2011/11/23

Análise do corpus [parte_1]

1.1. Introdução

A sequência de abertura é do tipo simétrica [1], pois que os interlocutores não estão condicionados por um qualquer sistema hierárquico de posições, mas, tão-somente, pela observância das regras de cortesia. Esquematicamente, trata-se, portanto, de uma situação típica entre um locutor L1 (AN) que procura obter uma determinada informação e um alocutário, L2, que é suposto estar em medida de satisfazer as pretensões do cliente (L1). Aliás, o facto de o número de apoio (Linha de Apoio ao Cliente) ser gratuito (o que representa uma equidistância dos interlocutores), coloca, naturalmente, os dois interlocutores num certo nivelamento discurso. Ressalve-se, todavia, que pesam sobre L2 um conjunto de restrições bem mais pesado do que sobre L1, na medida em que a conversa se enquadra numa relação comercial, que, como sabemos, tem a pretensão de satisfazer as pretensões do cliente, submetendo-se, desse modo, à lógica consumista, segundo a qual o cliente terá sempre razão.

Por outro lado, é possível distinguir, desde já, duas vozes discursivas, a saber, a assistente, i.e., a operadora que representa legalmente a empresa e Sandra Correia, um indivíduo do sexo feminino de quem se desconhece a idade, as particularidades físicas, psicológicas, sociais, relacionais e afetivas, ou seja, uma voz por procuração, que, todavia, responde juridicamente perante a TMN, e isto por força de contrato (a troco de quase nada, quase apostaria…) e de um regulamento deontológico para consumo interno [2].

Não obstante os constrangimentos profissionais [3] que impendem sobre L2, a assistente ocupa, como é óbvio, a posição alta do plano discursivo, pois que se assume, por inteiro, detentora de um saber técnico, de um saber-fazer e de um conhecimento especializado, ou seja, define-se como portadora de um conjunto de características que faltam, justamente, a L1 (razão última da sua chamada). Daí que, a espaços e de forma por vezes ostensiva, L2 faça prevalecer as suas premissas técnicas, a sua condição de figura indispensável na resolução do assunto, esquecendo-se por completo de que a conversação é, ou deve ser, co-construída. Com efeito, é a assistente que, de forma quase exclusiva, (re)orienta o script, é ela que detém a chave da resolução do problema, é ela que impõe, de cima para baixo, as regras do jogo discursivo, em suma, é ela que detém, inclusive, a máquina do tempo e o modus finem [4]. Não sem razão: a empresa disponibiliza a linha gratuitamente, logo, coloca-se em posição dominante face ao cliente, que terá de se submeter às regras de quem paga. No fundo, é o preço a pagar pela gratuidade certos serviços…


1.2. Sequência de abertura

A conversação abre com uma frase ritualizada, sem se perceber muito bem o escopo da sua significação [Em que posso ser útil? (l. 01)]. De facto, a assistente (naturalmente por força do regulamento interno), ao iniciar a conversa com base no pressuposto de que pode /ser útil em alguma coisa/, sem impor quaisquer restrições para a validação da /utilidade/, coloca, ab ovo, em risco as finalidades da conversa, ou melhor, a sua pertinência dialogal. Em boa verdade, em contexto natural de produção de fala, uma sequência do género que se apresenta abaixo, soaria, no mínimo, algo estranha:

(A) Em que lhe posso ser útil?
(B) Em [x] (em que x é uma variável que não ultrapassa os limites axiológicos em uso)
(A) Lamento, não lhe posso fazer [x] [5].
(B) (…)
(A) ? Posso ser-lhe útil em mais alguma coisa? [para além de x]

Em todo o caso, os dados estão lançados: trata-se de um quadro institucionalizado, em que um dos interlocutores está doravante identificado, e, para que a conversação se possa iniciar, falta identificar o segundo interlocutor, condição indispensável para se entrar no banho conversacional. Ora, à objetividade e clareza discursivas da assistente, AN responde com um discurso demasiado intimista, desordenado, disforme e sarapintado, de resto, de elementos prosaicos e confrangedores. É a figura do campónio, pedreiro de profissão, encafuado no fundo de uma localidade da província, que terá, porventura, comprado um telemóvel topo de gama, provavelmente, acima das suas capacidades financeiras, e, sobretudo, cognitivas…), tudo isto, registe-se, relatado na primeira pessoa, recorrendo, para o efeito, a um vasto conjunto de atos autodegradantes (que pretendem, como ficou dito acima, tornar L2 sua refém discursiva).

Poder-se-á notar, por conseguinte, que a estratégia argumentativa de L1 assenta num processo de vitimização (o vento terá anulado o seu trabalho, o saldo disponível no seu telemóvel é negativo [6], o aparelho não funciona…), mas uma análise mais fina coloca em evidência a natureza obscura da argumentação aduzida: de facto, não se percebe de que telemóvel está a ligar, por que razão não conta sumariamente à mulher do patrão o sucedido, e, enfim, por que motivo não lhe sugere que alerte o marido… acerca do vendaval que terá varrido o local de trabalho de AN.

Uma outra nota digna de registo é o facto de L1, logo na sequência de abertura, endereçar um vasto leque de FTA a L2 (uso de um calão impróprio na conversa com desconhecidos, insinuação subtil de que a operadora estaria ocupada a fazer outra coisa [7], etc.), e isto sem qualquer razão aparente. Se L2 não terá expedido o respetivo aviso de notificação, tal facto ter-se-á ficado a dever à imagem que, neste preciso momento, está a construir do seu interlocutor (um pobre coitado, um homem simples e vítima das circunstâncias, ou melhor, um simplório….), mas também ao vasto conjunto de elementos autodegradantes que AN disseminou logo de entrada, estratégia essa que lhe vai permitir alargar progressivamente o escopo das marcas FTA dirigidas ao interlocutor (L2). Com efeito, o procedimento discursivo de L1 terá condicionado a operadora, que se revela, neste particular, altamente complacente, pois que não reage ao insulto de que acaba de ser vítima. Percebe-se porquê: faz parte dos códigos de conduta deste tipo de transações verbais evitar a propagação das marcas FTA, para que, desse modo, se evite a situação de enervamento. Mas, como se verá mais abaixo, L2 pagará a factura da sua própria indulgência...


1.3. Corpo da interação

Como se terá percebido, a sequência de abertura tem como função apresentar os interlocutores, situá-los no tempo e no espaço, tanto físico, como social. No fundo, consiste numa operação de construção do ethos liminar de cada participante, para que, na base destes dados mínimos, a conversação se possa desenvolver normalmente. 

Ora, como vimos supra, a um ethos institucional de L2, dentro dos parâmetros previsíveis para este script, opõe-se um ethos de certa forma patológico, perfeitamente atípico e demasiado marcado por dados circunstanciais. De resto, o cliente não é, aparentemente, capaz de determinar as coordenadas deícticas (/eu sou o António/, na… numa casa/ mandou-me vir para aqui/aquilo ele mandou-me/e agora/) [8], de separar a informação essencial da acessória (já liguei para o/ tentei ligar/fala a mulher/não dá para ligar), em suma, não parece ser capaz de objetivar o seu pedido, que, contudo, é bastante simples: AN quer estabelecer contacto com o seu patrão, mas está aparentemente [9] impedido.

Colocada nestes termos, a tirada ganha foros de enormidade e de ridículo [10]: é uma verborreia mais ou menos incompreensível, uma algaraviada perto das narrativas infantis, e, procedendo desta forma, L1 infringe, em toda a linha, a regra da pertinência e a máxima de quantidade [11] culminando, enfim, na confissão de ignorância (ato autodegradante): tudo isso é muito bonito, mas não sei como se faz (l. 14). Deste modo, poder-se-ia pensar que AN se coloca gratuitamente no papel do infoexcluído, e, mais do que isso, que assume o papel de um homem desfasado do seu tempo, de alguém que não pertence ao mundo real – o de L2. Ora, admitindo esta hipótese, estaríamos no terreno da negociação direta entre os interlocutores [12], designadamente sobre a escolha lexical [13], tal como parece corroborar a expressão /tudo isso é muito bonito/. Contudo, tal não parece ocorrer, pois que o objetivo de AN consiste, antes de mais, em lançar uma FTA dirigida à face positiva de L2,no caso em apreço, um convite velado para que L2 desça ao mundo dos mortais e fale uma linguagem inteligível, terra a terra, em vez de se mover numa órbita celestial, artificial e mais ou menos inacessível. 

Mas não nos iludamos: a construção do ethos de L1 está, ainda, na sua fase liminar e só conhecerá uma fase de relativa estabilização com o ligeiro sorriso de L2 que acompanha a oferta em (15) (// x //Posso-lhe indicar // x //), um elemento paraverbal que marca a dissociação entre a profissional e Sandra Correia: ambas acabaram de construir, de forma algo precipitada, uma certa imagem do interlocutor que, no entanto, pode não ser a real. Mas dado que o ethos é algo de dinâmico, algo que se vai construindo, destruindo e reconstruindo ao longo da troca verbal, convenhamos que o mesmo pode ser, em qualquer segmento, objeto de reformulação. 

Com efeito, toda a transação verbal está disseminada de equívocos: primeiro, a operadora lança um conjunto de três alternativas, mas percebe-se que está a falar de cor: explicita, em tese, as hipóteses disponibilizadas pela empresa e válidas para um cliente ideal e idealizado, sem levar em linha de conta as coordenadas reais do cliente AN. E a reformulação do dito far-se-á, neste particular, ao preço de uma FTA em (22) /para já/ [14], cujo regulador vem, todavia, fora de tempo. De permeio, e fazendo uso do seu saber técnico, ignora olimpicamente as questões colocadas por L1 em (25) /Um?/ e em (27) /Um quê?/. 

Correlativamente, e do lado de AN, está a sua (pseudo)incapacidade ou falta de vontade em seguir os brilhantes esquemas propostos pela operadora. Assim é: AN, com efeito, não leva a sério as instruções necessárias para enviar o kolmi (um serviço disponibilizado pela TMN), razão pela qual falha a estratégia. De igual forma, também não estaria disponível para fazer um crédito e se ele acede à alternativa em (74) é, em boa verdade, só depois de ter obtido a confirmação em (60) de que não poderá usufruir dessa oportunidade. Poder-se-ia aventar a hipótese de L1 ter compreendido mal, mas tal leitura não está disponível, pois que ele aproveita o ensejo para lançar mais um vasto conjunto de atos autodegradantes em (63) /Eu créditos também não quero, comprei há bocado o carro/, em (70) /Ainda tenho os móveis para pagar/ e em (78) /É por ser pobre, que não posso?/[15]

Refira-se, a este propósito, que o primeiro feixe de atos autodegradantes de L1 havia provocado, na operadora, um ligeiro sorriso em (15), que, agora (69), se transmuda num riso mais espontâneo, o que se compreende à luz da história conversacional recente dos interlocutores. Tal facto não impede porém, que se considere, uma vez mais, uma dupla dissociação [16]: uma, de natureza interlocutiva (entre L1 e L2) e outra de natureza (intra)locutiva, a saber, entre a operadora e Sandra Correia: é a profissional que faz, aqui, concessões à mulher, ou melhor, é a mulher que se sobrepõe à operadora. 

Destarte, a interação pode ser entendida como uma espécie de rito iniciático, na circunstância, trata-se de introduzir o novato no admirável mundo novo da tecnologia. Mas, curiosamente (ou talvez não…), o iniciado não parece interessado em colaborar nos rituais de aprendizagem, não porque as regras do jogo se situem fora do alcance das suas capacidades cognitivas, nada disso, mas porque simplesmente as soluções propostas pela operadora se localizam fora do seu programa comunicativo, quer dizer, esbarram com o objeto do seu desejo (falar com o patrão): indício, pois, de que as coisas não poderão correr bem [17], tanto mais que os projetos discursivos dos dois interlocutores se revelam, cada vez mais, antagónicos [18]

Uma breve referência, ainda, para uma FTA particularmente ameaçadora para a face negativa (o território) de L2: a proposta indecente de a operadora aceitar delegar a resolução do assunto num seu colega do Call Center. A resposta, /Desculpe?/ de L2 (que não é uma) questiona, num ato ilocutório complexo, o propósito de AN no eixo, essencial, dos valores. Na realidade, a assistente interroga a situação no seu todo, fixando, assim, os limites axiológicos do admissível. Com efeito, o morfema interrogativo /imperativo /Desculpe?/ é, aqui, sinónimo de /não ouvi bem; seria capaz de explicitar o seu próprio ethos?/, /não quero acreditar no que estou a ouvir; importar-se-ia de reformular, à luz da imagem que tenho de si !/[19], pelo que a pergunta é menos um pedido de confirmação de informação do que a sua reformulação: AN é instigado a explicar-se e, eventualmente, a retirar a potencial ameaça, pois que, o que está, implicitamente, em causa, é a sua competência e dignidade profissionais. Ora, face à repetição algo patética do dito, o ataque da operadora toca o alvo em (88): /Mas o que é que o Senhor pretende?/. AN não sabe (89). Como também não sabia em (21) /Sei lá/ [20]. Estranho? Nem por isso… 

Não obstante o agravo, L2 mantém olimpicamente a sua postura e recapitula, com uma objetividade e frieza fora do comum, o conteúdo histórico da conversa em (90) /O senhor está ligar porque quer ligar para o seu patrão, (…) eu estou a dar-lhe várias alternativas. O Senhor não quer aceitar nenhuma delas/, em suma, efetua aquilo que, em literatura, se designa por resumo, ao que se sucede outro ato autodegradante de L1 (uma nova marca FTA dirigida à operadora) muito perto da chantagem emocional: em causa, agora, estaria uma grua que ameaçaria cair, e, destarte, poderia provocar a morte de transeuntes. Perceba-se o escopo: caso a grua caísse e houvesse vítimas, a autora moral seria justamente L2, por não transigir ao seu pedido. Responsabilidade que nem o locutor L2, nem Sandra Correia desejariam, razão pela qual L2 se refugia, em (99), num /nós/ inclusivo e coletivo, no caso em apreço, na totalidade dos operadores do Call Center (/Nós nós não fazemos chamadas/) [21] , ou, dito por outras palavras, não está em causa a vontade pessoal de um qualquer assistente, mas tão-só a TMN, o regulamento ao qual os operadores estão deontologicamente sujeitos – o que implica que estamos, aqui, perante um caso de diluição das responsabilidades [22].

Uma nota final para caracterizar as FTA finais [23], designadamente o grito (que, no plano simbólico, significa o fracasso da transação) e o calão. Na realidade, ao grito estridente e agressivo de L1 em (103), vemos surgir um ato ilocutório indireto sob a forma de uma injunção enfraquecida /Vou-lhe pedir para moderar o seu tom de voz/ [24], seguida de um ato ilocutório complexo/Pode ser?/ [25], o que indicia que apenas L2 está empenhada em levar a conversação a bom termo.


1.4. Sequência de encerramento

Esta sequência não se faz, como se poderia pensar, ao deus-dará. Aqui, como na literatura, nada surge por acaso. Há, com efeito, todo um conjunto de sinais verbais, vocais, cinéticos (no caso das trocas verbais presenciais), etc. que se conjugam, todos eles, para a retirada de cena. 

Com efeito, neste corpus, o primeiro a dar o sinal de partida é, obviamente, L2 (farta provavelmente do cromo…) e ocorre em (81) /Pronto! Olhe, se não quer fazer o o kolmi, portanto, não tenho qualquer outra situação/. Assim é: estão, aparentemente, esgotadas as hipóteses de levar a conversação a bom termo. E para a debandada, concorrem, não apenas a interjeição, que está imbuída, de resto, de uma certa dose de fatalismo [26], mas também a conjunção coordenativa conclusiva /portanto/, que, no fundo, constitui uma correlação lógica do raciocínio anterior e cuja glosa é a seguinte: não quer fazer o que lhe proponho, logo, assunto encerrado

Ora, esta troca verbal, que constitui, de facto, uma FTA, é sentida por L1 como uma ameaça, razão pela qual reage com outra FTA, dando a entender que L2 é incompetente e cruel /não sabe ajudar-me/ [27]. Não obstante o novo agravo, a operadora procura refugiar-se, por assim dizer, num terreno neutro, mas sem desarmar: limita-se, comodamente, a repetir-lhe o caminho percorrido em (93), como que lhe relembrando a incoerência interna dos propósitos e, de resto, indicando-lhe, sub-repticiamente, o caminho de saída.

Assim, todos os indícios convergem para o final da conversação. E L1, longe da ingenuidade que se lhe poderia em princípio supor, percebe a ameaça, razão pela qual lança, em desespero de causa, um último golpe de teatro, aliás, de muito mau gosto: a grua está a vir abaixo. Mas a operadora, prevalecendo-se das experiências anteriores com AN, já não embarca na história do lobo e, em (106), a assistente prepara-se, formalmente, para fechar o círculo. Na realidade, o facto reconhece-se, pelo seu formalismo e rigidez enunciativa [28], à qual terá faltado o último enunciado /Posso ser-lhe útil em mais alguma coisa?/. Mas não lhe foi possível, porque, entretanto, L1, conhecedor profundo das fórmulas de despedida, se precipita. De forma surpreendente. Ou talvez não...


1.5. Mas então o que é que o Senhor quer? (l. 55)

A questão prende-se com os objetivos do discurso, ou, para retomar a terminologia de Ducrot, com a sua orientação argumentativa e isto porque quando se fala e, a fortiori, quando se telefona a alguém, é porque se pretende alguma coisa. É o que se chama ser consequente ou, de acordo com os preceitos da pragmática, ser pertinente

Ora, neste particular, L2 é exemplar: em (15) /o que é que o senhor pretende?/ é um convite explícito a que L1 escolha a hipótese que considere ser a melhor. Trata-se de um ato ilocutório direto, cuja interpretação (literal) e escopo coincidem com os objetivos do pedido de apoio, e, por isso mesmo, é proferido num tom de voz neutro.

Contudo, nota-se que, ao longo da transação, a relação interpessoal se vai paulatinamente degradando, pois que os programas discursos de L1 e de L2 não são de todo coincidentes: L1 pretende, a todo o custo, falar com o seu patrão, fazendo tabula rasa das contra-indicações de L2, que, mesmo em condições adversas, procura trazer o seu interlocutor à razão. Com efeito, em (88), /Mas o que é que o Senhor pretende?/[29], a pergunta já é polémica, ou seja, já introduz uma profunda oposição de pontos de vista e, além disso, lança um convite a que L1 reformule o seu projeto discursivo. Mas não só. A pergunta também encerra um juízo avaliativo sobre a própria história conversacional dos intervenientes, e, neste particular, é como se L2 operasse, pelo viés de (88), um ponto de restauro da totalidade do dito com implicações na desconstrução do ethos de L1.

Notas de rodapé:

[1] Como se perceberá mais abaixo, não há, em todo o rigor, simetria perfeita… 
[2] Com efeito, interrogo-me se não seria legítimo que o cliente tivesse acesso à redação que superintende este tipo de transações verbais (regulamento), cujo desconhecimento promove, sem dúdiva, a diluição de responsabilidades…
[3] De resto, as chamadas são (eram…) gravadas, o que aumenta(va) a pressão sobre a profissional, que tem, contrariamente ao cliente, consciência do facto…
[4] Note-se que L2, de forma pouco vulgar, não satisfaz a curiosidade de AN acerca do kolmi (call me...), mas instiga-o, antes, a seguir escrupulosamente as regras ditadas por si… 
[5] Esquema conversacional da Linha de Apoio TMN.
[6] Virtualmente, afirma-se como um /teso/, cuja modalização predicativa /estar teso/ remete para conotações sexuais, mais do que financeiras: um tópico demasiado recorrente na sua produção discursiva… 
[7] Uma marca FTA dirigida à face negativa (território) de L2.
[8] Cujos elementos, tendo em conta que se trata de uma narrativa, teriam de ser anaforizadas. Veja-se este exemplo de relato infantil: eu estava a brincar com a Lena e depois mamã veio e depois disse-nos está na hora de ir para a cama e depois eu disse a esta hora porquê e depois mamã disse tem de ser e depois nós fomos lavar os dentes e depois fomos dormir. Eu achei mamã injusta eu queria acabar o jogo e mamã não deixou.
Como se perceberá, há todo um leque de elementos deícticos, que, na narrativa, devem ser anaforizados, como seguem (preserva-se a estrutura de base, designadamente, o conector temporal, que, aqui, se assume, antes, como articulador discursivo): eu estava a brincar com a minha irmã Lena e depois a minha mãe veio e depois disse-nos que estava na hora de ir para a cama e depois eu perguntei-lhe porquê àquela hora e depois ela respondeu que tinha de ser e depois nós fomos lavar os dentes e depois fomos dormir. Eu achei a minha mãe injusta porque eu queria acabar o jogo e ela não deixou).
[9] Na realidade, compreende-se mal que não o consiga, já que falou com a esposa do patrão…
[10] Esclareça-se, todavia, que o processo de ridicularização é tributário de um terceiro interlocutor, quer dizer que só se poderá ridicularizar alguém em presença de uma terceira pessoa.   
[11] Esta máxima foi concebida por Grice (1975: 45) nestes termos: make your contribution as informative as required (for the purposes of the echange).
[12] Na realidade, os interlocutores são linguística e discursivamente generosos, isto é, estão obrigatoriamente subordinados ao pacto de generosidade da comunicação.
[13] A hipótese lexical poderia – e deveria – ocorrer (como vimos acima), por parte de L2. Na verdade, a operadora deveria atacar o tipo de linguagem vernáculo de AN (que constitui, na prática, uma FTA dirigida à sua face negativa), mas, ao admitir o chorrilho de expressões impróprias numa conversação deste tipo, é o ethos de Sandra Correia que se constrói em negativo. Com efeito, ao legitimar o calão de L1 (em vez de se distanciar), a operadora e a Sandra Correia confirmam identificar-se com o mesmo registo de linguagem, corroboram compartilhar o mesmo capital sociocultural, a mesma enciclopédia…
[14] Não se perca de vista, contudo, que essa FTA responde a uma outra, muito mais ameaçadora, por parte de AN: o uso mais ou menos desabrido do calão. Assim, esta FTA parece vir atalhar – evitar – a reprodução do vernáculo: no fundo, L2, ao sobrepor no mesmo continuum temporal, o seu registo sonoro, neutraliza tecnicamente o indecoro lexical…  
[15] A questão dos créditos (e a do sobreendividamento das famílias) prova, se caso fosse necessário, a idiossincrasia dos universos culturais dos dois interlocutores… 
[16] Quando falo de dissociação refiro-me, como é óbvio, a um processo de distanciamento afetivo entre os interlocutores. Assim, percebe-se, desde já, que a conversação caminha, a passos largos, para o fracasso dialogal… 
[17] No plano metalinguístico, esses indícios estão expressos através da partícula adversativa /Mas/ que marca a oposição de pontos de vista dos dois interactantes.  
[18] Claro que, no mero plano do real, o script de AN é insustentável, absurdo, irreal: é um dado adquirido e que faz parte da nossa bagagem cultural (enciclopédica) que uma Linha de Apoio resolve questões técnicas relativas à matéria e não estabelece comunicação, em tempo real e sincrónico, entre os clientes. Assim, a questão, muito bem enunciada (problematizada) por L2, coloca-se na intencionalidade discursiva de L1: o que é que ele pretende, afinal de contas?
[19] Adivinhar-se-á que, às quatro faces do discurso, correspondem outras tantas imagens (ethos) que se vão construindo (de e na troca verbal):
(i) a imagem que A tem de si próprio [A → A];
(ii) a imagem que A tem de B [A → B];
(iii) a imagem que B tem de si próprio [B → B] e
(iv) a imagem que B tem de A [B → A].   
[20] A partícula /lá/ tem, neste contexto, valor de negação: equivale a /não sei/. 
[21] Seria bastante interessante alargar a análise às formas de tratamento, designadamente, aos vocativos e aos pronomes pessoais, mas, infelizmente, tal abordagem não cabe no escopo deste trabalho. Digamos apenas que, no que toca a L1, se regista o vocativo /Minha Senhora/ e a forma pronominal /você/, cuja distribuição tem que ver com o maior ou menor trabalho sobre o sistema de faces, ao passo que, no que diz respeito a L2, se regista um esquema de tratamento bastante mais homogéneo, no caso vertente, /o Senhor/, na sua função apelativa, ao lado da forma pronominal /você/...   
[22] Trata-se, com efeito, de um fenómeno muito recorrente nas sociedades espetaculares, em que, paradoxalmente, há vítimas reais sem verdadeiros carrascos: é, por exemplo, o caso da pena capital, em cuja execução se dispõe de uma meia dúzia de interruptores (mas em que apenas se encontra em comutação direta), pelo que cada um dos seis carrascos pode sempre pensar, no sono reparador da noite, que não foi o seu gesto que matou o condenado, pois que, supostamente, o seu interruptor não estaria fatalmente ligado à corrente… 
[23] Diga-se, em guisa de parênteses, que o corpus é pouco abundante em FFA, mas tal facto não surpreende, na medida em que o ethos de L1, bonacheirão e vernáculo, não se compagina com as regras de cortesia, do mesmo modo que L2, talvez demasiado imbuída das técnicas de atendimento em matéria de Relações Humanas, também não foi capaz, no decurso da conversação, de inverter o quadro pragmalinguístico. Cf. o comentário, em (69) /Difícil/, dirigido a um recetor presencial, no caso em apreço, a algum(a) colega do Call Center...). 
[24] Refira-se, a este propósito, que o valor aspetual de futuro elide, por assim dizer, o agravo feito a L2, que, através desta FFA (pretende salvaguardar as faces positiva e negativa de L1 e assegurar o próprio sucesso da conversação), faz de conta que não ouviu, ou melhor, sugere que regra (que supostamente deveria ser aplicada desde o início, sem necessidade de ser sequer explicitada…), presidirá a partir deste momento…
[25] Note-se, aliás, que pergunta total, ao implicar, pelo menos em termos virtuais, a possibilidade de se percorrer os dois valores categóricos (sim/não), cria a ilusão da escolha, o que revela a dissimetria do sistema de cortesia de L1 e de L2 – e, correlativamente, a reconstrução dos respetivos ethos… 
[26] Em rigor, a interjeição /pronto/ pode ser glosada da seguinte forma: uma vez que não há nada a fazer, uma vez que não há mais nada a acrescentar, vamos embora…
[27] Na realidade, a operadora não cedera ao sinal não verbal em (59) /o choro/, outro ato autodegradante que visava (como ocorre com todos os argumentos ad misericordiam) colocar em dívida L2, que, supostamente, teria de vir em socorro de AN.
[28] É interessante constatar que, à frase ritualizada da sequência de abertura, responde simetricamente, a frase, igualmente ritualizada, de encerramento, o que prova que AN é useiro e vezeiro deste tipo de situações – esteja ou não de boa-fé, a verdade é que ele conhece amplamente o modus operandi da TMN, isto é, partilha deste universo de referência…
[29] Maingueneau fala de /mas/ polémico, definindo-o como uma atitude de conflito de interesses entre os interlocutores. Poder-se-á, ainda, acrescentar que a adversativa levanta o pressuposto de uma história conversacional recente, sobre a qual o locutor interpela violentamente o interlocutor, neste sentido que o alocutário se sente compelido a fornecer uma resposta na base de um conflito mais ou mais menos latente – ou iminente. Com efeito, compare-se os enunciados que seguem:
(A1) Vamos ao cinema ou não?
(A2) Está bem!...
(B1) Mas vamos ao cinema ou não?
(B2) Já que insistes tanto. Mas continuo a pensar que…
(B3) Com uma condição: que me ajudes logo à noite a…
© Manuel Fontão

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