2011/09/17

O homem que quer ser primeiro

Caro Dr. ou Eng.,

Estou a escrever-lhe, porque o meu colega das horas revoltas, o Zezito, me disse, à hora de me deitar num fictício quarto de hotel de todas as estrelas, ou, se quiser, à hora de bater com os costados numa cama de cartão mole, sob miríades de estrelas, que o Sr. Dr. ou o Sr. Eng. (desculpe-me, mas desconheço-lhe as ministeriais habilitações… eu que já vi, claramente visto, engenheiros, pseudoengenheiros, doutores, falsos e autênticos, jovens e senis, em suma, homens, invariavelmente, a favor das elites e sempre contra o povo…), pois bem, meu caro amigo, eu também queria ser Primeiro-Ministro de Portugal. De Portugal, por certo, mas também de um país, porventura, um pouco mais rico do que o nosso jardim à beira-mar sepultado, como por exemplo, uma Somália ou um Quénia, por que não, Sr. Eng. que também pode ser Dr., por que não? Ora pois, o sonho comanda a vida, lá diz o ditado, e, os homens, esses, comandam os altos destinos da nação (vide caso peculiar do homem dos passos perdidos, que, de repente, virou um robim dos bosques do avesso, cujo modus operandi é, como sabe, aparecer nos media para anunciar, sob as pesadas olheiras de um qualquer tecnocrata, o próximo assalto... à mão desarmada e à vista dos decretos-lei que irão, a posteriori, entrar em vigor para justificar o dito).
De resto, não lhe levo a mal, meu querido compagnon de route, por ter tido esse peregrino e sinistro pensamento de vir a habitar o fantasmático palácio de São Bento, a exemplo de tantos outros, que, no passado, também almejaram tal desiderato. A sério. E à séria, Sr. Dr., como hoje se diria. Não. Não lhe censuro o altruísmo, não lhe critico a ambição, legítima e verosímil, muito embora pense, na minha depauperada cachimónia, que essa sua meta ou objetivo ou coisa que o valha me retire, em definitivo, alguma capacidade de manobra. Eu explico-me, caro amigo das horas incertas: na realidade, há anos que essa aspiração, igualmente verosímil e legítima, também me persegue, ou melhor, há décadas que me vejo predestinado para tão altas funções de estado, que isto de servir a cousa pública é sempre uma causa simultaneamente alta e profunda. Com efeito, fosse eu PM, seguro de mim, abandonaria, certamente, a vida de cão que tenho levado, poderia mesmo, está a ver, alugar um quarto de uma assoalhada, talvez mesmo um apartamento com duas ou três, que isto de assoalhadas é consoante a bolsa de cada um, não é? Não importa. Uma candidatura minha, Sr. Dr. (o Zezito, vá-se lá saber porquê, aposta que o senhor é engenheiro - decerto, está a ser vítima de um traumatismo recente…), uma candidatura minha, dizia eu, facultar-me-ia a republicana possibilidade e a possibilidade republicana de subtrair a minha miséria, dar-me-ia, entre outras coisas, o ensejo de consolidar a minha posição integrada nos mercados (que digo eu, Sr. Dr., inscrever-me-ia, aliás, no lote de pessoas que possuem uma posição alta na vida…). Depois… Depois, é uma questão de astúcia, meu caro condiscípulo: começaria, por exemplo, por denegar todas as promessas que havia feito, e, repare, Sr. Eng., tenho dito coisas loucas ao Zezito, coisas que sei, como é óbvio, que não poderia cumprir. Veja-se, de resto, aquela vã promessa de o retirar da entrada do prédio à Boavista! Enfim, não lembra nem ao diabo, eu sei! Era o que faltava, uma vez alto dignitário da cousa pública, alojar o pobre coitado numa casa de luxo lá para os lados da Foz. Atente-se nestoutra: a de lhe comprar um apartamento de luxo na baixa lisboeta. Uma loucura, companheiro, uma doidice varrida, esta exigência do Zezito, acompanhada, de resto, do seu capricho, mais ou menos pueril, de o inscrever, não a ele, mas ao complexo predial, no nome da mãe. O homem, confesso-lhe, tira-me do sério, arvora-se em paladino das massas, agita-me a bandeira da fome, mas, enfim, lá vou aguentando a difícil situação. Como? Ora, com a arte de persuasão que, intrinsecamente, nos caracteriza, quer dizer, com a retórica que se impõe ao discurso político. Pudera! Pois então não é com mel que se apanham as moscas? Não é com um discurso mafioso que se ludibriam as multidões? Não importa! Também não pretendo vir para aqui discutir estratégias militares, isto é, retóricas. Cada um que se cuide, dir-lhe-ia eu em jeito confessional, pois que o seguro morreu de velho e os cândidos candidatos fazem, tão-somente, o seu trabalho de sapa. Enfim, uma autêntica maratona, como muito bem disse, camarada das magras certezas, uma corrida de fundo, ainda por cima com o safado do Zezito, sisificamente, às costas. Confira, a título meramente ilustrativo, o seu antecessor, que, sem dar cavaco às tropas, lá foi acrescentando fazenda privada, que a pública, essa, tinha as costas largas, quer dizer, não se ressentiria da divisão de um contribuinte por alguns milhões, ou, então, atente no non-sense do outro, anáfora suprema de todos os nomes, que, num ápice e ao som do cavaquinho, multiplicou o seu pecúlio por familiares consanguíneos e por santa afinidade…
Tudo isto para lhe dizer, caro compincha, que esta sua última diatribe, pronunciada, alto e bom som, numa reunião que o Zezito seguiu com toda a atenção, me partiu literalmente os rins. Parece que S. Exa. quer ser mesmo Primeiro-ministro, ou pior, parece querer provar, dois mil anos depois da tragédia primeira, que, finalmente, virá alguém animado de preocupações antropológicas, de ideias, aliás, bizarras, de justiça e de equidade.
Caro amigo (ou deveria, aqui, apelidá-lo de eterno rival?...) abandone, o quanto antes, essas ideias filantrópicas, tanto mais que o homem vulgar, reduzido ao simples papel de contribuinte passivo, não tem, definitivamente, emenda. Ora, que quer? É um ser demasiado frágil, crente e crédulo por natureza, habituado a um estado social e assistencialista, acostumado a uma infindável série de direitos ditos adquiridos e de privilégios inócuos, injustos e destrambelhados. Em suma, é um empecilho a abater logo após o voto útil, que, nesta matéria, o melhor que há em cada cidadão se prende, cá entre nós, com a sua inesgotável capacidade de ir às urnas. Às dos outros - que não a sua, como os políticos da posmodernidade desejariam...

Ah! A minha cabeça, caro amigo! Quase me esquecia do essencial, que consiste na assunção da minha generosa desistência a favor da sua indispensável candidatura. Primeiro, porque apreciei bastante a nova música de fundo, que revela, de facto, muito bom gosto, e, depois, porque o inevitável, mais cedo ou mais tarde, acontecerá: os nossos compatriotas, no ato singularmente patriótico, hão de, sim, votar seguro. E em segurança. Quer dizer, hão de voltar a tirar um coelho da cartola, seja ele Pedrito, Toninho ou Zezito, que isto de onomástica é a única coisa que muda na cousa pública.

Um forte abraço do
Manelinho*
* Ex-sem-abrigo, colaborador do QL, pago a recibos verdes, implacavelmente tributados pelo homem das implacáveis olheiras.
© Manuel Fontão

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