




05




10
[…] Existe uma dimensão performativa na palavra revolução que permite dizer eu faço uma revolução na minha vida. A revolução é da ordem do fazer. Quanto à evolução, ela é mais algo que se enuncia deste modo: há uma evolução na minha vida – é algo que se descreve, que se verifica, que se deixa acontecer, mas que pertence às estratégias fatais que nos envolvem. A revolução é sempre de uma visibilidade exuberante: descentra as existências, cria voragens e precipícios, acelera a história e o coração. […]
Da revolução, poder-se-á dizer o que Michel Leiris escreveu desdobrando a palavra por dentro: Révolution: solution de tous rêves? A palavra revolução sonha, a palavra evolução caminha sem energia nem imaginário. Falar na Revolução de Abril é procurar manter o performativo da paixão. Aragon escreveu: a mulher é o futuro do homem...
Eduardo Prado Coelho, in O Público de 27 de Abril de 2004


3. Da lista de verbos apresentados abaixo, selecione aqueles que, na sua opinião, constituem atos ilocutórios [atos de fala] [18]:


[1] Neste caso, falar-se-á de efeito perlocutório.
[2] Seja dito em guisa de parênteses que o funcionamento destes atos fazem parte daquilo que Saussure chama língua, razão pela qual existe alguma flutuação na sua designação.
[3] Há todo um feixe de condições mais gerais que, por razões de espaço, não são descritas, como é o caso das condições de partida e de chegada, da partilha das mesmas áreas lexicais, da possibilidade física da situação da comunicação, etc.
[4] Aliás, (8) infringe uma das meta-regras da escrita enunciadas por Michel Charolles, na circunstância, a regra da não-contradiçãoconditio sine qua non para que haja progressão textual….
[5] Esta condição prende-se com o princípio geral da pertinência, cuja infração dá origem a implicaturas de vários géneros.
[6] [P] simboliza, aqui a [P]romessa.
[7] Em linguagem semântica, dir-se-ia que a ação é [– CONTROLADA] pelo SU (Cf. grelha temática ou funções semânticas, ou ainda o papel-q).
[8] As implicaturas são largamente tributárias de uma teoria do contexto e apenas interpretáveis à luz das condições de produção dos enunciados. Assim, (18), por exemplo, pode querer anunciar uma rutura afetiva, uma ameaça, uma concessão, etc., ao passo que (19) pode encerrar um pedido de indulgência, de compreensão ou de condescendência pelo dinheiro gasto, criando a expectativa – futura – de retorno do investimento inicial, etc.
[9] No fundo, A coloca-se perante uma questão do género: mas por que é que me estás, então, a dizer isso?...
[10] Todavia, as promessas não sinceras constituem, ainda, promessas (cf. o valor de verdade em Semântica) e, prova disso, são comentários do género:
(i) Afinal, faltou à sua promessa!
(ii) (É lamentável que) não tenha cumprido o que me havia prometido!
[11] Claro que a ordem propriamente dita pode revelar-se um fracasso (i. e., pode não ocorrer), mas não deixa de ser verdade que o ato ilocutório, esse, teve efetivamente lugar… 
[12] Este número seria reduzido a seis por Vanderveken (1998), a saber, (i) objetivo ilocutório, (ii) modo de realização, (iii) condições relativas ao conteúdo proposicional, (iv) condições preparatórias, (v) condições de sinceridade e (vi) grau de potência.
[13] Grifos da minha responsabilidade
[14] São exemplos deste género de atos, o pedido de desculpas, o agradecimento, a congratulação, a exortação, etc.
[15] Ter-se-á notado que a efetivação das declarações se prende intrinsecamente com o estatuto do enunciador. Assim, em (i) será uma entidade hierárquica de nível superior, em (ii) a fonte ilocutória caberá ao Presidente da República (ou quem dirige os destinos de um país) e em (iii) o conteúdo proposicional só surtirá os seus efeitos se for pronunciada por um juiz…
[16] Nomeadamente, O. Ducrot e R. Amossy, para quem a argumentação está, já, inscrita, na linguagem, isto é, é-lhe inerente… 
[18] A adversativa [Mas], foi classificada por Dominique Maingueneau como o mas polémico, pois que, nestes contextos, encerra uma certa carga performativa. Com efeito, a adversativa inscreve-se, aqui, numa lógica de conflito latente, conforme se pode observar infra:
(i) Vamos ao cinema?
(ii) Mas vamos ao cinema?
Por conseguinte, significa isto que mas recupera um conteúdo prévio, designadamente, uma discussão anterior (Cf. a mágica frase consagrada pelo uso, aquando da entrega pública de prémios: E o vencedor é… – cuja (falsa) copulativa recupera, neste caso, toda a história conversacional do evento…).
[18] Cf. Tipologia exposta supra [24-27].
© Manuel Fontão

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