2011/08/27

TODOS OS NOMES de José Saramago

O nome – próprio ou comum – não passa de uma etiqueta, de um rótulo, de uma mera convenção. Alguém aduz, não se sabe muito bem porquê, Apresento-te o José, Sim, e que é que isso acrescenta à minha condição, Nada, é apenas um amigo meu, Quem, O Sr. José, E quem é que passa a ser meu amigo: o José ou o Senhor, Os dois, Eu adoto apenas a primeiro e, mesmo assim, Mesmo assim, quê, Ambos constituem uma mera construção social, Mas o primeiro define a pessoa, Não estou certo, acho que nem esse…

O diálogo, imaginário, decalca, como se deve ter reparado, as técnicas saramaguianas. Contudo, não vou, aqui, escalpelizar as características dialógicas utilizadas pelo narrador, mas, antes, analisar o sentido da obra Todos os Nomes, um livro que atualiza a tese do cratilismo, isto é, a natureza do nome, ou, para ser mais exato, um livro que retoma a tese da falência onomástica.
Na verdade, o Sr. José, nome de inspiração bíblica que designa aquele que acrescenta, funciona como um hiperónimo de todos os nomes, razão pela qual é o único que merece, na economia intradiegética, um nome próprio, neste caso, um nome de batismo – que o apelido, esse, é, por maioria de razão, imbuído de implicações genealógicas, de pretensões heráldicas, de conotações sociais.
Não obstante o dito, há algo de intrigante neste sistema minimalista de denominação: o termo de deferência de natureza eminentemente social. Com efeito, o Sr. José deveria, segundo toda a probabilidade, ser denominado de José. Simplesmente José. Crua e antropologicamente José. Tal como José e Maria, os émulos inocentes do pecado original, aqui transmudados em Sr. José e a célebre mulher desconhecida, que, caso lhe fosse atribuído um antroponímico, também se chamaria, por certo, Sra. Maria. A exemplo, aliás, do enigmático pastor de rebanhos, que se entretém a trocar aleatoriamente as lápides do Cemitério Geral. A exemplo, também, do eterno marido ciumento, ainda e sempre um qualquer José inscrito numa qualquer Conservatória do Registo Civil. Não importa. José, resume todos os nomes. José é, assim, uma espécie de epónimo do todo antropológico. Em suma, José constitui um instrumento da vontade divina, perpetuamente sujeito ao olho de Deus, um olho que tudo vê e nada diz – desde que o mundo é mundo...
Mas eis que o deíctico social transforma o José num homem comprometido com o seu devir, emprestando-lhe, por assim dizer, uma certa dignidade social. Efeito de distanciamento, por certo, entre personagem e narrador. Mitigação, sem dúvida, do espaço de intimidade.

Todos os Nomes. Mas, surpreendentemente, o único que consta da trama diegética é o Sr. José, um zeloso funcionário da Conservatória Geral. Ah! Aqui sim! Aqui, encontrar-se-ão, de facto, todos os nomes, não apenas os que existiram, mas também os que hão-de vir. Aqui sim! Aqui, encontrar-se-ão, sem exceção, todos os nomes, metodicamente registados e arquivados, em cujos verbetes constam, como convém, as datas maiores que balizam a vida do ser humano: o nascimento, o casamento/divórcio, o falecimento.
De resto, o organigrama da Conservatória Geral é exemplar. Pela sua geometria elementar. Pela sua frieza lógica. Com efeito, na parte dianteira da repartição ficam os vivos, dispostos em vertiginosas prateleiras, ao passo que os mais velhos, esses, vão paulatinamente subindo nas estantes na proporção direta de um novo nascitur, razão pela qual o fim da prateleira é, em todos os sentidos, o princípio da queda. Acontece, no entanto, haver processos que, não se sabe por que razão, se aguentam na borda extrema do vazio, insensíveis à última vertigem, durante anos e anos além do que está convencionado ser a duração aconselhável duma existência humana (1997: 16). Mais atrás, ter-se-á adivinhado, avolumam-se os mortos, envoltos na escuridão e na vastidão quase infinitas de montes de papéis que enformam labirínticos corredores, em cujo espaço, aliás, só é possível penetrar graças a uma inovação introduzida pelo conservador: um fio de Ariadne, uma espécie de cordão umbilical que liga o funcionário à mesa do chefe.
De resto, tanto a organização hierárquica das mesas, como a rotina burocrática surgem imbuídas de uma rigidez inflexível e de uma impessoalidade implacável, o que, a meu ver, aproximam a Conservatória Geral dos espaços kafkianos, na medida em que o espaço responde, ponto por ponto à carne fantasmagórica, ou, dito noutros termos, em que espaço não cabe na categoria ideal do entendimento humano, mas, antes, o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais e fantasmáticas. Assim é. Todos os seres humanos – vivos ou mortos – se resumem a um nome, ou melhor, a uma etiqueta, a um rótulo, cuja função maior é, ao fim e ao cabo, meramente discriminativa, a exemplo das restantes unidades, discretas, das línguas naturais.

Mas volte-se ao início - ou quase. Ao Sr. José. Ao homem. Mas também ao auxiliar de escrita. Ou, se se quiser, dê-se alguma atenção ao pobre homem, que se confunde, infelizmente, com o funcionário, tanto mais que já lá vão vinte e seis anos, ele que já conta cinquenta anos de idade. Vinte e seis anos. vinte e seis anos que, afinal, se diluem nas tarefas burocráticas do seu ofício, ele que é, também, o único funcionário que reside num anexo da Conservatória, isto é, uma habitação remanescente do antigo conjunto de anexos (demolidos, entretanto, para a ampliação incessante do prédio).
Sim. O Sr. José surge, desde logo, como um funcionário privilegiado. O auxiliar de escrita aparece, aos olhos do leigo, com direitos adquiridos. Mais um, dir-se-á... sem se perceber porquê. Ora, para além de se constituir, simbolicamente, como um apêndice, como um prolongamento temporal e funcional da Conservatória, o regime de exceção de que é objeto favorece o seu modus vivendi e o seu modus operandi. Mas serenem-se os espíritos inquietos. É que a sua particularidade consiste, justamente, em colecionar recortes de notícias sobre celebridades do país (1997: 23), na circunstância, pessoas que por boas ou más razões se haviam tornado famosas (1997: 23). Claro que o narrador, uma entidade invariavelmente cunhada de suspeição, encarrega-se de justificar a singularidade da personagem, inscrevendo-a numa desejável aura de normalidade, ao afirmar que pessoas assim, como Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhe a vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais (…) provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar de angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouquinho de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo volta a confundir-se (1997: 23-24).
Processo de enaltecimento do auxiliar de escrita. Estratégia de legitimação do protagonista. Mas tal facto fica a dever-se, sem dúvida, a necessidades exclusivamente diegéticas. Quer dizer, doravante, o Sr. José tem carta branca para passar a fazer incursões noturnas nos arquivos da Conservatória, para, desse modo, alargar a base de dados para sua secreta coleção sobre celebridades. Tanto mais que o assunto é nobre. É válido. Até que chega um dia em que ele leva consigo, acidentalmente, o verbete de uma pessoa desconhecida, na ocorrência, uma mulher de trinta e seis anos, divorciada. Eis, pois, que o Sr. José se lança, movido por uma curiosidade mórbida, numa autêntica aventura sem fim à vista, uma série de peripécias completamente fora de sua rotina, e, o que é mais grave, fora da jurisprudência da Conservatória. Insólito, em todo o caso. Mas, uma vez mais, lá está o narrador, omnisciente, a defender a sua personagem de qualquer mal-entendido, recorrendo, para melhor convencer, ao nós inclusivo, a uma pluralidade que se confunde com a vox populi: em rigor, não tomamos as decisões, são as decisões que nos tomam a nós (1997: 42). O lance parece definitivamente ganho, o Sr. José ganha a partida, e, doravante, o auxiliar de escrita pode prosseguir a sua pesquisa sobre a famosa mulher desconhecida. Que, note-se, anula por completo a tese do cratilismo: com efeito, basta uma expressão definida para designar um ser humano. Quer se trate da vida secamente resumida num verbete do acaso. Quer se trate da senhora do rés-do-chão direito que mais não é do que a madrinha da mulher desconhecida. Quer se trate, enfim, da mulher do segundo andar esquerdo ou do casal do segundo andar direito – e a lista permanece, obviamente, em aberto…
Mas, no meio de todos os nomes, de resto, inomáveis, a singularidade de Sr. José resume-se, afinal de contas, à busca incansável da mulher desconhecida. É esse, com efeito, o seu fio de Ariadne. É essa, em boa verdade, a sua saga. José, Ariadne: os únicos nomes que aparecem positivamente ao longo da trama diegética. Qual deles o mais mítico, pois que, se Ariadne é quem dá a Teseu o fio que garante a saída do labirinto, após a destruição do Minotauro, dito por outras palavras, se Ariadne é quem ajuda Teseu a ser herói, também não deixa de ser verdade que é o amor que vai dar o sentido à vida do Sr. José, ou melhor, são os factos humanos banais, vulgares, comuns que tornam o homem imortal, célebre, num ser heróico – à sua maneira. E, de permeio, o narrador consegue mergulhar-nos naquilo que realmente receamos: a confusão entre a linha divisória da vida e a da morte, a indistinção entre a memória e o esquecimento, a fusão entre a ordem e o caos – ainda que cada um de nós conheça o nome que lhe foi dado sem conhecer o nome que tem…
Fico com a dúvida, suprema, se me chamo Fulano de Tal ou se é assim que me chamam. Os outros, que não eu...

© Manuel Fontão

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